O Abreu fazia dezanove anos e fora, recentemente, às “sortes”, a Mação, tendo ficado “apurado para todo o serviço militar”, como então se dizia.
Andava muito triste, o que, na voz do povo, se devia à morte prematura da mãe, com doença não determinada, ou, pelo menos, não revelada, ao comum das pessoas. Mas a tristeza era outra.
Acompanhava os irmãos mais velhos, João e Benjamim, na missa dos domingos, na freguesia.
Ia, também, o mais novito, o “António”, com dez anos, esperto e ladino, filho do pai e da madrasta.
Pela cabeça do Abreu passava um turbilhão de ideias. Também era notória uma postura meditativa, uma marcada auto-análise e introspecção, invulgares em rapazes daqueles meios, daquelas idades e com a sua instrução – fizera a 4ª classe, sendo aprovado, com distinção –.
Um dia, o padre João Pereira, filhote do lugarejo e pároco numa pequena freguesia para os lados de Porto de Mós, veio à aldeia e cruzou-se com o rapazote, de que alguém lhe tinha já falado.
O Abreu, recentemente apurado, nas sortes, ia, dentro de dias, partir para a ceifa, na companha do Ti Chico “Manajeiro”, da Serra.
Na conversa que teve com o padre Pereira, o Abreu mostrou grande vontade de saber coisas sobre a vida de sacerdócio.
Nas três perguntas que fez, a primeira é uma simples diversão: gostaria de saber qual a origem do nome da aldeia Queixoperra –; a segunda e terceira versavam o casamento dos padres.
O padre Pereira, cuja sensibilidade, embora embotada por muitos anos de meio rural, era de uma perspicácia evidente, percebeu que, das três perguntas, só a resposta à última tinha importância para o Abreu.
Respondeu, evasivamente, sobre o nome da aldeia – cuja origem é incerta e nebulosa – e pouco adiantou sobre o casamento dos padres; mera questão de disciplina, instituída há séculos.
Já no que diz respeito à facilidade, ou dificuldade, de ser padre, o caso é mais complicado; talvez uma passagem dos evangelhos te ajude a compreender o que há para dizer: “aos desígnios do Senhor, nada é impossível”.
A interpretação desta afirmação contém as respostas que procuras.
Só há uma única condição: a tua vontade e o teu querer têm de ser inabaláveis; o resto, não terá importância.
Tens de ter muita confiança; tens a vida para viver.
Daí a dias, o Ti Bento e o Luís Mendes foram a casa do Abreu avisá-lo que no dia seguinte, antes do romper da manhã, estariam de partida, para se juntar, na Saramaga à companha do Ti Chico “Manajeiro”, da Serra e seguirem todos, para a estação de Abrantes, de onde seguiriam, no comboio do Leste, para a ceifa.
Iria começar mais um dos duros trabalhos que, para o Abreu, seria dos últimos.
O Ti Chico “Manajeiro” ufanava-se, anos mais tarde, de ter tido nas suas companhas da ceifa, doutores, oficiais da tropa, negociantes de fama e riqueza, brasileiros e até um padre, que de vez em quando, o ia visitar lá na Serra, onde o “manajeiro” passava os últimos dias do entardecer da vida, e, segundo as suas palavras, tinha muitos amigos, por quem pedia, à Senhora da Fátima.
E recordava o rapazote que levou, três anos, na companha: o Abreu, do compadre Francisco, da Queixoperra, que na malhada mostrava um ar de alheamento e distância e um certo quê de mistério.
Os outros camaradas, reparavam, mas não comentavam muito, pois o Abreu não incomodava ninguém e desempenhava, a contento, todas as tarefas de que era incumbido.
Era dos últimos a adormecer e nunca o fazia sem que rezasse as suas orações e se quedasse em meditações.
Nas festas e bailaricos, teve um ou outro “flirt” com raparigas, mas não passou daí.
Um dia, regressava da horta, onde estivera toda a manhã, junto com os irmãos, a arrancar as batatas e, ao passar à porta da taberna do ti Zé Maria, foi-lhe dito que já lá estavam os editais e que ele iria assentar praça em Abrantes, daí a quinze dias.
Operou-se, no rapaz, uma modificação profunda. Andava mais alegre, cantarolava, dava-se a conversas; parecia outro.
No dia três de Maio – festa da Santa Cruz –, foi, junto com os outros dois mancebos da freguesia, buscar as guias à Câmara de Mação e, no dia seguinte, foram apresentar-se em Abrantes.
Durante quase três meses fez a recruta e depois a especialidade, tendo sido escolhido para a escola de cabos.
O Capitão, comandante da Companhia, casado com uma das senhoras da família Moura Neves, precisava de um “impedido” e, saiba-se lá porquê, escolheu o cabo Abreu.
Passou a frequentar a casa do “patrão”, onde ajudava nas compras, lavava o automóvel, tratava do cavalo e ocupava-se de outros afazeres da casa.
A senhora dona Aninhas, mulher do Capitão Geraldes, gostou logo do soldado que o marido escolhera, muito prestável e solícito, muito preocupado e amigo de ajudar, muito pontual e sério nas contas. No entanto, por vezes ficava triste, pensativo, vago e distante, o que levou a Senhora a perguntar se estava ofendido com alguma coisa, ou se tinha algum problema que ela pudesse ajudar a resolver.
Ai, minha Senhora, tanto e tão pouca coisa.
Corou e quase se lhe embargou a voz, mas não podia perder a oportunidade e acrescentou: sou filho e neto, de gente pobre e humilde; pobre, de bens materiais, mas temente a Deus e muito honrada.
Com fé nestes princípios, há oito ou dez anos que o meu maior desejo é ser padre.
Ser padre, Senhora Dona Aninhas, é o meu desejo.
Homem, mas isso... venha comigo.
Você, Mariana, vá tratar da lida da cozinha, que se fazem horas do almoço.
Ah! o Abreu almoça cá, connosco.
Chegados à sala, a Senhora perguntou, secamente: tem, então, a certeza que é padre que quer ser?
Certeza absoluta, minha Senhora. Só que, por mais que pense, não vejo como; até nem sei porque incomodei a Senhora com tais despropósitos.
Que me desculpe, a Senhora, que tão boa tem sido para mim.
Não, meu bom homem, bateu à porta certa; aos desígnios do Senhor...
Sem ouvir o resto da frase, fez-se luz na mente do rapaz; eram as palavras do evangelho, que o padre Pereira lhe tinha dito...
A Senhora continuou, explicando que havia fortes ligações da sua “casa” com o Seminário de Portalegre e o dos Olivais, em Lisboa.
Todos os anos tinha chegado ao fim um seminarista amigo, mas, havia três anos não se tinha ordenado ninguém da “casa”.
Daí a nove ou dez anos, se Deus quisesse, haviam de ter um padre. Assim o Abreu quisesse…
A partir daquele dia, nem a Dona Aninhas, nem o Abreu conseguiram dormir direito, de felicidade.
Uma semana depois já a Senhora anunciava, na presença do marido, que estava tudo tratado: nos meados de Setembro, o cabo Abreu seria licenciado, na qualidade de amparo de família. Na semana seguinte faria um retiro no Seminário de Portalegre e na última semana do mês, um outro retiro, no Seminário dos Olivais, em Lisboa.
A Senhora queria ouvir opiniões e saber o que melhor se ajustaria ao seu novo protegido; isto se o Abreu não visse qualquer inconveniente.
Resposta pronta e elucidativa: É o que eu quero, minha Senhora.
No início de Outubro, tudo começou no Seminário de Alcains, onde, num ano, o Abreu, fez segundo e quinto anos.
No ano seguinte, em Portalegre, completou os preparatórios e no terceiro ano, iniciava a Teologia, que o levaria, passados cinco anos, a cantar Missa Nova, por pedido da Senhora, no Seminário dos Olivais.
Numa visita à aldeia depois de estar no Seminário de Alcains e após ter passado pelos seus pais adoptivos, como sempre fez questão de dizer, encontrou-se com o padre João Pereira.
Abraçaram-se e o seminarista Abreu apenas balbuciou as palavras que escolheu para lema de toda a sua vida: “Aos desígnios do Senhor nada é impossível”.
Paroquiou uns anos em Martinchel; no termo de Abrantes – de onde podia visitar a família adoptiva e confortar, na doença, a Senhora Dona Aninhas.
Transferiu-se depois, por interferências e empenhos da Senhora, para São Facundo, freguesia também perto de Abrantes, onde o velho senhor Moura Neves, saudoso pai da Senhora, tinha a maioria das suas terras.
Lá viveu, muitos e bons anos o Padre Abreu.
De vez em quando, ia à Queixoperra, para rever as suas origens e, sobretudo, para matar saudades da sua infância.
Nessas viagens, dava um salto à Serra, para rever o velho Chico “Manajeiro”.
Morreu, em paz, quase a completar noventa anos, sem deixar quaisquer bens materiais.
Do seu espólio constam apenas dez ou doze nomes, de outros tantos padres, que, por sua iniciação e orientação, serviram, tal como ele, a Igreja.
sábado, 13 de dezembro de 2008
sábado, 6 de dezembro de 2008
Elogio do amor
Nas oliveiras do quintal, atrás da casa, havia grande quantidade de pintassilgos que ali faziam os ninhos, disputados pela garotada, que se considerava altamente recompensada cada vez que achava um.
Os pintassilgos eram os regulares ocupantes das gaiolas do Zézito, que nos seus treze anos, ali passava as férias.
Um dia, o rapazito ficou impressionado com o comportamento dessas aves.
Ao verem os filhotes nas gaiolas, alimentavam-nos nos primeiros tempos, estudando-lhes o desenvolvimento motor, a capacidade de se alimentar, o tamanho e cor das penas, para definirem a sua iniciação no voo.
Ao verificarem que os filhos, já na altura de voarem, não os acompanhavam, por se encontrarem presos, entravam em trinados esquisitos, mais agudos e rápidos e menos harmoniosos – semelhantes a choro – e, alguns dias depois, procuravam gramíneas venenosas que davam aos filhos, para que se libertassem, pela morte.
Este episódio, que o garoto de então não mais esqueceu, levou-o a não mais usar as gaiolas e guardou aquele exemplo como verdadeiro hino à liberdade.
Constitui, o maior elogio ao amor, e merece tratamento de artista.
Os pintassilgos eram os regulares ocupantes das gaiolas do Zézito, que nos seus treze anos, ali passava as férias.
Um dia, o rapazito ficou impressionado com o comportamento dessas aves.
Ao verem os filhotes nas gaiolas, alimentavam-nos nos primeiros tempos, estudando-lhes o desenvolvimento motor, a capacidade de se alimentar, o tamanho e cor das penas, para definirem a sua iniciação no voo.
Ao verificarem que os filhos, já na altura de voarem, não os acompanhavam, por se encontrarem presos, entravam em trinados esquisitos, mais agudos e rápidos e menos harmoniosos – semelhantes a choro – e, alguns dias depois, procuravam gramíneas venenosas que davam aos filhos, para que se libertassem, pela morte.
Este episódio, que o garoto de então não mais esqueceu, levou-o a não mais usar as gaiolas e guardou aquele exemplo como verdadeiro hino à liberdade.
Constitui, o maior elogio ao amor, e merece tratamento de artista.
sexta-feira, 28 de novembro de 2008
O “calhordas”
O “Calhordas”, foi-o, desde que aos vinte e dois anos, na sala de audiências do 1º andar do edifício da Câmara Municipal de Mação, afirmou, sob juramento, como testemunha num julgamento por pequeno furto, que não sabia quem era o ladrão, mas o Ti’Manel da Eira não era, porque esse conhecia-o ele bem e tinha a certeza que o vulto que viu não era o dele.
Era passarão mais alto, mais entroncado e andava em cabelo, como nunca tinha visto o Ti’Manel, que é homem mais baixo e mais fracote.
Embora fosse de noite dava para ver bem as diferenças, afirmou a testemunha Francisco Terras, quando foi mandada levantar pelo senhor juiz, todo vestido de preto, atrás duma grande mesa.
Acabou por ser absolvido o réu Manuel Martins, que todos conheciam como Manel da Eira, por falta de provas e nunca foi condenado ninguém pelo furto da meia dúzia de abóboras, roubadas da horta do Ti’João Lopes.
O queixoso é que nunca ficou convencido da inocência do larápio;
Todavia ante as ameaças do Ti’ Manel da Eira, limitou-se a dizer, na taberna, para descargo de consciência, que depois daquele “calhordas”dizer ao juiz o que disse, não havia outra possibilidade senão absolver o Ti’Manel da Eira.
Por causa do “calhordas”, que nunca será mais que isso, ficamos por aqui e não se fala mais nisso.
E assim foi: o Chico, do Zé Terras, ficou “O Calhordas” para o resto dos seus dias.
O garoto nasceu ao princípio duma noite chuvosa e gélida de finais de Outubro.
Acabou por não dar grande trabalho à “comadre Luísa” que o aparou e lavou na bacia de água quente, num dos quartos dos fundos da casa do Terras que, minutos depois, já na tasca de baixo, mandava vir uma rodada para os presentes, em honra do seu primeiro rebento.
Com alguma emoção, diria, depois de emborcar o copito, que chegou a temer a sorte do gaiato, a avaliar pela mulher que quase não tomou barriga e havia dias que nem sentia a criança.
Graças a Deus estava enganado e o garoto parece que vem esganado com fome; não faz outra coisa que não seja berrar.
Mas, se a “comadre Luísa” diz que está tudo bem e amanhã já parecerá outro, fico descansado.
Deite lá mais uns copos à saúde do Chico, que assim se irá chamar se o meu futuro compadre se não opuser.
Depressa correu a notícia que a Florinda do Terras já tinha tido gente nova e que o menino, embora franzino, fazia pela vida, e tinha boas goelas para berrar.
Cresceu, fez a escola e ajudou os pais nos trabalhos de casa.
Aos dezasseis anos foi aprender a arte de carpinteiro e chegada a altura foi para o serviço militar, assentando praça em Elvas.
Passados dois anos e pouco, voltou à aldeia e continuou a ser o Chico do Terras, até que, depois daquela audiência no tribunal de Mação, todos lhe passaram a chamar “o calhordas”, como foi rebaptizado pelo Ti’João Lopes.
A alcunha, que não incomodava minimamente o Chico, nem alguma vez rejeitou, embora não soubesse o que queria dizer semelhante palavra, era, afinal, mais uma.
Só a Senhora Professora, O Senhor Juiz e os Senhores lá da tropa o chamaram pelo seu verdadeiro nome – Francisco –.
Todos os outros – os pategos lá da terra –, sempre lhe chamaram Chico e isso nunca o incomodou.
Vinha mais uma alcunha, ditada por outro ignorante e não havia de ser isso que o ia incomodar.
Assim, como assim, dizia ele, galhofando, sobretudo quando já estava animado, junto do balcão da taberna:
O meu padrinho, que Deus tem, nunca passou de Chico Figueira e até Cabo de Ordens chegou a ser; O meu avô, que também já lá está, sempre foi o Chico Cabreiro e nunca deixou de ser homem por isso.
Porque haveria eu de ser diferente deles e… se um dia vier a ter um filho e me quiserem fazer a vontade, há-de ser mais um Chico na família.
De facto, quando, anos mais tarde, foi a vez de ir registar o filho e se dirigiu a Penhascoso, onde o senhor Mário Serras era o encarregado do Posto de Registo Civil, teve lugar uma bela história protagonizada pelo “Calhordas”:
O senhor é o pai. Então diga-me: a criança é masculino ou feminina?
O “Calhordas”, empertigou-se, incharam-lhe as veias do pescoço e, com os olhos arregalados, exclamou: espere lá, senhor Mário Serras, não quero nada disso para o meu filho!...
Qual Marcolino, qual Firmino…Será Francisco, como o pai!...
E depois, já mais calmo e a pouco mais de meia voz:
É claro, que os ignorantes da aldeia vão sempre chamar-lhe Chico e muitos acrescentarão Chico do Calhordas, mas isso não será desonra nenhuma para ele uma vez que para mim também nunca o foi.
Era passarão mais alto, mais entroncado e andava em cabelo, como nunca tinha visto o Ti’Manel, que é homem mais baixo e mais fracote.
Embora fosse de noite dava para ver bem as diferenças, afirmou a testemunha Francisco Terras, quando foi mandada levantar pelo senhor juiz, todo vestido de preto, atrás duma grande mesa.
Acabou por ser absolvido o réu Manuel Martins, que todos conheciam como Manel da Eira, por falta de provas e nunca foi condenado ninguém pelo furto da meia dúzia de abóboras, roubadas da horta do Ti’João Lopes.
O queixoso é que nunca ficou convencido da inocência do larápio;
Todavia ante as ameaças do Ti’ Manel da Eira, limitou-se a dizer, na taberna, para descargo de consciência, que depois daquele “calhordas”dizer ao juiz o que disse, não havia outra possibilidade senão absolver o Ti’Manel da Eira.
Por causa do “calhordas”, que nunca será mais que isso, ficamos por aqui e não se fala mais nisso.
E assim foi: o Chico, do Zé Terras, ficou “O Calhordas” para o resto dos seus dias.
O garoto nasceu ao princípio duma noite chuvosa e gélida de finais de Outubro.
Acabou por não dar grande trabalho à “comadre Luísa” que o aparou e lavou na bacia de água quente, num dos quartos dos fundos da casa do Terras que, minutos depois, já na tasca de baixo, mandava vir uma rodada para os presentes, em honra do seu primeiro rebento.
Com alguma emoção, diria, depois de emborcar o copito, que chegou a temer a sorte do gaiato, a avaliar pela mulher que quase não tomou barriga e havia dias que nem sentia a criança.
Graças a Deus estava enganado e o garoto parece que vem esganado com fome; não faz outra coisa que não seja berrar.
Mas, se a “comadre Luísa” diz que está tudo bem e amanhã já parecerá outro, fico descansado.
Deite lá mais uns copos à saúde do Chico, que assim se irá chamar se o meu futuro compadre se não opuser.
Depressa correu a notícia que a Florinda do Terras já tinha tido gente nova e que o menino, embora franzino, fazia pela vida, e tinha boas goelas para berrar.
Cresceu, fez a escola e ajudou os pais nos trabalhos de casa.
Aos dezasseis anos foi aprender a arte de carpinteiro e chegada a altura foi para o serviço militar, assentando praça em Elvas.
Passados dois anos e pouco, voltou à aldeia e continuou a ser o Chico do Terras, até que, depois daquela audiência no tribunal de Mação, todos lhe passaram a chamar “o calhordas”, como foi rebaptizado pelo Ti’João Lopes.
A alcunha, que não incomodava minimamente o Chico, nem alguma vez rejeitou, embora não soubesse o que queria dizer semelhante palavra, era, afinal, mais uma.
Só a Senhora Professora, O Senhor Juiz e os Senhores lá da tropa o chamaram pelo seu verdadeiro nome – Francisco –.
Todos os outros – os pategos lá da terra –, sempre lhe chamaram Chico e isso nunca o incomodou.
Vinha mais uma alcunha, ditada por outro ignorante e não havia de ser isso que o ia incomodar.
Assim, como assim, dizia ele, galhofando, sobretudo quando já estava animado, junto do balcão da taberna:
O meu padrinho, que Deus tem, nunca passou de Chico Figueira e até Cabo de Ordens chegou a ser; O meu avô, que também já lá está, sempre foi o Chico Cabreiro e nunca deixou de ser homem por isso.
Porque haveria eu de ser diferente deles e… se um dia vier a ter um filho e me quiserem fazer a vontade, há-de ser mais um Chico na família.
De facto, quando, anos mais tarde, foi a vez de ir registar o filho e se dirigiu a Penhascoso, onde o senhor Mário Serras era o encarregado do Posto de Registo Civil, teve lugar uma bela história protagonizada pelo “Calhordas”:
O senhor é o pai. Então diga-me: a criança é masculino ou feminina?
O “Calhordas”, empertigou-se, incharam-lhe as veias do pescoço e, com os olhos arregalados, exclamou: espere lá, senhor Mário Serras, não quero nada disso para o meu filho!...
Qual Marcolino, qual Firmino…Será Francisco, como o pai!...
E depois, já mais calmo e a pouco mais de meia voz:
É claro, que os ignorantes da aldeia vão sempre chamar-lhe Chico e muitos acrescentarão Chico do Calhordas, mas isso não será desonra nenhuma para ele uma vez que para mim também nunca o foi.
sábado, 22 de novembro de 2008
O Chico de Baleizão
O Chico cigano nasceu, algures, nas terras da Amareleja, mas, desde sempre, foi conhecido pelo cigano de Baleizão.
Vivia ali pela vila, não faltava a uma feira de Serpa ou de Beja, e um derriço com uma rapariguita, pouco mais que criança, das Neves, ali à entrada da cidade, obrigava-o a dar voltas, para entrar em Beja.
Não era primeira figura de coisa nenhuma, mas não faltava a qualquer evento onde andassem, por perto, os ciganos. Acabou por juntar-se com uma ciganita, do clã dos Mendes, normalmente com arraiais ali por Barbas de Lebre.
O seu maior amigo era um cigano da Cabeça Gorda que lhe arranjava as bestas e lhe ensinava os truques e disfarces utilizados nos negócios de gado.
E o Chico aprendia bem as manhas e sabia negociar, apesar da sua pouca idade.
Quando chegou a altura de ir às sortes, acompanhou os rapazes de Baleizão e lá foram todos a Beja para serem inspeccionados e apurados, ou não, para o serviço militar.
Foi então que ficou célebre a galga que tentou meter ao médico militar que o inspeccionava:
Numa lenga-lenga em que era artista, disse ao senhor doutor que era uma peninha que o Chico cigano não pudesse servir a Pátria.
É que, senhor doutor, estes dois olhinhos que aqui vê, nunca viram, são ceguinhos desde que “narceram”.
“Atão” o senhor vê aquela mosquita ali na parede?!...
É claro que vejo, respondeu o doutor!... Está ali!...
Pois eu não vejo, senhor doutor, disse, tristemente, o Chico…
Bem, a coisa lá passou, e, nos editais, lá vinha à frente do nome do Chico Simão, a indicação de livre de serviço militar.
Ao meio da tarde, depois da almoçarada do costume, os rapazes das sortes juntaram-se e foram ao cinema que, para alguns, era a primeira vez que tal faziam.
Porém, o sargento que estivera nas inspecções foi também à sessão e, ao deparar com o Chico, atirou-lhe, com ar ameaçador:
Com que então, cego de nascença e aqui no cinema?!... O senhor doutor vai gostar de saber que nesta terra até os cegos vêem cinema!...
O Chico não se desmanchou e, voltando-se para o lado, disse:
Oh! João… Não me digas que enganaram o pobre do Chico! …
“Atão” isto não é a camioneta para Baleizão?!... O que é esse tal de cinema que os meus olhinhos nunca puderam ver?!...
E escapuliu-se, porta fora, para não mais ser visto.
Vivia ali pela vila, não faltava a uma feira de Serpa ou de Beja, e um derriço com uma rapariguita, pouco mais que criança, das Neves, ali à entrada da cidade, obrigava-o a dar voltas, para entrar em Beja.
Não era primeira figura de coisa nenhuma, mas não faltava a qualquer evento onde andassem, por perto, os ciganos. Acabou por juntar-se com uma ciganita, do clã dos Mendes, normalmente com arraiais ali por Barbas de Lebre.
O seu maior amigo era um cigano da Cabeça Gorda que lhe arranjava as bestas e lhe ensinava os truques e disfarces utilizados nos negócios de gado.
E o Chico aprendia bem as manhas e sabia negociar, apesar da sua pouca idade.
Quando chegou a altura de ir às sortes, acompanhou os rapazes de Baleizão e lá foram todos a Beja para serem inspeccionados e apurados, ou não, para o serviço militar.
Foi então que ficou célebre a galga que tentou meter ao médico militar que o inspeccionava:
Numa lenga-lenga em que era artista, disse ao senhor doutor que era uma peninha que o Chico cigano não pudesse servir a Pátria.
É que, senhor doutor, estes dois olhinhos que aqui vê, nunca viram, são ceguinhos desde que “narceram”.
“Atão” o senhor vê aquela mosquita ali na parede?!...
É claro que vejo, respondeu o doutor!... Está ali!...
Pois eu não vejo, senhor doutor, disse, tristemente, o Chico…
Bem, a coisa lá passou, e, nos editais, lá vinha à frente do nome do Chico Simão, a indicação de livre de serviço militar.
Ao meio da tarde, depois da almoçarada do costume, os rapazes das sortes juntaram-se e foram ao cinema que, para alguns, era a primeira vez que tal faziam.
Porém, o sargento que estivera nas inspecções foi também à sessão e, ao deparar com o Chico, atirou-lhe, com ar ameaçador:
Com que então, cego de nascença e aqui no cinema?!... O senhor doutor vai gostar de saber que nesta terra até os cegos vêem cinema!...
O Chico não se desmanchou e, voltando-se para o lado, disse:
Oh! João… Não me digas que enganaram o pobre do Chico! …
“Atão” isto não é a camioneta para Baleizão?!... O que é esse tal de cinema que os meus olhinhos nunca puderam ver?!...
E escapuliu-se, porta fora, para não mais ser visto.
sábado, 15 de novembro de 2008
O Tonho das Inguias
O António Freixo, mais conhecido por Tonho das Inguias, era temente a Deus e cumpridor dos seus deveres de cristão.
Casado, pai e já avô, honrara sempre os seus compromissos e, ali onde o viam, era um caçador de se lhe tirar o chapéu. Não só pela sua boa pontaria, como pelo conhecimento dos sítios, hábitos e costumes da caça, em toda aquela faixa do cimo da Cova da Beira, já a puxar para a Guarda.
Um dia, regando um chão de batatas, na horta do Pedrógão, a caminho da Bendada, aproveitava para vigiar o vivo que tasquinhava no lameiro de cima, encostada ao baldio.
Era tempo de caça e tinha a espingarda encostada a um carvalho, à entrada da horta.
Naquele cair de tarde, tudo, em volta, era sossego e calma.
De repente, surgiu de trás de umas pedras um caçador, que depois de dar a salvação, disse ser de Quarta-Feira e ter chumbado uma perdiz, pouco depois de Dirão da Rua, na encosta da Sortelha.
Pela direcção que tomou era bem possível que tivesse vindo cair para aquelas bandas.
O Tonho gostava de chalaças, mas fazer-lhe o ninho atrás da orelha era coisa para que não estava pelos ajustes.
Era dos poucos casos em que reagia mal. Todavia, enchendo-se de calma, resolveu-se a gozar o pratinho e, o mais lentamente que pôde, disse:
Ora bem, vamos lá a ver!...
Atão vomecê diz que é de Quarta-feira e andava a caçar perto da Sortelha.
Do lado de lá, ou na encosta das Águas?...
E, sem esperar pela resposta, continuou:
E, na sua opinião, quantos chumbos e em que parte do corpo deu na avezinha?...
Não deve ter sido grave o ferimento para achar que poderia ter vindo até aqui!...
Quanto tempo demorou vomecê a chegar cá?... De duas a três horas, calculo!...
E cães não traz?... Ou cansaram-se da longa jornada e ficaram a descansar?!...
Ah!... Agora se me alembra que há aí uns três quartos de hora, pousou uma diaba além naquele barroco cimeiro e olhe que trazia tal velocidade que arrastou o pedregulho mais de cinco metros pela minha adentro.
Veja vomecê, uma coisa que está ali desde que o mundo é mundo!...
Ele sempre há coisas, amigo!...
Olhe, ou está para lá aninhada, ou morreu no embate, ou levantou outra vez e, Vale do Zêzere acima, já a estas horas passou de Valhelhas a caminho de Manteigas!...
Se arrancar já e for ligeirinho, estará lá antes de manhã!...
O caçador andou a rondar a pedra enorme que o Tonho lhe ensinara e, com nova salvação partiu dali, em direcção ao sol-posto, sem nunca mais ser visto.
O Tonho andou incomodado, pois não voltou a ver a criatura.
Como não desse por qualquer notícia de morte ou desaparecimento, acabou por ir-se desculpando, mas, na Quaresma, a consciência pesou-lhe e foi ao padre António, de Caria, confessar-se:
Estava arrependido de ter mandado para o desconhecido um caçador, que, embora mais mentiroso que ele, o obrigou a faltar à verdade.
É que, senhor padre, eu informei-o que a perdiz tinha empurrado o barroco maior, da minha do Pedrógão, uns cinco metros.
Na verdade o penedo só se deslocou um palmo, bem medido!...
O padre, fez-lhe o sinal da cruz sobre a cabeça e deu-lhe como penitência: agora, vais arranjar amigos e repor o barroco no sítio onde sempre esteve.
Se Deus o deixou ali não vamos ser nós a mudá-lo.
Se lá chegares e o barroco já estiver no lugar, descansa.
Casado, pai e já avô, honrara sempre os seus compromissos e, ali onde o viam, era um caçador de se lhe tirar o chapéu. Não só pela sua boa pontaria, como pelo conhecimento dos sítios, hábitos e costumes da caça, em toda aquela faixa do cimo da Cova da Beira, já a puxar para a Guarda.
Um dia, regando um chão de batatas, na horta do Pedrógão, a caminho da Bendada, aproveitava para vigiar o vivo que tasquinhava no lameiro de cima, encostada ao baldio.
Era tempo de caça e tinha a espingarda encostada a um carvalho, à entrada da horta.
Naquele cair de tarde, tudo, em volta, era sossego e calma.
De repente, surgiu de trás de umas pedras um caçador, que depois de dar a salvação, disse ser de Quarta-Feira e ter chumbado uma perdiz, pouco depois de Dirão da Rua, na encosta da Sortelha.
Pela direcção que tomou era bem possível que tivesse vindo cair para aquelas bandas.
O Tonho gostava de chalaças, mas fazer-lhe o ninho atrás da orelha era coisa para que não estava pelos ajustes.
Era dos poucos casos em que reagia mal. Todavia, enchendo-se de calma, resolveu-se a gozar o pratinho e, o mais lentamente que pôde, disse:
Ora bem, vamos lá a ver!...
Atão vomecê diz que é de Quarta-feira e andava a caçar perto da Sortelha.
Do lado de lá, ou na encosta das Águas?...
E, sem esperar pela resposta, continuou:
E, na sua opinião, quantos chumbos e em que parte do corpo deu na avezinha?...
Não deve ter sido grave o ferimento para achar que poderia ter vindo até aqui!...
Quanto tempo demorou vomecê a chegar cá?... De duas a três horas, calculo!...
E cães não traz?... Ou cansaram-se da longa jornada e ficaram a descansar?!...
Ah!... Agora se me alembra que há aí uns três quartos de hora, pousou uma diaba além naquele barroco cimeiro e olhe que trazia tal velocidade que arrastou o pedregulho mais de cinco metros pela minha adentro.
Veja vomecê, uma coisa que está ali desde que o mundo é mundo!...
Ele sempre há coisas, amigo!...
Olhe, ou está para lá aninhada, ou morreu no embate, ou levantou outra vez e, Vale do Zêzere acima, já a estas horas passou de Valhelhas a caminho de Manteigas!...
Se arrancar já e for ligeirinho, estará lá antes de manhã!...
O caçador andou a rondar a pedra enorme que o Tonho lhe ensinara e, com nova salvação partiu dali, em direcção ao sol-posto, sem nunca mais ser visto.
O Tonho andou incomodado, pois não voltou a ver a criatura.
Como não desse por qualquer notícia de morte ou desaparecimento, acabou por ir-se desculpando, mas, na Quaresma, a consciência pesou-lhe e foi ao padre António, de Caria, confessar-se:
Estava arrependido de ter mandado para o desconhecido um caçador, que, embora mais mentiroso que ele, o obrigou a faltar à verdade.
É que, senhor padre, eu informei-o que a perdiz tinha empurrado o barroco maior, da minha do Pedrógão, uns cinco metros.
Na verdade o penedo só se deslocou um palmo, bem medido!...
O padre, fez-lhe o sinal da cruz sobre a cabeça e deu-lhe como penitência: agora, vais arranjar amigos e repor o barroco no sítio onde sempre esteve.
Se Deus o deixou ali não vamos ser nós a mudá-lo.
Se lá chegares e o barroco já estiver no lugar, descansa.
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
O Ti’ Manel dos Arcos
No beco, por trás de uma arcada, abria portas, todos os dias, a tasca do Ti’Jaquim das Iscas, que, nos anos sessenta do século passado, chegou a ser um dos locais de passagem obrigatória, na cidade de Faro.
Ali se juntavam os jornalistas, vendedores, delegados de propaganda médica e outros viajantes, atrás duma cataplana de amêijoas, duma caldeirada, ou dos petiscos de ocasião de que o “chefe Fernando” era artífice experimentado e reconhecido.
Depois do jantar que quase sempre descaía em ceia, passava-se no armazém do Ti’Manel dos Arcos que ocupava os baixos de duas ou três casas, no bairro antigo de Faro, a poucos metros da tasca do Ti’Jaquim das Iscas.
Faziam-se as compras de amêndoas, figos secos, mel e medronheira – simples, da serra do Caldeirão, ou com mel, de um qualquer armazenista de Loulé –.
O Ti’Manel propagandeava a mercadoria e ia servindo rodadas, aos circunstantes e, sempre que reconhecia alguma cara nova no grupo, procedia ao ritual da iniciação do neófito.
Se o novato respondia, a contento do Ti’Manel, a despesa era por conta da casa; se não passava no exame, preparava vinte ou trinta escudos e recebia a alforria.
As perguntas eram sempre as mesmas: Qual é a toalha do mel? O que quer dizer uma pistola sobre um saco de cimento? O que é que pode ser mais burro que um burro?
As respostas, muitos simples: A água; cimento armado e, mais burro que um burro, só outro burro, não importa de que espécie.
O Ti’Manel fazia sempre a festa; ou por ter encontrado alguém com finos dotes, ou por conseguir ensinar alguma coisa. E, talvez, porque encaixava mais uns escudos, ainda que, muitas vezes, os iniciados já fossem prevenidos e passassem no teste.
Para aquele montanheiro, que conhecia a serra tão bem como as suas mãos, nunca se acabavam as histórias.
É claro que todas elas envolviam o macho “judas”, o cão “farrusco” e o dono dos dois, que, em caso de aperto, faziam o que tinham a fazer.
Somos um grupo de comandos, onde ninguém falha e, até hoje, há-de aparecer o primeiro que nos venha pôr cuspinho no nariz.
Depois, em tom de protagonista: Olhem, meus amigos, mentiroso sou eu, mas na hora de falar verdade também sei fazê-lo: Então vamos lá a ver se consigo contar-vos um caso que se passou ali para as bandas de Salir, quase às vistas de Loulé:
Tinha comprado umas arrobas de amêndoa, dois cantaritos de mel e uma meia alcofa de figos secos a um parente de Alte.
O judas vinha ajoujado debaixo dos alforges e o farrusco toscava, na frente, a limpeza do caminho.
Por trás duma curva, sai-me um marafado da sombra duma alfarrobeira e, logo adiante estavam mais dois, sentados na beira do caminho, com ar de poucos amigos.
O da alfarrobeira, com falas mansas, disse-me: olá, tiozinho!... Então o que leva aí para nós?... A vida tem corrido mal e temos precisão de qualquer coisa!...
E, por azar dele, foi-se chegando ao alcance do farrusco, mostrando a faca com que cortava um bocadito de pau, enquanto um outro, de boina, se aproximava da traseira do macho.
Um assobio e já o “farrusco” filava o braço do chefe, deitando-o a terra.
Um coice do “judas” e o segundo ficava com um joelho desmanchado.
Quanto ao terceiro, pernas para que te quero e sumiu-se pelo mato dentro, seguido pelo chefe que conseguiu soltar-se do farrusco, deixando-lhe, nos dentes, um bocado da manga do gibão.
O do joelho avariado lá ficou a gemer e nós os três, seguimos caminho.
É que cá no nosso grupo, cada um tem as suas manias: o farrusco fica como louco logo que vê facas e onde põe a boca é seu; o judas acha que a menos de um metro da sua traseira só se chega o dono e coice que acerte é para partir. Se o inimigo vier de frente, cada dentada sua traz bocado.
Eu, coordeno as operações, ponho a fusca de sobreaviso no bolso e, com um pau na mão, faço bem a minha parte.
Ainda está para nascer o malandro que nos faça frente, ainda que venha à falsa fé.
Aliás, o merecimento dos nossos valores tem fama por toda a Serra e tem-nos aberto muitos caminhos por todo esse Caldeirão.
Ali se juntavam os jornalistas, vendedores, delegados de propaganda médica e outros viajantes, atrás duma cataplana de amêijoas, duma caldeirada, ou dos petiscos de ocasião de que o “chefe Fernando” era artífice experimentado e reconhecido.
Depois do jantar que quase sempre descaía em ceia, passava-se no armazém do Ti’Manel dos Arcos que ocupava os baixos de duas ou três casas, no bairro antigo de Faro, a poucos metros da tasca do Ti’Jaquim das Iscas.
Faziam-se as compras de amêndoas, figos secos, mel e medronheira – simples, da serra do Caldeirão, ou com mel, de um qualquer armazenista de Loulé –.
O Ti’Manel propagandeava a mercadoria e ia servindo rodadas, aos circunstantes e, sempre que reconhecia alguma cara nova no grupo, procedia ao ritual da iniciação do neófito.
Se o novato respondia, a contento do Ti’Manel, a despesa era por conta da casa; se não passava no exame, preparava vinte ou trinta escudos e recebia a alforria.
As perguntas eram sempre as mesmas: Qual é a toalha do mel? O que quer dizer uma pistola sobre um saco de cimento? O que é que pode ser mais burro que um burro?
As respostas, muitos simples: A água; cimento armado e, mais burro que um burro, só outro burro, não importa de que espécie.
O Ti’Manel fazia sempre a festa; ou por ter encontrado alguém com finos dotes, ou por conseguir ensinar alguma coisa. E, talvez, porque encaixava mais uns escudos, ainda que, muitas vezes, os iniciados já fossem prevenidos e passassem no teste.
Para aquele montanheiro, que conhecia a serra tão bem como as suas mãos, nunca se acabavam as histórias.
É claro que todas elas envolviam o macho “judas”, o cão “farrusco” e o dono dos dois, que, em caso de aperto, faziam o que tinham a fazer.
Somos um grupo de comandos, onde ninguém falha e, até hoje, há-de aparecer o primeiro que nos venha pôr cuspinho no nariz.
Depois, em tom de protagonista: Olhem, meus amigos, mentiroso sou eu, mas na hora de falar verdade também sei fazê-lo: Então vamos lá a ver se consigo contar-vos um caso que se passou ali para as bandas de Salir, quase às vistas de Loulé:
Tinha comprado umas arrobas de amêndoa, dois cantaritos de mel e uma meia alcofa de figos secos a um parente de Alte.
O judas vinha ajoujado debaixo dos alforges e o farrusco toscava, na frente, a limpeza do caminho.
Por trás duma curva, sai-me um marafado da sombra duma alfarrobeira e, logo adiante estavam mais dois, sentados na beira do caminho, com ar de poucos amigos.
O da alfarrobeira, com falas mansas, disse-me: olá, tiozinho!... Então o que leva aí para nós?... A vida tem corrido mal e temos precisão de qualquer coisa!...
E, por azar dele, foi-se chegando ao alcance do farrusco, mostrando a faca com que cortava um bocadito de pau, enquanto um outro, de boina, se aproximava da traseira do macho.
Um assobio e já o “farrusco” filava o braço do chefe, deitando-o a terra.
Um coice do “judas” e o segundo ficava com um joelho desmanchado.
Quanto ao terceiro, pernas para que te quero e sumiu-se pelo mato dentro, seguido pelo chefe que conseguiu soltar-se do farrusco, deixando-lhe, nos dentes, um bocado da manga do gibão.
O do joelho avariado lá ficou a gemer e nós os três, seguimos caminho.
É que cá no nosso grupo, cada um tem as suas manias: o farrusco fica como louco logo que vê facas e onde põe a boca é seu; o judas acha que a menos de um metro da sua traseira só se chega o dono e coice que acerte é para partir. Se o inimigo vier de frente, cada dentada sua traz bocado.
Eu, coordeno as operações, ponho a fusca de sobreaviso no bolso e, com um pau na mão, faço bem a minha parte.
Ainda está para nascer o malandro que nos faça frente, ainda que venha à falsa fé.
Aliás, o merecimento dos nossos valores tem fama por toda a Serra e tem-nos aberto muitos caminhos por todo esse Caldeirão.
domingo, 2 de novembro de 2008
As “bruxas”
O Ti'António Lindo morava no “Casal”, ao canto do pequeno adro da capela, no andar de cima de uma casita, estreita e comprida, com uma varandita de pedra, com uns dois metros por um e guardas de um palmo de altura.
Nos baixos da casa, a loja albergava as galinhas, duas cabritas e uma ovelha, que a Ti'Carolina levava, todos os dias, até ao Casalinho.
Ali, na melhor das poucas hortas da família, uma mina, razoavelmente fornecida de água, dava para regar diariamente e era, por isso, um oásis naquela encosta sul da serra.
Homem de muitas prosas e poucas obras, como dizia o meu avô, o Ti'António Lindo, descia pela pequena escada de pedra – uns quatro degraus – e ao fundo da rua, junto à casa do irmão Abílio, virava à direita para ficar em frente da porta de meu avô, onde se sentava no poial de pedra, coberto pela sombra, na hora da sesta.
Tinha percorrido, de casa até ali, uns sessenta metros.
Encostado ao cajadito, que sempre o acompanhava e lhe servia de amparo, dava a salvação e sentava-se no poial, de onde emitia e captava as últimas novidades e bilhardices, à boa maneira das comadres.
Numa dessas prosas, que eu muitas vezes espicaçava, contou-me o Ti'António Lindo a história das “bruxas do Lavadouro”, sítio junto à nossa horta do mesmo nome, situada na ribeira, no local onde o talvegue aperta e uma fiada de poldras, bastante polidas e desgastadas pelos milhares de pés e patas que por ali passaram, fazem a ligação entre os dois lados da ribeira.
Na maior parte do ano passa-se a pé enxuto, mas no inverno, tem de se ir dar a volta à ponte, uns cem metros, a jusante.
Logo abaixo das poldras, dum e do outro lado, estendem-se as pedras da lavagem, na orla dos lameiros, onde as mulheres estendem a roupa a corar ao sol.
Também ali, nas golas da corrente, se lavam as tripas dos porcos, em tempo de matanças.
Sobranceira às pedras da passagem, uma boiça, de silvas e tojos, ocupa um pequeno patamar, um metro acima do nível da água.
Era, segundo o Ti'António Lindo, o local onde as “bruxas”passavam.
O “diabo” sentava-se do lado de lá das pedras de passagem, naquele altinho, onde agora só há mato e balças, e assistia à passagem das bruxas da Serra, que se dirigiam para Alcaravela; era ali que fazia a contagem e via a habilidade de cada uma, para ter a certeza que seriam capazes de percorrer, em cada noite, sete vilas acasteladas, e chegarem a tempo ao baile.
Como as pedras estão muito puídas e gastas e as bruxas têm pés de cabra, muitas escorregavam e aleijavam-se; o mafarrico, sentado no seu trono, sem elas o verem, é claro, fartava-se de rir e assistia à desistência das que tinham de voltar logo para trás.
Se reparares bem, anda aí uma com uma perna meio desconjuntada e outra com uma partida!...
Depois da passagem, numa grande restolhada seguiam caminho fora.
Nos cruzamentos dançavam em volta do diabo, que seguia na cambada, sem nunca se mostrar, nem ser visto pelas “bruxas”.
Percorridas as sete vilas acasteladas, tinham de se juntar, antes do bater da meia-noite, no terreiro do Chão da Guedelha, além nos altos do cabeço Barreiro, para o bailado final e a grande festa ao Diabo.
Dali desapareciam todas, como por encanto, e iam meter-se na cama, ao lado dos homens, que nem deviam chegar a dar pela falta delas.
Só que um dia o “João Verdugo”, gozado na taberna por nem sequer dar pela falta da mulher e já com um grão na asa muito bem aviado, deu pela falta da mulher na cama.
Pôs-se à coca e quando ela voltava de uma necessidade, pois estava com um desarranjo de barriga, desatou à bordoada e deu-lhe, de tal maneira, que a pobre foi parar ao endireita com umas costelas partidas e nódoas negras pelo corpo.
Quando, daí em diante, lhe falavam em “bruxas”, limitava-se a dizer que a dele estava curada e, tão depressa, não voltaria a sair.
A rematar, o Ti António Lindo sorria e dizia-me: Não acredites nisto, ouviste!...
Todos dizem que há “bruxas”, mas nunca ninguém as viu... a não ser que esteja com os copos, ou seja um grande cagarola!...
São coisas de mulheres, ouviste?!...
Nos baixos da casa, a loja albergava as galinhas, duas cabritas e uma ovelha, que a Ti'Carolina levava, todos os dias, até ao Casalinho.
Ali, na melhor das poucas hortas da família, uma mina, razoavelmente fornecida de água, dava para regar diariamente e era, por isso, um oásis naquela encosta sul da serra.
Homem de muitas prosas e poucas obras, como dizia o meu avô, o Ti'António Lindo, descia pela pequena escada de pedra – uns quatro degraus – e ao fundo da rua, junto à casa do irmão Abílio, virava à direita para ficar em frente da porta de meu avô, onde se sentava no poial de pedra, coberto pela sombra, na hora da sesta.
Tinha percorrido, de casa até ali, uns sessenta metros.
Encostado ao cajadito, que sempre o acompanhava e lhe servia de amparo, dava a salvação e sentava-se no poial, de onde emitia e captava as últimas novidades e bilhardices, à boa maneira das comadres.
Numa dessas prosas, que eu muitas vezes espicaçava, contou-me o Ti'António Lindo a história das “bruxas do Lavadouro”, sítio junto à nossa horta do mesmo nome, situada na ribeira, no local onde o talvegue aperta e uma fiada de poldras, bastante polidas e desgastadas pelos milhares de pés e patas que por ali passaram, fazem a ligação entre os dois lados da ribeira.
Na maior parte do ano passa-se a pé enxuto, mas no inverno, tem de se ir dar a volta à ponte, uns cem metros, a jusante.
Logo abaixo das poldras, dum e do outro lado, estendem-se as pedras da lavagem, na orla dos lameiros, onde as mulheres estendem a roupa a corar ao sol.
Também ali, nas golas da corrente, se lavam as tripas dos porcos, em tempo de matanças.
Sobranceira às pedras da passagem, uma boiça, de silvas e tojos, ocupa um pequeno patamar, um metro acima do nível da água.
Era, segundo o Ti'António Lindo, o local onde as “bruxas”passavam.
O “diabo” sentava-se do lado de lá das pedras de passagem, naquele altinho, onde agora só há mato e balças, e assistia à passagem das bruxas da Serra, que se dirigiam para Alcaravela; era ali que fazia a contagem e via a habilidade de cada uma, para ter a certeza que seriam capazes de percorrer, em cada noite, sete vilas acasteladas, e chegarem a tempo ao baile.
Como as pedras estão muito puídas e gastas e as bruxas têm pés de cabra, muitas escorregavam e aleijavam-se; o mafarrico, sentado no seu trono, sem elas o verem, é claro, fartava-se de rir e assistia à desistência das que tinham de voltar logo para trás.
Se reparares bem, anda aí uma com uma perna meio desconjuntada e outra com uma partida!...
Depois da passagem, numa grande restolhada seguiam caminho fora.
Nos cruzamentos dançavam em volta do diabo, que seguia na cambada, sem nunca se mostrar, nem ser visto pelas “bruxas”.
Percorridas as sete vilas acasteladas, tinham de se juntar, antes do bater da meia-noite, no terreiro do Chão da Guedelha, além nos altos do cabeço Barreiro, para o bailado final e a grande festa ao Diabo.
Dali desapareciam todas, como por encanto, e iam meter-se na cama, ao lado dos homens, que nem deviam chegar a dar pela falta delas.
Só que um dia o “João Verdugo”, gozado na taberna por nem sequer dar pela falta da mulher e já com um grão na asa muito bem aviado, deu pela falta da mulher na cama.
Pôs-se à coca e quando ela voltava de uma necessidade, pois estava com um desarranjo de barriga, desatou à bordoada e deu-lhe, de tal maneira, que a pobre foi parar ao endireita com umas costelas partidas e nódoas negras pelo corpo.
Quando, daí em diante, lhe falavam em “bruxas”, limitava-se a dizer que a dele estava curada e, tão depressa, não voltaria a sair.
A rematar, o Ti António Lindo sorria e dizia-me: Não acredites nisto, ouviste!...
Todos dizem que há “bruxas”, mas nunca ninguém as viu... a não ser que esteja com os copos, ou seja um grande cagarola!...
São coisas de mulheres, ouviste?!...
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
O palheiro da Renda
O palheiro – construção rudimentar, formada por quatro paredes de pedra e barro, tecto de telha vã de uma só água, porta de tábuas de pinho, presa por dois gonzos e uma fechadura do ferreiro da terra -, ainda estava, há poucos anos, em razoável estado de conservação.
Todavia, o incêndio que por ali passou em meados dos anos 90 transformou o palheiro num monte de cinzas e telhas, deixando de pé as paredes, para, mais tarde as estevas e as balças acabarem por desfigurar o local, que está, praticamente, irreconhecível.
O palheiro da Renda, com uma dúzia de metros quadrados de área, era usado para guarda de fenos e pastagens, especialmente como local de arrecadação de emergência, quando as trovoadas de Maio não davam tempo para levar mais longe o ferrejo que secava ao sol.
A chave, guardada num requebro da parede, do lado direito da porta, era usada apenas por quem sabia do seu esconderijo e, portanto, devidamente autorizado pelos seus donos.
O lugar não era, propriamente, um local de passagem, pelo que só as pessoas conhecedoras, ou intencionadas, faziam uso do palheiro.
Um dos hóspedes habituais do local era o guarda-rios que, ou por não lhe apetecer montar a bicicleta pasteleira e ir para casa, nos confins de Alcaravela, ou por não sentir já o equilíbrio suficiente, ia até ao palheiro, curtir a bebedeira e passar a noite.
Para mais que, como dizia, sendo o local do palheiro a uns escassos vinte metros da ribeira, pernoitava no local de trabalho.
Sempre foi insuspeito o uso dado ao palheiro; só na cabeça do moleiro que passava
nas redondezas para ir para a azenha do Ferrugento, ali ao fundo do Cabecinho Agudo, se arquitectou uma maneira de pregar um cagaço ao guarda-rios, depois de lhe ter contado histórias sobre o local, atrás de uns copos, na taberna.
Um dia, ao pôr-do-sol, o moleiro viu o guarda-rios ficar na taberna, quando se dirigia para a azenha.
Pelo caminho, atrás do macho carregado de taleigos, foi arquitectando o susto que pregaria ao guarda-rios no palheiro. E passou aos factos:
Foi à azenha, pôs tudo a trabalhar, encheu a tremonha de grão, regulou a água, fechou o cãozito, para que o não seguisse, pensou o macho e esperou que baixasse o escuro para ir rondar o palheiro e acagaçar o guarda-rios.
O silêncio pesava sobre o escuro de breu e apenas um ou outro pirilampo cruzava o ar e interrompia o ladrar longínquo dos cães, lá ao cimo, na aldeia.
De uma fresta da porta do palheiro saía um ténue clarão; sinal de que o lugar já estava habitado. Aproximou-se, espreitou, mas não conseguiu ver nada. Ouviu vozes surdas e imperceptíveis, apercebendo-se, de imediato, que o guarda-rios não estava só.
Foi por trás, onde o palheiro era mais baixo, devido ao desnível do terreno, arredou, muito lentamente uma telha e olhou para dentro do palheiro, onde ardia, junto à porta, uma fogueira muito suave, de cujo lume se espalhava uma luz ténue que deu para ver dois corpos, sobre uma manta, aberta sobre um molho de palha.
Guarda-rios e companheira estavam muito juntos; o moleiro, apenas olhou mais uma vez, depois de fechar os olhos, e, com milhares de ideias na cabeça, retirou-se e dirigiu-se, cabisbaixo e acabrunhado, para a azenha.
Ali, sentou-se, com a cabeça entre as mãos e meditou…
Nas muitas vezes que havia provocado o guarda-rios, caçoando do seu aspecto e lembrando-lhe que há testos para todas as panelas e ele ainda encontraria o dele; que afinal dentro do género dele até havia muito pior, e outras coisas do género.
Agora sentia-se incomodado com a calma e bonomia com que o guarda-rios ouvia todos os impropérios do moleiro e acabava por sorrir, como se nada fosse com ele.
Percebia, agora, o gozo que deviam dar ao guarda-rios as palavras com que pensava achincalhá-lo.
Vieram-lhe à mente todas as vezes que olhou para aquela figura insignificante, com um olho sempre vesgo e meio cerrado, uma perna arrastada e meio cambado de ombros, os trejeitos da boca e, não raro, uma baba ao canto do queixo.
Não sentia pena dele; considerava-o infeliz e nada fazia para o aliviar e, todavia, parecia que nada incomodavam o guarda-rios tais impropérios.
Agora entendia, agora sentia o ricochete de tudo o que lhe dissera.
Sem se dar pelo passar das horas, olhou o céu e reparou que a moagem estava quase no fim. Era preciso tratar do macho e abrir o cão que continuava fechado, preparar tudo e partir para casa; onde, certamente, a mulher, já consolada pelo guarda-rios, tinha tido tempo de voltar e esperava, por ele, na cama.
A vida continuou e nem o moleiro, nem o guarda-rios, nem a mulher, alguma vez denotaram qualquer atitude estranha, quando se falavam, ao cruzar-se, na aldeia, ou na taberna.
O moleiro resolveu não deixar a mulher só, quando pressentia o guarda-rios por perto; a mulher e o guarda-rios, provavelmente, atribuíram ao acaso a falta de oportunidades para se encontrarem.
Só um pequeno papel, rabiscado pelo moleiro e misturado num rolo de documentos escondidos num buraco da azenha e encontrado anos depois da morte do moleiro, deu conta dos remorsos do seu autor e permitiu imaginar o cenário descrito.
Nunca, da boca dos três intervenientes, saiu qualquer palavra sobre o assunto.
Todavia, o incêndio que por ali passou em meados dos anos 90 transformou o palheiro num monte de cinzas e telhas, deixando de pé as paredes, para, mais tarde as estevas e as balças acabarem por desfigurar o local, que está, praticamente, irreconhecível.
O palheiro da Renda, com uma dúzia de metros quadrados de área, era usado para guarda de fenos e pastagens, especialmente como local de arrecadação de emergência, quando as trovoadas de Maio não davam tempo para levar mais longe o ferrejo que secava ao sol.
A chave, guardada num requebro da parede, do lado direito da porta, era usada apenas por quem sabia do seu esconderijo e, portanto, devidamente autorizado pelos seus donos.
O lugar não era, propriamente, um local de passagem, pelo que só as pessoas conhecedoras, ou intencionadas, faziam uso do palheiro.
Um dos hóspedes habituais do local era o guarda-rios que, ou por não lhe apetecer montar a bicicleta pasteleira e ir para casa, nos confins de Alcaravela, ou por não sentir já o equilíbrio suficiente, ia até ao palheiro, curtir a bebedeira e passar a noite.
Para mais que, como dizia, sendo o local do palheiro a uns escassos vinte metros da ribeira, pernoitava no local de trabalho.
Sempre foi insuspeito o uso dado ao palheiro; só na cabeça do moleiro que passava
nas redondezas para ir para a azenha do Ferrugento, ali ao fundo do Cabecinho Agudo, se arquitectou uma maneira de pregar um cagaço ao guarda-rios, depois de lhe ter contado histórias sobre o local, atrás de uns copos, na taberna.
Um dia, ao pôr-do-sol, o moleiro viu o guarda-rios ficar na taberna, quando se dirigia para a azenha.
Pelo caminho, atrás do macho carregado de taleigos, foi arquitectando o susto que pregaria ao guarda-rios no palheiro. E passou aos factos:
Foi à azenha, pôs tudo a trabalhar, encheu a tremonha de grão, regulou a água, fechou o cãozito, para que o não seguisse, pensou o macho e esperou que baixasse o escuro para ir rondar o palheiro e acagaçar o guarda-rios.
O silêncio pesava sobre o escuro de breu e apenas um ou outro pirilampo cruzava o ar e interrompia o ladrar longínquo dos cães, lá ao cimo, na aldeia.
De uma fresta da porta do palheiro saía um ténue clarão; sinal de que o lugar já estava habitado. Aproximou-se, espreitou, mas não conseguiu ver nada. Ouviu vozes surdas e imperceptíveis, apercebendo-se, de imediato, que o guarda-rios não estava só.
Foi por trás, onde o palheiro era mais baixo, devido ao desnível do terreno, arredou, muito lentamente uma telha e olhou para dentro do palheiro, onde ardia, junto à porta, uma fogueira muito suave, de cujo lume se espalhava uma luz ténue que deu para ver dois corpos, sobre uma manta, aberta sobre um molho de palha.
Guarda-rios e companheira estavam muito juntos; o moleiro, apenas olhou mais uma vez, depois de fechar os olhos, e, com milhares de ideias na cabeça, retirou-se e dirigiu-se, cabisbaixo e acabrunhado, para a azenha.
Ali, sentou-se, com a cabeça entre as mãos e meditou…
Nas muitas vezes que havia provocado o guarda-rios, caçoando do seu aspecto e lembrando-lhe que há testos para todas as panelas e ele ainda encontraria o dele; que afinal dentro do género dele até havia muito pior, e outras coisas do género.
Agora sentia-se incomodado com a calma e bonomia com que o guarda-rios ouvia todos os impropérios do moleiro e acabava por sorrir, como se nada fosse com ele.
Percebia, agora, o gozo que deviam dar ao guarda-rios as palavras com que pensava achincalhá-lo.
Vieram-lhe à mente todas as vezes que olhou para aquela figura insignificante, com um olho sempre vesgo e meio cerrado, uma perna arrastada e meio cambado de ombros, os trejeitos da boca e, não raro, uma baba ao canto do queixo.
Não sentia pena dele; considerava-o infeliz e nada fazia para o aliviar e, todavia, parecia que nada incomodavam o guarda-rios tais impropérios.
Agora entendia, agora sentia o ricochete de tudo o que lhe dissera.
Sem se dar pelo passar das horas, olhou o céu e reparou que a moagem estava quase no fim. Era preciso tratar do macho e abrir o cão que continuava fechado, preparar tudo e partir para casa; onde, certamente, a mulher, já consolada pelo guarda-rios, tinha tido tempo de voltar e esperava, por ele, na cama.
A vida continuou e nem o moleiro, nem o guarda-rios, nem a mulher, alguma vez denotaram qualquer atitude estranha, quando se falavam, ao cruzar-se, na aldeia, ou na taberna.
O moleiro resolveu não deixar a mulher só, quando pressentia o guarda-rios por perto; a mulher e o guarda-rios, provavelmente, atribuíram ao acaso a falta de oportunidades para se encontrarem.
Só um pequeno papel, rabiscado pelo moleiro e misturado num rolo de documentos escondidos num buraco da azenha e encontrado anos depois da morte do moleiro, deu conta dos remorsos do seu autor e permitiu imaginar o cenário descrito.
Nunca, da boca dos três intervenientes, saiu qualquer palavra sobre o assunto.
segunda-feira, 20 de outubro de 2008
O terreiro dos ladrões
Atrás da Portela da Casinha, no cimo da chapada dos Brejos, meia encosta do Cabeço Barreiro e não longe da vereda que dá para os cimos da Horta de Casa, ergue-se um palanque natural de terra lisa, onde ainda hoje se pode ver a delimitação, de pedras, que cerca a zona plana.
Diziam os mais antigos que aquele lugar era como que um sítio excomungado, onde se refugiavam os ladrões e outros malfeitores, uma vez que chegados ali, ninguém lhes podia fazer mal.
Melhor dizendo, ninguém se atrevia a entrar naquele recinto em perseguição de alguém, embora todos ignorassem o que poderia acontecer a quem violasse tal preceito e desconhecessem alguém que a tal se tivesse aventurado.
Dizia-se que um senhor de grandes posses que outrora habitara na região se sentava naquele pequeno planalto a contemplar as suas terras que se estendiam para além do vasto horizonte dali desfrutado.
Ali construiu uma casa senhorial, ainda que bem camuflada, onde praticava toda a espécie de desmandos sobre as gentes locais, incluindo um recinto com grande número de concubinas e malfeitores às suas ordens.
Dizia-se, também, que a casa do demo, como entre dentes lhe chamavam, estava toda coberta por uma árvore – um enorme castanheiro – que a ocultava completamente de quem dela se acercasse e permitia aos vigias, colocados nos mais altos ramos, ver quem se aproximasse e defender o local.
Dizia-se, ainda, que num dia de S. Bartolomeu – quando, segundo a voz do povo, o Diabo anda uma hora à solta, com liberdade para fazer o que quiser –, um antepassado do malvado que habitava a casa, teve o próprio Demo ali hospedado e fez com ele tratos de malfeitorias para o futuro.
Por isso se dizia que o local se chamava terreiro de S. Bartolomeu e a casa, mansão do Demónio.
Aos cumes da serra que fazia ângulo com o Cabeço Barreiro, para nascente, assomavam muitos populares de terras vizinhas e chegou mesmo a ser estabelecido um posto de vigia sobre a mansão do Demónio, para ver se afrouxavam as guardas e podiam descer e cultivar as terras soalheiras e férteis do sopé do monte.
De entre os frequentadores começou a insinuar-se um sujeito corpulento, portador de fama de bom lutador e ardiloso caçador; no jogo do pau nunca havia sido vencido e no corpo a corpo ninguém, alguma vez, lhe pusera cuspinho no nariz.
Aos poucos foi sendo empurrado para chefiar uma investida contra a casa do mal e a liquidação do poder do dono.
Era, ainda, preciso libertar os serviçais que ali viviam em regime de escravatura e tomando posse das terras, muita gente viria a lucrar.
Aos poucos o “serra” – assim se denominava, por alcunha, é claro, o chefe dos grupos – foi organizando e treinando o esquema que preparou para tomar a casa.
Estabeleceu, para o ataque, um dia quente e seco de verão e como base da acção, doze pontos em redor da casa.
Em cada um dos locais, preparou materiais e gente para, ao seu sinal, lançarem um violento incêndio, na direcção da casa.
Muitos outros, de reserva, juntaram-se com todo o tipo de varapaus e lanças, para, a coberto do fogo, irem tomando a terra queimada e, também, tratarem os que tentassem fugir da casa e seus domínios.
Ainda que o “serra” não quisesse violência gratuita apoiava todo o tipo de limpeza, para evitar surpresas.
Foram libertados muitos trabalhadores e concubinas e do velho e imponente castanheiro restaram apenas cinzas.
Uma imagem que foi posta a recato das chamas por alguns dos populares que ao verem chegar o lume se juntaram aos invasores, foi colocada no local onde viria a ser o centro do casal e da nova povoação a que, por unanimidade, deram o nome de Serra.
À imagem começaram a chamar Senhor dos Aflitos, o padroeiro da terra.
Ardeu tudo e não foi deixada pedra sobre pedra. Porém, nunca se encontrou, nem vivo nem morto, o senhor da casa.
Durante muitos anos foi procurado e nunca apareceu; diga-se que, também em vida, nunca ninguém afirmou tê-lo visto.
Os que trabalhavam na casa, ou para a casa, diziam que havia feitores, chefes de trabalhos e grupos, visitas desconhecidas, mas, senhor, senhor, nunca viram.
As concubinas eram usadas não sabendo por quem, ou de olhos vendados, ou às escuras e nenhuma reconheceu os indivíduos apanhados.
Ao local da casa foi atribuída a excomunhão e declarado baldio e local de apoio e refúgio de perseguidos.
O “serra” foi generoso com os que mais o ajudaram e aos poucos nasceu a povoação que ainda hoje tem o seu nome e continua a ser uma das aldeias mais aprazíveis da região sul da Beira Baixa.
Cremos que já ninguém espera o senhor da mansão e poucos aceitarão ser esta a origem da sua terra.
A lenda não será mais que uma história de gente simples...
Diziam os mais antigos que aquele lugar era como que um sítio excomungado, onde se refugiavam os ladrões e outros malfeitores, uma vez que chegados ali, ninguém lhes podia fazer mal.
Melhor dizendo, ninguém se atrevia a entrar naquele recinto em perseguição de alguém, embora todos ignorassem o que poderia acontecer a quem violasse tal preceito e desconhecessem alguém que a tal se tivesse aventurado.
Dizia-se que um senhor de grandes posses que outrora habitara na região se sentava naquele pequeno planalto a contemplar as suas terras que se estendiam para além do vasto horizonte dali desfrutado.
Ali construiu uma casa senhorial, ainda que bem camuflada, onde praticava toda a espécie de desmandos sobre as gentes locais, incluindo um recinto com grande número de concubinas e malfeitores às suas ordens.
Dizia-se, também, que a casa do demo, como entre dentes lhe chamavam, estava toda coberta por uma árvore – um enorme castanheiro – que a ocultava completamente de quem dela se acercasse e permitia aos vigias, colocados nos mais altos ramos, ver quem se aproximasse e defender o local.
Dizia-se, ainda, que num dia de S. Bartolomeu – quando, segundo a voz do povo, o Diabo anda uma hora à solta, com liberdade para fazer o que quiser –, um antepassado do malvado que habitava a casa, teve o próprio Demo ali hospedado e fez com ele tratos de malfeitorias para o futuro.
Por isso se dizia que o local se chamava terreiro de S. Bartolomeu e a casa, mansão do Demónio.
Aos cumes da serra que fazia ângulo com o Cabeço Barreiro, para nascente, assomavam muitos populares de terras vizinhas e chegou mesmo a ser estabelecido um posto de vigia sobre a mansão do Demónio, para ver se afrouxavam as guardas e podiam descer e cultivar as terras soalheiras e férteis do sopé do monte.
De entre os frequentadores começou a insinuar-se um sujeito corpulento, portador de fama de bom lutador e ardiloso caçador; no jogo do pau nunca havia sido vencido e no corpo a corpo ninguém, alguma vez, lhe pusera cuspinho no nariz.
Aos poucos foi sendo empurrado para chefiar uma investida contra a casa do mal e a liquidação do poder do dono.
Era, ainda, preciso libertar os serviçais que ali viviam em regime de escravatura e tomando posse das terras, muita gente viria a lucrar.
Aos poucos o “serra” – assim se denominava, por alcunha, é claro, o chefe dos grupos – foi organizando e treinando o esquema que preparou para tomar a casa.
Estabeleceu, para o ataque, um dia quente e seco de verão e como base da acção, doze pontos em redor da casa.
Em cada um dos locais, preparou materiais e gente para, ao seu sinal, lançarem um violento incêndio, na direcção da casa.
Muitos outros, de reserva, juntaram-se com todo o tipo de varapaus e lanças, para, a coberto do fogo, irem tomando a terra queimada e, também, tratarem os que tentassem fugir da casa e seus domínios.
Ainda que o “serra” não quisesse violência gratuita apoiava todo o tipo de limpeza, para evitar surpresas.
Foram libertados muitos trabalhadores e concubinas e do velho e imponente castanheiro restaram apenas cinzas.
Uma imagem que foi posta a recato das chamas por alguns dos populares que ao verem chegar o lume se juntaram aos invasores, foi colocada no local onde viria a ser o centro do casal e da nova povoação a que, por unanimidade, deram o nome de Serra.
À imagem começaram a chamar Senhor dos Aflitos, o padroeiro da terra.
Ardeu tudo e não foi deixada pedra sobre pedra. Porém, nunca se encontrou, nem vivo nem morto, o senhor da casa.
Durante muitos anos foi procurado e nunca apareceu; diga-se que, também em vida, nunca ninguém afirmou tê-lo visto.
Os que trabalhavam na casa, ou para a casa, diziam que havia feitores, chefes de trabalhos e grupos, visitas desconhecidas, mas, senhor, senhor, nunca viram.
As concubinas eram usadas não sabendo por quem, ou de olhos vendados, ou às escuras e nenhuma reconheceu os indivíduos apanhados.
Ao local da casa foi atribuída a excomunhão e declarado baldio e local de apoio e refúgio de perseguidos.
O “serra” foi generoso com os que mais o ajudaram e aos poucos nasceu a povoação que ainda hoje tem o seu nome e continua a ser uma das aldeias mais aprazíveis da região sul da Beira Baixa.
Cremos que já ninguém espera o senhor da mansão e poucos aceitarão ser esta a origem da sua terra.
A lenda não será mais que uma história de gente simples...
terça-feira, 14 de outubro de 2008
O Ti’Carloto
Sempre presente, atrás do balcão da pequena tasca, com um reservado onde se comia uma bucha e, nos fundos, uma mercearia, O Ti’Carloto, tinha uma postura inconfundível.
De falas mansas, com o sotaque maçanico mais timbrado que guardamos na memória, atrás da sua barriguinha imponente, ouvia muito atentamente e falava com suavidade.
A mulher, ti’Perpétua, surda que nem um penedo, estava sempre à coca, desconfiando que lhe bebessem algum copo sem pagar, ou comessem alguma coisa, à socapa. E o ti’Carloto, puxava por ela!...
Ali, paredes-meias com a igreja da Misericórdia, estava a recato das vistas dos transeuntes, por uma porta “tipo Texas”. Fechava cedo e, depois de fechar, sempre vi o ti’Carloto, fora da loja, sentado num banco.
Aos domingos, convergiam para a tasca, os pais dos garotos que frequentavam o colégio e estavam aboletados em casas particulares. E reuniam-se, ali, com uma dupla finalidade: comer a bucha que levavam, acompanhada de uma “Sagres” ou “uma metade com gasosa”e pagar os avios de mercearia que as hospedeiras dos filhos tinham levado, a crédito.
Recordo mais de uma dezena de pais de colegas meus que acabaram por se conhecer uns aos outros, nestas andanças da vida.
E, como era delicioso ouvi-los!...
Alunos que poucas notas positivas terão tirado, eram barras; outros, que não eram maus alunos, nem referidos eram.
Meu pai sempre se orgulhou dos filhos, mas não se excedia em elogios.
O ti’Carloto, bem informado sobre os seus “fregueses”entrava, às vezes nas conversas e lá ia pondo água na fervura quando alguém, assim mais no fim do “repasto”, se exaltava por não ver elogiado o seu filho.
Olhava para mim, sorria, piscava-me o olho, em ar de intimidade, e seguia em frente… Bem ti’Amorim – esta semana a Mari’Bela não se alargou: temos aqui só três mil réis. As personagens eram meu pai e a dona da casa, em que eu estava, à entrada da rua de S. Pedro.
Para aligeirar, um ou outro, mais bem disposto, lá adiantava alguma pachouvada, como dizia o ti’Carloto, quando entrava nas suas histórias.
Foi assim que ouvi, pela primeira vez, e ainda hoje sorrio, o célebre episódio que lhe é atribuído. E, verdadeiro ou fictício, convenhamos que assenta nas figuras e personalidades do Ti’Carloto e da ti’Perpétua, que nem sopa no mel.
Então lá vai, atirou o Joaquim Moleiro: Ó ti’Carloto, sempre é verdade que um dia destes foi à loja pensar a burra e, às tantas, gritava para a sua mulher que chegasse depressa uma luz, pois a burra dera um coice e ainda não sabia se tinha acertado em si, ou na parede?!...
Homem, tão certo como estares a ver-me:
O dianho da bicha desatou aos coices e eu, consegui segurá-la pelo pescoço. Eram coices que ferviam e eu, de facto, já nem sabia se acertavam em mim, se na parede. Gritei para a mulher, claro!... Então ela nem assim ouvia, mouca como é!...
Esta e outras histórias contava-me o ti’Carloto quando, depois do jantar, passava lá pela loja para comprar três tostões de castanhas, de amendoins, ou de bolachas Maria. Dentro destes valores o meu pai autorizava a venda para pôr no role, desde que as notas fossem boas – e, felizmente, por esse motivo, nunca deixei de poder comprar as gulodices –.
Não é verdade, ti’Carloto?!...
De falas mansas, com o sotaque maçanico mais timbrado que guardamos na memória, atrás da sua barriguinha imponente, ouvia muito atentamente e falava com suavidade.
A mulher, ti’Perpétua, surda que nem um penedo, estava sempre à coca, desconfiando que lhe bebessem algum copo sem pagar, ou comessem alguma coisa, à socapa. E o ti’Carloto, puxava por ela!...
Ali, paredes-meias com a igreja da Misericórdia, estava a recato das vistas dos transeuntes, por uma porta “tipo Texas”. Fechava cedo e, depois de fechar, sempre vi o ti’Carloto, fora da loja, sentado num banco.
Aos domingos, convergiam para a tasca, os pais dos garotos que frequentavam o colégio e estavam aboletados em casas particulares. E reuniam-se, ali, com uma dupla finalidade: comer a bucha que levavam, acompanhada de uma “Sagres” ou “uma metade com gasosa”e pagar os avios de mercearia que as hospedeiras dos filhos tinham levado, a crédito.
Recordo mais de uma dezena de pais de colegas meus que acabaram por se conhecer uns aos outros, nestas andanças da vida.
E, como era delicioso ouvi-los!...
Alunos que poucas notas positivas terão tirado, eram barras; outros, que não eram maus alunos, nem referidos eram.
Meu pai sempre se orgulhou dos filhos, mas não se excedia em elogios.
O ti’Carloto, bem informado sobre os seus “fregueses”entrava, às vezes nas conversas e lá ia pondo água na fervura quando alguém, assim mais no fim do “repasto”, se exaltava por não ver elogiado o seu filho.
Olhava para mim, sorria, piscava-me o olho, em ar de intimidade, e seguia em frente… Bem ti’Amorim – esta semana a Mari’Bela não se alargou: temos aqui só três mil réis. As personagens eram meu pai e a dona da casa, em que eu estava, à entrada da rua de S. Pedro.
Para aligeirar, um ou outro, mais bem disposto, lá adiantava alguma pachouvada, como dizia o ti’Carloto, quando entrava nas suas histórias.
Foi assim que ouvi, pela primeira vez, e ainda hoje sorrio, o célebre episódio que lhe é atribuído. E, verdadeiro ou fictício, convenhamos que assenta nas figuras e personalidades do Ti’Carloto e da ti’Perpétua, que nem sopa no mel.
Então lá vai, atirou o Joaquim Moleiro: Ó ti’Carloto, sempre é verdade que um dia destes foi à loja pensar a burra e, às tantas, gritava para a sua mulher que chegasse depressa uma luz, pois a burra dera um coice e ainda não sabia se tinha acertado em si, ou na parede?!...
Homem, tão certo como estares a ver-me:
O dianho da bicha desatou aos coices e eu, consegui segurá-la pelo pescoço. Eram coices que ferviam e eu, de facto, já nem sabia se acertavam em mim, se na parede. Gritei para a mulher, claro!... Então ela nem assim ouvia, mouca como é!...
Esta e outras histórias contava-me o ti’Carloto quando, depois do jantar, passava lá pela loja para comprar três tostões de castanhas, de amendoins, ou de bolachas Maria. Dentro destes valores o meu pai autorizava a venda para pôr no role, desde que as notas fossem boas – e, felizmente, por esse motivo, nunca deixei de poder comprar as gulodices –.
Não é verdade, ti’Carloto?!...
terça-feira, 7 de outubro de 2008
“O Manholas”
Ao que se sabe, O “Manholas”lavou os pés, no dia em que foi às sortes; até aí, tinha andado várias vezes dentro de água, mas nunca ninguém o viu lavar-se.
A planta dos pés era mais resistente e dura que sola; pelo menos era muito mais durável. A dele já aguentava, sem se gastar, havia mais de vinte anos. Movimentava-se tanto nos caminhos como fora deles, por montes e vales, sobre pedras ou no meio de tojos e balças.
As unhas nunca foram cortadas; os usos que tinham contra todo o tipo de obstáculos, evitavam o crescimento excessivo e serviam de protecção.
Porém, os pés do “Manholas” não andavam muito encardidos; no Inverno passava dias e dias dentro das regueiras dos caminhos, a chafurdar na lama e a atravessar ribeiros e canadas; no Verão deliciava-se nos regos da água, quando alguém andava a regar, ou nas longas caminhadas que fazia ao longo da ribeira, a apanhar peixes.
No dia das sortes, lá foi com os colegas que, como ele, faziam vinte anos, à inspecção militar e, como sempre, descalço. Todavia ninguém notou, nesse dia, falta de limpeza nos pés do Manuel dos Reis – Manholas –.
Os inspeccionadores perguntaram porque vinha descalço e o “Manholas”respondeu que não tinha sapatos, nem botas. Acrescentou que nunca usara tais coisas e não pensava habituar-se e, se não houvesse lá na tropa malta descalça, era melhor não o levarem para lá.
Apesar de apoucado de espírito – “poucochinho”, como diz o povo – o “Manholas”não era tolo. Conhecia todos os recantos, todos os buracos e grutas das redondezas da aldeia. Apanhava, à mão, todo o tipo de caça, peixes, cobras e lagartos, até se dizia que acamaradava com os lobos, com quem se entendia, perfeitamente.
Quando cruzava com alguém, não deixava de salvar – emitia alguns sons semelhantes a “vá com Deus”; porém andava, habitualmente por fora dos caminhos e gostava muito de ver, sem ser visto.
Nunca incomodou ninguém, tal como não era importunado por quem quer que fosse. Vivia com a mãe, de idade avançada, num casebre da aldeia.
Um dia, vá-se lá saber porquê, o “Manholas”desapareceu.
Procurou-se, por todo o lado, mas não se encontraram quaisquer sinais dele.
Passados meses, um pedinte que passava pela aldeia – o “Armando do pífaro” –, disse que tinha tido notícias do “Manholas”, que andaria lá para cima, para os lados de Lamego, de terra em terra.
Mais de trinta anos depois, já tinha morrido a mãe do “Manholas”e no lugar do casebre tinha sido construída a casa de um mestre-de-obras, que fizera fortuna em Lisboa e comprara o lugar, apareceu, na aldeia, um mendigo, descalço e com barba e cabelos descomunais.
Era um homem, já ancião, que não mostrou pressa e por ali se foi demorando.
Ia até à ribeira e fazia longos passeios, parecendo conhecer aqueles locais; movimentava-se, tão bem de noite, como de dia. Bebia água nos bons sítios e dormia sestas no fresco dos juncos e carriços dos lameiros da ribeira.
Comia alguma coisa, se lha davam.
Um dia, sentindo-se mal, foi a casa da tia Maria Antónia, que tão bem conhecera noutros tempos, pediu uma tesoura e cortou barbas e cabelos. Lavou a cara e fixou a velhota, bem nos olhos.
Ouviu-se, de imediato um grito:
- Meu Deus, mas tu és o “Manholas”!...
Quanto caiu em si, a velhota viu o homem estendido no chão, com os olhos esbugalhados.
Estava morto.
A planta dos pés era mais resistente e dura que sola; pelo menos era muito mais durável. A dele já aguentava, sem se gastar, havia mais de vinte anos. Movimentava-se tanto nos caminhos como fora deles, por montes e vales, sobre pedras ou no meio de tojos e balças.
As unhas nunca foram cortadas; os usos que tinham contra todo o tipo de obstáculos, evitavam o crescimento excessivo e serviam de protecção.
Porém, os pés do “Manholas” não andavam muito encardidos; no Inverno passava dias e dias dentro das regueiras dos caminhos, a chafurdar na lama e a atravessar ribeiros e canadas; no Verão deliciava-se nos regos da água, quando alguém andava a regar, ou nas longas caminhadas que fazia ao longo da ribeira, a apanhar peixes.
No dia das sortes, lá foi com os colegas que, como ele, faziam vinte anos, à inspecção militar e, como sempre, descalço. Todavia ninguém notou, nesse dia, falta de limpeza nos pés do Manuel dos Reis – Manholas –.
Os inspeccionadores perguntaram porque vinha descalço e o “Manholas”respondeu que não tinha sapatos, nem botas. Acrescentou que nunca usara tais coisas e não pensava habituar-se e, se não houvesse lá na tropa malta descalça, era melhor não o levarem para lá.
Apesar de apoucado de espírito – “poucochinho”, como diz o povo – o “Manholas”não era tolo. Conhecia todos os recantos, todos os buracos e grutas das redondezas da aldeia. Apanhava, à mão, todo o tipo de caça, peixes, cobras e lagartos, até se dizia que acamaradava com os lobos, com quem se entendia, perfeitamente.
Quando cruzava com alguém, não deixava de salvar – emitia alguns sons semelhantes a “vá com Deus”; porém andava, habitualmente por fora dos caminhos e gostava muito de ver, sem ser visto.
Nunca incomodou ninguém, tal como não era importunado por quem quer que fosse. Vivia com a mãe, de idade avançada, num casebre da aldeia.
Um dia, vá-se lá saber porquê, o “Manholas”desapareceu.
Procurou-se, por todo o lado, mas não se encontraram quaisquer sinais dele.
Passados meses, um pedinte que passava pela aldeia – o “Armando do pífaro” –, disse que tinha tido notícias do “Manholas”, que andaria lá para cima, para os lados de Lamego, de terra em terra.
Mais de trinta anos depois, já tinha morrido a mãe do “Manholas”e no lugar do casebre tinha sido construída a casa de um mestre-de-obras, que fizera fortuna em Lisboa e comprara o lugar, apareceu, na aldeia, um mendigo, descalço e com barba e cabelos descomunais.
Era um homem, já ancião, que não mostrou pressa e por ali se foi demorando.
Ia até à ribeira e fazia longos passeios, parecendo conhecer aqueles locais; movimentava-se, tão bem de noite, como de dia. Bebia água nos bons sítios e dormia sestas no fresco dos juncos e carriços dos lameiros da ribeira.
Comia alguma coisa, se lha davam.
Um dia, sentindo-se mal, foi a casa da tia Maria Antónia, que tão bem conhecera noutros tempos, pediu uma tesoura e cortou barbas e cabelos. Lavou a cara e fixou a velhota, bem nos olhos.
Ouviu-se, de imediato um grito:
- Meu Deus, mas tu és o “Manholas”!...
Quanto caiu em si, a velhota viu o homem estendido no chão, com os olhos esbugalhados.
Estava morto.
terça-feira, 30 de setembro de 2008
“O mancanha”
O Alfredo era o mais novo de sete irmãos, todos rapazes.
Para guardar o gado, ir à missa e outras coisas que não agradavam à rapaziada, o mais pequeno alinhava à frente; para ir a qualquer lado, estrear uma camisita, ou receber fosse o que fosse, lá estava o pequenito no fim da fila.
O “Fredito” tinha os olhos mais claros que os irmãos, a cabeça, anormalmente grande e fazia quase tudo, com a mão esquerda. Dali vieram as variadíssimas alcunhas que, antes, durante e depois da escola, acabaram por não o incomodar: cabeçudo, olho-de-gato, canhoto, lince, miau, carolas, mancanha – de mão canha, canhota, esquerda –. A que havia de melhor lhe assentar e todos lhe aplicavam.
Guardava o gado com muita habilidade e pedra atirada por aquela mão esquerda, fazia estragos no alvo a que fosse destinada. As ovelhas e as chibas conheciam as pedradas do “Fredito” e as mordidelas do “farrusco” que respondia, solicitamente, ao assobio e à voz do dono.
Na escola, não foi além da segunda classe; apesar de não se revelar um barra, não lhe foi dado tempo para se mostrar – os mais velhos já trabalhavam fora e o “Fredito” tinha de ajudar na casa, levar o almoço e o jantar, guardar o gado e ir fazer os recados, não sobrando tempo para ir à escola –. Mais tarde aprenderia um ofício, dizia o pai.
Nos “balhos”e nos descantes, andava de grupo em grupo, sem se integrar, e, por norma, junto dos homens mais velhos. Nunca aprendeu a balhar.
Na taberna, eram-lhe reconhecidas aptidões especiais para o jogo do “burro” e para a “bêlha”; já nos jogos de cartas não passava de bom perdedor.
Tanto o “burro” como a “bêlha” eram jogos de arremesso de vinténs e malhas, respectivamente, pelo que a sua mão esquerda se revelava, assustadoramente, certeira. Todos queriam ser seus parceiros.
A armar aos pássaros, a descobrir ninhos, a localizar a melhor novidade de fruta e a achar uma estrema, não havia quem lhe passasse a perna.
Conhecia todo o gado do povo e quando voltava com o pequeno rebanho que abria todos os dias, encortelhava todas as reses sem se enganar.
Nas sortes ficou livre: disse, directa e desabridamente, ao sargento que os pais precisavam dele, que ainda tinha dois irmãos a servir – um em Elvas e outro em Abrantes - e já outros quatro tinham sido soldados. Ele, que não sabia ler nem escrever, não devia ser preciso, lá na tropa.
Ainda aprendeu o ofício de sapateiro e daí derivou para albardeiro; porém, as suas exigências não eram grandes e ganhando a vida sem se esforçar muito, nunca foi longe na arte.
No ano que foi à ceifa, não passou de moço aguadeiro e não ficou muito entusiasmado para voltar – era trabalho violento de mais, dizia ele.
Ainda estou a ver o Alfredo, que nunca casou, já na casa dos cinquenta, quando eu era garoto, a narrar e representar os quadros da batalha campal, travada à saída de Santa Clara, noite fora, à margem do arraial das festas de Alcaravela:
“O meu Manel, tem a mania que é teso! E é. O meu João, não se lhe fica atrás. O Chico e o Pedro, são do melhor, no jogo do pau.
Vai daí, o Manel, com a cabeça grande e a barriga cheia de vinho, prega uma cacheirada no Tonho das Lercas, que foi logo a terra. Os galhibanos da Presa, sacaram dos paus e foram para o Manel, que já fazia costas com os outros três irmãos.
A primeira cacetada do Chico pôs logo o “fanfas” do “artista”, tido como o melhor jogador de pau das redondezas, fora de combate; acertou-lhe uma mocada na tola e além da cabeça, partiu-lhe o cacete.
Estava gerada a confusão: os meus irmãos iam-se defendendo e distribuindo bordoada, por tudo o que aparecia a talhe de foice, e encaixando, também, as pauladas dos das Lercas, que já andavam juntos com os da Presa.
Bem, só se perderam as que caíram no chão – o meu Manel andou com um braço ao peito, o Chico com um lanho na cabeça um ror de meses, o Pedro a cambar de um joelho e o meu João ficou, para sempre, com uma orelha rachada.”
Então e tu, Alfredo?...
“Eu, sou homem pacífico. Estive de reserva e olhe que não fui preciso. Os meus quatro irmãos, chegaram para os vinte e tal que se lhes opuseram e daí que assim tive mais tempo para ver bem as coisas e ficar inteirinho, para contar as histórias e apaziguar a malta. A verdade é que acabaram todos a beber mais uns copos…
Mas, a sorte dos gajos foi que tudo acabou antes de chegar o meu Luís e o Agusto, que ouviram tarde de mais os assobios do Manel. Se não, aquilo, ainda acabava mal.
Assim, olhe: mais cacetada, menos cacetada, só se perderam as que caíram no chão!...”
Para guardar o gado, ir à missa e outras coisas que não agradavam à rapaziada, o mais pequeno alinhava à frente; para ir a qualquer lado, estrear uma camisita, ou receber fosse o que fosse, lá estava o pequenito no fim da fila.
O “Fredito” tinha os olhos mais claros que os irmãos, a cabeça, anormalmente grande e fazia quase tudo, com a mão esquerda. Dali vieram as variadíssimas alcunhas que, antes, durante e depois da escola, acabaram por não o incomodar: cabeçudo, olho-de-gato, canhoto, lince, miau, carolas, mancanha – de mão canha, canhota, esquerda –. A que havia de melhor lhe assentar e todos lhe aplicavam.
Guardava o gado com muita habilidade e pedra atirada por aquela mão esquerda, fazia estragos no alvo a que fosse destinada. As ovelhas e as chibas conheciam as pedradas do “Fredito” e as mordidelas do “farrusco” que respondia, solicitamente, ao assobio e à voz do dono.
Na escola, não foi além da segunda classe; apesar de não se revelar um barra, não lhe foi dado tempo para se mostrar – os mais velhos já trabalhavam fora e o “Fredito” tinha de ajudar na casa, levar o almoço e o jantar, guardar o gado e ir fazer os recados, não sobrando tempo para ir à escola –. Mais tarde aprenderia um ofício, dizia o pai.
Nos “balhos”e nos descantes, andava de grupo em grupo, sem se integrar, e, por norma, junto dos homens mais velhos. Nunca aprendeu a balhar.
Na taberna, eram-lhe reconhecidas aptidões especiais para o jogo do “burro” e para a “bêlha”; já nos jogos de cartas não passava de bom perdedor.
Tanto o “burro” como a “bêlha” eram jogos de arremesso de vinténs e malhas, respectivamente, pelo que a sua mão esquerda se revelava, assustadoramente, certeira. Todos queriam ser seus parceiros.
A armar aos pássaros, a descobrir ninhos, a localizar a melhor novidade de fruta e a achar uma estrema, não havia quem lhe passasse a perna.
Conhecia todo o gado do povo e quando voltava com o pequeno rebanho que abria todos os dias, encortelhava todas as reses sem se enganar.
Nas sortes ficou livre: disse, directa e desabridamente, ao sargento que os pais precisavam dele, que ainda tinha dois irmãos a servir – um em Elvas e outro em Abrantes - e já outros quatro tinham sido soldados. Ele, que não sabia ler nem escrever, não devia ser preciso, lá na tropa.
Ainda aprendeu o ofício de sapateiro e daí derivou para albardeiro; porém, as suas exigências não eram grandes e ganhando a vida sem se esforçar muito, nunca foi longe na arte.
No ano que foi à ceifa, não passou de moço aguadeiro e não ficou muito entusiasmado para voltar – era trabalho violento de mais, dizia ele.
Ainda estou a ver o Alfredo, que nunca casou, já na casa dos cinquenta, quando eu era garoto, a narrar e representar os quadros da batalha campal, travada à saída de Santa Clara, noite fora, à margem do arraial das festas de Alcaravela:
“O meu Manel, tem a mania que é teso! E é. O meu João, não se lhe fica atrás. O Chico e o Pedro, são do melhor, no jogo do pau.
Vai daí, o Manel, com a cabeça grande e a barriga cheia de vinho, prega uma cacheirada no Tonho das Lercas, que foi logo a terra. Os galhibanos da Presa, sacaram dos paus e foram para o Manel, que já fazia costas com os outros três irmãos.
A primeira cacetada do Chico pôs logo o “fanfas” do “artista”, tido como o melhor jogador de pau das redondezas, fora de combate; acertou-lhe uma mocada na tola e além da cabeça, partiu-lhe o cacete.
Estava gerada a confusão: os meus irmãos iam-se defendendo e distribuindo bordoada, por tudo o que aparecia a talhe de foice, e encaixando, também, as pauladas dos das Lercas, que já andavam juntos com os da Presa.
Bem, só se perderam as que caíram no chão – o meu Manel andou com um braço ao peito, o Chico com um lanho na cabeça um ror de meses, o Pedro a cambar de um joelho e o meu João ficou, para sempre, com uma orelha rachada.”
Então e tu, Alfredo?...
“Eu, sou homem pacífico. Estive de reserva e olhe que não fui preciso. Os meus quatro irmãos, chegaram para os vinte e tal que se lhes opuseram e daí que assim tive mais tempo para ver bem as coisas e ficar inteirinho, para contar as histórias e apaziguar a malta. A verdade é que acabaram todos a beber mais uns copos…
Mas, a sorte dos gajos foi que tudo acabou antes de chegar o meu Luís e o Agusto, que ouviram tarde de mais os assobios do Manel. Se não, aquilo, ainda acabava mal.
Assim, olhe: mais cacetada, menos cacetada, só se perderam as que caíram no chão!...”
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
A magana
O “Rasga”entrou espavorido pela taberna dentro, deu um murro sobre o balcão e gritou: “ti Manel”, uma metade!...
O taberneiro, na sua fleuma habitual, acentuada pela arrastar da perna esquerda, assomou-se na divisória da cozinha e salvou:”vem com Deus, homem!...
Esteja com Deus, “ti Manel”!... Acrescentou o “Rasga” em tom completamente diverso do da entrada.
Parece que viste o demo!... Vem para aí o mundo atrás de ti, ou quê?!... Ainda agora é manhã e já estás nesses preparos?!...
Deixe-me cá “ti Manel”!...
Quase nem preguei olho toda a noite, a pensar naquela magana.
Ao romper da manhã, antes do Sete-estrelo, já eu ia a caminho da ribeira, com o meu “farrusco” ainda com os olhos mal abertos. Chegado ali, no ponto onde a chapada bate com a ribeira, baixei-me atrás duns carriços e esperei…
Clareou o dia; pássaros, moscas, rãs e outra bicharada da ribeira apareceram aos primeiros raios da aurora, mas, da magana nem sinal. E olhe que naquelas duas horas não desviei, nem por um minuto, os olhos daquele carreiro que vai dar ao touril, onde a gaja tem, sem exagero nenhum, uma boa cesta de caganitas.
Ainda passaram dois laparotes, saltitando e negaceando, na sua inocência.
Nem lhes liguei e não deixei que o “farrusco” se agitasse; eu queria era a magana que se regala a tosar-me as couves do canteirito e os outros mimos da horta.
Mas garanto-lhe que há-de pagá-las todas juntas…
O “Tonho da azenha” jura que já a viu umas duas ou três vezes e garante que é animal soberbo, com um metro e meio, para mais, de comprimento e não pesará menos que uma boa chiba de vinte quilos.
Já gastei, com ela, para cima de quarenta noites e, logo hoje que alguma coisa me dizia que havia de ser o dia certo, apareceu o “ti Jaquim”com a água aberta ao romper da manhã.
A magana, muito senhora do seu nariz, ou tem o dianho por ela ou é finória. Mas há-de cair!...
Ou eu não me chame “Rasga”, em memória de meus avós, que Deus haja.
Também o “Mané das cabras” costuma passar por ali, antes do sol nado com o gado e os cães e já mais de uma vez me estragou o arranjinho.
Depois, com aqueles dois cães, que até de ratos fogem… Uns verdadeiros espanta caça!... Uns lorpas, é o que são! …
Mas não há-de ser mais teimosa que eu e não há-de comer-me as couves todas… Hão-de sobrar algumas, para a acompanhar na panela!...
Começou a ser assunto de conversas a obsessão do “Rasga”pela lebre da chapada da ribeira.
Alguns já chacoteavam com ele e perguntavam-lhe quando poderiam ver o troféu.
De armadilhas, com laços, a ferros, tudo passou pela mente do “Rasga” que, no entanto, já tinha decidido que a magana havia de cair com o chumbo do seu fuzil.
E resistiu, heroicamente, a todas as provocações e gozos da rapaziada da terra.
Até que um dia, pouco depois dos Reis, o “Rasga”entrou na tasca, com um imponente lebrão de um metro de comprimento e quase quinze quilos de peso, ao ombro.
Não havia memória de um exemplar assim, nas redondezas. Veio gente de aldeias vizinhas e, em dois dias, o “Rasga” contou a história dúzias de vezes, para satisfazer os curiosos.
Dizia, orgulhosamente:
Na minha da ribeira, onde a chapada bate com o regato, meia hora antes do nascer do sol, descia a magana, lampeira, para me dar cabo das couves.
Estacou, onde a rodeira cruza a canada, levantou as orelhas que aqui vêm, e ergueu-se sobre as patas traseiras.
Nisto, acerto-me com ela e levo a arma à cara. Miro-a bem no centro dos quartos dianteiros e zás, catrapaz: puxo os dois gatilhos e lá vai chumbo, quente e grosso.
A magana, ferida de morte, deu um salto que parecia uma corça, berrou como um boi e foi cair, redonda, na minha veiguita, junto ao bueiro da entrada da levada. Levantei-a no ar e, com todo o meu respeito, descobri-me, mostrei-a ao “farrusco” e às couves que ela não voltaria a comer…
O resto é o que têm na vossa frente; e olhem que já ouviu que nunca lebre de tal tamanho terá sido caçada...
E foram caçadores afamados que o disseram...
O taberneiro, na sua fleuma habitual, acentuada pela arrastar da perna esquerda, assomou-se na divisória da cozinha e salvou:”vem com Deus, homem!...
Esteja com Deus, “ti Manel”!... Acrescentou o “Rasga” em tom completamente diverso do da entrada.
Parece que viste o demo!... Vem para aí o mundo atrás de ti, ou quê?!... Ainda agora é manhã e já estás nesses preparos?!...
Deixe-me cá “ti Manel”!...
Quase nem preguei olho toda a noite, a pensar naquela magana.
Ao romper da manhã, antes do Sete-estrelo, já eu ia a caminho da ribeira, com o meu “farrusco” ainda com os olhos mal abertos. Chegado ali, no ponto onde a chapada bate com a ribeira, baixei-me atrás duns carriços e esperei…
Clareou o dia; pássaros, moscas, rãs e outra bicharada da ribeira apareceram aos primeiros raios da aurora, mas, da magana nem sinal. E olhe que naquelas duas horas não desviei, nem por um minuto, os olhos daquele carreiro que vai dar ao touril, onde a gaja tem, sem exagero nenhum, uma boa cesta de caganitas.
Ainda passaram dois laparotes, saltitando e negaceando, na sua inocência.
Nem lhes liguei e não deixei que o “farrusco” se agitasse; eu queria era a magana que se regala a tosar-me as couves do canteirito e os outros mimos da horta.
Mas garanto-lhe que há-de pagá-las todas juntas…
O “Tonho da azenha” jura que já a viu umas duas ou três vezes e garante que é animal soberbo, com um metro e meio, para mais, de comprimento e não pesará menos que uma boa chiba de vinte quilos.
Já gastei, com ela, para cima de quarenta noites e, logo hoje que alguma coisa me dizia que havia de ser o dia certo, apareceu o “ti Jaquim”com a água aberta ao romper da manhã.
A magana, muito senhora do seu nariz, ou tem o dianho por ela ou é finória. Mas há-de cair!...
Ou eu não me chame “Rasga”, em memória de meus avós, que Deus haja.
Também o “Mané das cabras” costuma passar por ali, antes do sol nado com o gado e os cães e já mais de uma vez me estragou o arranjinho.
Depois, com aqueles dois cães, que até de ratos fogem… Uns verdadeiros espanta caça!... Uns lorpas, é o que são! …
Mas não há-de ser mais teimosa que eu e não há-de comer-me as couves todas… Hão-de sobrar algumas, para a acompanhar na panela!...
Começou a ser assunto de conversas a obsessão do “Rasga”pela lebre da chapada da ribeira.
Alguns já chacoteavam com ele e perguntavam-lhe quando poderiam ver o troféu.
De armadilhas, com laços, a ferros, tudo passou pela mente do “Rasga” que, no entanto, já tinha decidido que a magana havia de cair com o chumbo do seu fuzil.
E resistiu, heroicamente, a todas as provocações e gozos da rapaziada da terra.
Até que um dia, pouco depois dos Reis, o “Rasga”entrou na tasca, com um imponente lebrão de um metro de comprimento e quase quinze quilos de peso, ao ombro.
Não havia memória de um exemplar assim, nas redondezas. Veio gente de aldeias vizinhas e, em dois dias, o “Rasga” contou a história dúzias de vezes, para satisfazer os curiosos.
Dizia, orgulhosamente:
Na minha da ribeira, onde a chapada bate com o regato, meia hora antes do nascer do sol, descia a magana, lampeira, para me dar cabo das couves.
Estacou, onde a rodeira cruza a canada, levantou as orelhas que aqui vêm, e ergueu-se sobre as patas traseiras.
Nisto, acerto-me com ela e levo a arma à cara. Miro-a bem no centro dos quartos dianteiros e zás, catrapaz: puxo os dois gatilhos e lá vai chumbo, quente e grosso.
A magana, ferida de morte, deu um salto que parecia uma corça, berrou como um boi e foi cair, redonda, na minha veiguita, junto ao bueiro da entrada da levada. Levantei-a no ar e, com todo o meu respeito, descobri-me, mostrei-a ao “farrusco” e às couves que ela não voltaria a comer…
O resto é o que têm na vossa frente; e olhem que já ouviu que nunca lebre de tal tamanho terá sido caçada...
E foram caçadores afamados que o disseram...
domingo, 14 de setembro de 2008
Compadres
Cabisbaixo, mãos nos bolsos, blasfemando contra o burrico que, ajoujado sob os taleigos, pedia licença a uma pata para mover a outra, o ti Luís assomou-se ao povoado, antes do nascer do sol.
No seu ar de homem já muito gasto pelos anos, caminhava a passo lento, cogitando com os seus botões.
A mulher tinha-lhe falado no namoro da filha mais velha – a Conceição – com um filhote da Serra, de nome Apolinário, sobrinho do freguês do ‘Casal’, ti José Lourinho, que era também tutor do rapaz, já órfão de pai e mãe.
Dormiu umas noites sobre o caso e ali estava ele, disposto a falar com o tio do rapaz, sobre um dos assuntos mais sérios da sua vida – o casamento de uma das filhas.
Tinha de estar prevenido, pois o rapaz já fizera saber que em breve iria lá a casa pedir a Conceição.
Chegado à porta da igreja, junto da casa do ti José Lourinho, prendeu o burro à argola da parede, contra o seu hábito, e bateu à porta.
Veio o ti José Lourinho, em pessoa, e após uma breve salvação mútua, travaram o diálogo que, sem mais delongas e comentários, passo a transcrever:
Ti José Lourinho, conhecemo-nos há muitos anos e nunca nada de tão sério me trouxe à sua porta.
Com sua licença passo ao caso: tem o Ti José Lourinho, tal como eu, o empenho de querer para os nossos, o melhor.
Tenho duas filhas e um rapazote, todos ainda solteiros. Sem desconsideração, gente pobre, mas honrada e trabalhadora.
Vem tudo isto ao caso de que o seu sobrinho Apolinário parece que anda a namorar a minha Conceição. Não sei se é do seu conhecimento?!...
Passou-se-me qualquer coisa pelos ouvidos; mas como achei tão natural e normal, não fiz disso qualquer enredo.
Mas há-de compreender que eu sou pai e um pai sempre há-de querer o melhor para os seus. Trata-se da minha mais velha!...
Com certeza, Ti Luís, são bem feitas as suas observações e bem próprios os seus incómodos. Sempre se trata de uma filha.
É que ouvi dizer que o rapaz anda lá pela Guarda Republicana e que talvez pense levar-me a cachopa para a cidade. Compreenderá que isto incomoda qualquer um!...
Tem razão, Ti Luís, mas se for esse o bem deles, que havemos nós de fazer?
A vida somos nós que a traçamos e sempre custa ver assim partir uma filha, com quem ainda nem ao menos conhecemos. Sabe-se lá!..
O que pode saber, Ti Luís, é que o meu sobrinho, não desfazendo, é farinha do melhor saco; e disso percebe vomecê!...
Não haverá uma só voz contra o rapaz; teve a infelicidade de ficar sem mãe e sem pai, junto com os irmãos e essa será a sua maior desgraça.
De resto, trabalhador como os melhores, até ir para a tropa.
Uma vez lá, gostaram tanto dele que o apanharam para a Guarda. E aí está ele, a ajudar os irmãos e a família; Deus o abençoe!...
É que, Ti José Lourinho, rapazes na cidade, com tantas “anegaças”, não é de fiar-se a gente.
E sempre se trata da nossa filha, não é?..
Ti Luís, nesse aspecto nada sei sobre o meu sobrinho; agora que é homem direito, honrado e trabalhador, a quem nenhuma boca pode atirar nada de mau, é bastante para merecer a sua filha; estão um para o outro, com a graça de Deus e a nossa.
Mas seja sincero, Ti José Lourinho, acha mesmo que a minha Conceição vai bem servida?!
Acho isso e parece-me que isto merece um copo; vamos entrando compadre.
Parece-me que posso tratá-lo assim, não é verdade?!...
Nem sabe quanto me aliviou, compadre José Lourinho.
Deus há-de pôr-lhes a bênção e até vamos esperar que tudo lhes corra da melhor forma possível.
O diálogo mostrava, nesta altura, ares de voltar quase ao princípio.
O Ti Luís voltava a enumerar as justificações de se tratar de uma filha, de termos obrigação de querer o melhor para os nossos, etc.
A outra parte, o Ti José Lourinho, lá deitou mais um copito e conseguiu terminar o diálogo, dizendo ao compadre:
Agora que vai estar metido em despesas, é de fazer-se à vida. Mas olhe que a maquia dos taleigos não pode ser acrescentada...
O Ti Luís reagiu bem à graça e, voltando-se para o compadre, como que a recomeçar a conversa, rematou:
Olhe que já hoje me deu uma boa alegria...
Nem todos os dias se casa uma filha, compadre!...
Até mais ver!...
Até mais ver, compadre!...
Vá com Deus!...
No seu ar de homem já muito gasto pelos anos, caminhava a passo lento, cogitando com os seus botões.
A mulher tinha-lhe falado no namoro da filha mais velha – a Conceição – com um filhote da Serra, de nome Apolinário, sobrinho do freguês do ‘Casal’, ti José Lourinho, que era também tutor do rapaz, já órfão de pai e mãe.
Dormiu umas noites sobre o caso e ali estava ele, disposto a falar com o tio do rapaz, sobre um dos assuntos mais sérios da sua vida – o casamento de uma das filhas.
Tinha de estar prevenido, pois o rapaz já fizera saber que em breve iria lá a casa pedir a Conceição.
Chegado à porta da igreja, junto da casa do ti José Lourinho, prendeu o burro à argola da parede, contra o seu hábito, e bateu à porta.
Veio o ti José Lourinho, em pessoa, e após uma breve salvação mútua, travaram o diálogo que, sem mais delongas e comentários, passo a transcrever:
Ti José Lourinho, conhecemo-nos há muitos anos e nunca nada de tão sério me trouxe à sua porta.
Com sua licença passo ao caso: tem o Ti José Lourinho, tal como eu, o empenho de querer para os nossos, o melhor.
Tenho duas filhas e um rapazote, todos ainda solteiros. Sem desconsideração, gente pobre, mas honrada e trabalhadora.
Vem tudo isto ao caso de que o seu sobrinho Apolinário parece que anda a namorar a minha Conceição. Não sei se é do seu conhecimento?!...
Passou-se-me qualquer coisa pelos ouvidos; mas como achei tão natural e normal, não fiz disso qualquer enredo.
Mas há-de compreender que eu sou pai e um pai sempre há-de querer o melhor para os seus. Trata-se da minha mais velha!...
Com certeza, Ti Luís, são bem feitas as suas observações e bem próprios os seus incómodos. Sempre se trata de uma filha.
É que ouvi dizer que o rapaz anda lá pela Guarda Republicana e que talvez pense levar-me a cachopa para a cidade. Compreenderá que isto incomoda qualquer um!...
Tem razão, Ti Luís, mas se for esse o bem deles, que havemos nós de fazer?
A vida somos nós que a traçamos e sempre custa ver assim partir uma filha, com quem ainda nem ao menos conhecemos. Sabe-se lá!..
O que pode saber, Ti Luís, é que o meu sobrinho, não desfazendo, é farinha do melhor saco; e disso percebe vomecê!...
Não haverá uma só voz contra o rapaz; teve a infelicidade de ficar sem mãe e sem pai, junto com os irmãos e essa será a sua maior desgraça.
De resto, trabalhador como os melhores, até ir para a tropa.
Uma vez lá, gostaram tanto dele que o apanharam para a Guarda. E aí está ele, a ajudar os irmãos e a família; Deus o abençoe!...
É que, Ti José Lourinho, rapazes na cidade, com tantas “anegaças”, não é de fiar-se a gente.
E sempre se trata da nossa filha, não é?..
Ti Luís, nesse aspecto nada sei sobre o meu sobrinho; agora que é homem direito, honrado e trabalhador, a quem nenhuma boca pode atirar nada de mau, é bastante para merecer a sua filha; estão um para o outro, com a graça de Deus e a nossa.
Mas seja sincero, Ti José Lourinho, acha mesmo que a minha Conceição vai bem servida?!
Acho isso e parece-me que isto merece um copo; vamos entrando compadre.
Parece-me que posso tratá-lo assim, não é verdade?!...
Nem sabe quanto me aliviou, compadre José Lourinho.
Deus há-de pôr-lhes a bênção e até vamos esperar que tudo lhes corra da melhor forma possível.
O diálogo mostrava, nesta altura, ares de voltar quase ao princípio.
O Ti Luís voltava a enumerar as justificações de se tratar de uma filha, de termos obrigação de querer o melhor para os nossos, etc.
A outra parte, o Ti José Lourinho, lá deitou mais um copito e conseguiu terminar o diálogo, dizendo ao compadre:
Agora que vai estar metido em despesas, é de fazer-se à vida. Mas olhe que a maquia dos taleigos não pode ser acrescentada...
O Ti Luís reagiu bem à graça e, voltando-se para o compadre, como que a recomeçar a conversa, rematou:
Olhe que já hoje me deu uma boa alegria...
Nem todos os dias se casa uma filha, compadre!...
Até mais ver!...
Até mais ver, compadre!...
Vá com Deus!...
quarta-feira, 10 de setembro de 2008
O Zé Lines
Nos confins da Beira Alta, nas terras arraianas, na margem esquerda do rio Noeme, afluente do Côa, com a Senhora do Monte a nascente e aninhada num morro granítico – o Calvário –, está exposta a sul, a povoação do Rochoso, sede de freguesia, do concelho da Guarda.
Rodeada de barrocos, entrecortados por pequenas veigas, lameiros e terras de pão, contempla a poente a Serra da Estrela, para lá dos horizontes onde restam tufos dos últimos soutos de castanheiros e aqui e além pequenas manchas de pinheiros.
Nas veigas cultiva-se o centeio e a batata, nos lameiros pastam as vacas e nas terras mais áridas os rebanhos que hão-de dar o leite de que se fará o excelente, inconfundível e único “queijo da serra”.
Nos anos sessenta, ainda solteiro, fui apadrinhar um casamento, com a minha noiva, e tornei-me cidadão adoptivo do Rochoso.
Havia que cumprir os usos e costumes da terra que rezavam que todo o rapaz, de fora da terra, que ali fosse casar teria de pagar as “bicas”.
Seria sujeito a algumas partidas, no carro, pagaria umas boas rodadas, na taberna, e participaria numa farra, com a rapaziada da terra.
Foi então que conheci o Zé Lines, figura típica da terra, na casa dos quarenta, que não passava um dia sem ir a casa da madrinha – a mãe da minha noiva -, onde perguntava, da porta, enquanto ia entrando:
- Precisa de alguma coisa, minha madrinha?!...
Raramente o vi comer lá em casa, e, nos anos que tive o gosto de o conhecer, não me lembro de o ter visto sóbrio naquelas passagens nocturnas. Porém, sempre ali bebia o último copito do dia, uma vez que dali seguia para casa, um pouco mais adiante, na rua que vai dar ao Calvário, onde morava com a mãe.
Nascido e criado na aldeia, aprendeu a ler e escrever e depois trabalhou nas mais diversas ocupações.
Nunca foi amigo de andar a dar jornais, mas não recusava qualquer serviço a quem lhe pedisse, sobretudo se o pedido viesse da sua madrinha, ou do falecido padrinho, com quem chegou a andar na construção de estradas, pois o senhor Júlio fora fiscal da Junta Autónoma de Estradas.
Ia fazendo umas “cargas” de contrabando para Espanha; por isso, foi hóspede, por várias vezes, dos calabouços de “nuestros hermanos”, nas terras de Fuentes de Oñoro a Salamanca. Todavia, fazia gala ao afirmar que nunca fôra preso por fazer mal a alguém, ou por roubar.
Quando dizia roubar, exclamava: “toque-le”!...
De estatura mediana, cabelos muito pretos e olhos claros, uma paulada, numa desordem, deixou-lhe uma cicatriz no centro da testa. O amanho, imperfeito, de uma clavícula, por um “endireita”, provocava-lhe um desacerto na altura dos ombros. As mãos acusavam algumas bombas de foguete, rebentadas fora de tempo, e os entalões nas pedras da ribeira, catando os peixitos.
No trato era muito educado e correcto e tinha o “coração” enorme. Amigo do seu amigo e capaz de dar tudo, por um amigo…
Tratava, com a mãe, um pequeno chão nas Fontainhas, logo atrás do Calvário; ali colhiam o sustento de ambos e tinham os mimos da casa, com que o Zé Lines gostava de presentear a “sua madrinha”.
Minava-se por dar uma volta, ir até à cidade, ou andar, simplesmente, pelos campos –, onde, em muitas horas, percorremos todo o termo do Rochoso e muitas vezes fizemos pescarias no Noeme e no Côa.
Vi-o caçar verdugos e procurar míscaros e tortulhos, no tempo deles.
No Verão, percorríamos as terras em volta e começávamos, antes do nascer do sol, a armar as costelas aos taralhões, até ao Monte Margarida e ao termo da Cerdeira.
Nos piqueniques que duas ou três vezes, nas férias grandes, fazíamos nas margens do Côa, junto a Roque Amador, o Zé Lines era o melhor ajudante que podíamos ter: capinava, abria clareiras nos arbustos, apanhava verdura, cuidava da garotada junto do açude, ia comigo à praça e ao talho no Sabugal… que saudades me despertam as recordações daqueles dias bem passados!...
Recordo, particularmente, uma conversa, num dos últimos serões em que estive com o Zé Lines, sentados junto às cruzes do Calvário.
Foi ali que, a meu pedido, o Zé me explicou a aplicação que deu aos duzentos escudos com que controlou a rapaziada que queria que eu participasse nas “bicas”, na altura do meu casamento.
É digno de registo o poder de síntese com que me foi descrito o caso: a rapaziada e até alguns homens feitos, queriam vazar-lhe um pneu do carro, fazer algazarra junto da casa de sua noiva e levá-lo a beber uns copos – tudo em nome da tradição e como baptismo de amizade –.
Pareceu-me que o senhor professor se não devia misturar e, na taberna do Zé Maria e na do sr. Domingos Marques, falei alto e grosso: o senhor professor já me deu dinheiro que chega para nos encher a barriga de bom vinho, mas como ainda não conhece ninguém – e só por isso –, não virá beber connosco. Ninguém toca em nada dele e, se alguém o fizer, racho-o!...ouviram bem, racho-o!...
Compreendi, perfeitamente, a maneira como o Zé Lines geriu o caso; apreciei a discrição que sempre teve sobre o assunto e percebi que estava ali um homem simples, mas que sabia respeitar os valores da amizade, que prezava mais que tudo.
Dei-lhe um abraço e agradeci-lhe, com um simples “obrigado Zé Lines”, gosto muito que seja meu amigo.
Vi, mais duas ou três vezes o Zé Lines, que, entretanto começou a passar de tempos a tempos pelo sanatório da Guarda, onde todos os cuidados médicos já não foram a tempo de evitar o falecimento, aos sessenta anos.
Perdi um grande amigo; que nunca me revelou todo o segredo da sua simplicidade, da sua maneira de ser amigo…
A sua maior satisfação era dar alguma coisa a alguém!...
E tinha, tão pouco!...
Rodeada de barrocos, entrecortados por pequenas veigas, lameiros e terras de pão, contempla a poente a Serra da Estrela, para lá dos horizontes onde restam tufos dos últimos soutos de castanheiros e aqui e além pequenas manchas de pinheiros.
Nas veigas cultiva-se o centeio e a batata, nos lameiros pastam as vacas e nas terras mais áridas os rebanhos que hão-de dar o leite de que se fará o excelente, inconfundível e único “queijo da serra”.
Nos anos sessenta, ainda solteiro, fui apadrinhar um casamento, com a minha noiva, e tornei-me cidadão adoptivo do Rochoso.
Havia que cumprir os usos e costumes da terra que rezavam que todo o rapaz, de fora da terra, que ali fosse casar teria de pagar as “bicas”.
Seria sujeito a algumas partidas, no carro, pagaria umas boas rodadas, na taberna, e participaria numa farra, com a rapaziada da terra.
Foi então que conheci o Zé Lines, figura típica da terra, na casa dos quarenta, que não passava um dia sem ir a casa da madrinha – a mãe da minha noiva -, onde perguntava, da porta, enquanto ia entrando:
- Precisa de alguma coisa, minha madrinha?!...
Raramente o vi comer lá em casa, e, nos anos que tive o gosto de o conhecer, não me lembro de o ter visto sóbrio naquelas passagens nocturnas. Porém, sempre ali bebia o último copito do dia, uma vez que dali seguia para casa, um pouco mais adiante, na rua que vai dar ao Calvário, onde morava com a mãe.
Nascido e criado na aldeia, aprendeu a ler e escrever e depois trabalhou nas mais diversas ocupações.
Nunca foi amigo de andar a dar jornais, mas não recusava qualquer serviço a quem lhe pedisse, sobretudo se o pedido viesse da sua madrinha, ou do falecido padrinho, com quem chegou a andar na construção de estradas, pois o senhor Júlio fora fiscal da Junta Autónoma de Estradas.
Ia fazendo umas “cargas” de contrabando para Espanha; por isso, foi hóspede, por várias vezes, dos calabouços de “nuestros hermanos”, nas terras de Fuentes de Oñoro a Salamanca. Todavia, fazia gala ao afirmar que nunca fôra preso por fazer mal a alguém, ou por roubar.
Quando dizia roubar, exclamava: “toque-le”!...
De estatura mediana, cabelos muito pretos e olhos claros, uma paulada, numa desordem, deixou-lhe uma cicatriz no centro da testa. O amanho, imperfeito, de uma clavícula, por um “endireita”, provocava-lhe um desacerto na altura dos ombros. As mãos acusavam algumas bombas de foguete, rebentadas fora de tempo, e os entalões nas pedras da ribeira, catando os peixitos.
No trato era muito educado e correcto e tinha o “coração” enorme. Amigo do seu amigo e capaz de dar tudo, por um amigo…
Tratava, com a mãe, um pequeno chão nas Fontainhas, logo atrás do Calvário; ali colhiam o sustento de ambos e tinham os mimos da casa, com que o Zé Lines gostava de presentear a “sua madrinha”.
Minava-se por dar uma volta, ir até à cidade, ou andar, simplesmente, pelos campos –, onde, em muitas horas, percorremos todo o termo do Rochoso e muitas vezes fizemos pescarias no Noeme e no Côa.
Vi-o caçar verdugos e procurar míscaros e tortulhos, no tempo deles.
No Verão, percorríamos as terras em volta e começávamos, antes do nascer do sol, a armar as costelas aos taralhões, até ao Monte Margarida e ao termo da Cerdeira.
Nos piqueniques que duas ou três vezes, nas férias grandes, fazíamos nas margens do Côa, junto a Roque Amador, o Zé Lines era o melhor ajudante que podíamos ter: capinava, abria clareiras nos arbustos, apanhava verdura, cuidava da garotada junto do açude, ia comigo à praça e ao talho no Sabugal… que saudades me despertam as recordações daqueles dias bem passados!...
Recordo, particularmente, uma conversa, num dos últimos serões em que estive com o Zé Lines, sentados junto às cruzes do Calvário.
Foi ali que, a meu pedido, o Zé me explicou a aplicação que deu aos duzentos escudos com que controlou a rapaziada que queria que eu participasse nas “bicas”, na altura do meu casamento.
É digno de registo o poder de síntese com que me foi descrito o caso: a rapaziada e até alguns homens feitos, queriam vazar-lhe um pneu do carro, fazer algazarra junto da casa de sua noiva e levá-lo a beber uns copos – tudo em nome da tradição e como baptismo de amizade –.
Pareceu-me que o senhor professor se não devia misturar e, na taberna do Zé Maria e na do sr. Domingos Marques, falei alto e grosso: o senhor professor já me deu dinheiro que chega para nos encher a barriga de bom vinho, mas como ainda não conhece ninguém – e só por isso –, não virá beber connosco. Ninguém toca em nada dele e, se alguém o fizer, racho-o!...ouviram bem, racho-o!...
Compreendi, perfeitamente, a maneira como o Zé Lines geriu o caso; apreciei a discrição que sempre teve sobre o assunto e percebi que estava ali um homem simples, mas que sabia respeitar os valores da amizade, que prezava mais que tudo.
Dei-lhe um abraço e agradeci-lhe, com um simples “obrigado Zé Lines”, gosto muito que seja meu amigo.
Vi, mais duas ou três vezes o Zé Lines, que, entretanto começou a passar de tempos a tempos pelo sanatório da Guarda, onde todos os cuidados médicos já não foram a tempo de evitar o falecimento, aos sessenta anos.
Perdi um grande amigo; que nunca me revelou todo o segredo da sua simplicidade, da sua maneira de ser amigo…
A sua maior satisfação era dar alguma coisa a alguém!...
E tinha, tão pouco!...
domingo, 7 de setembro de 2008
A maior “galga”
Mais para o fim do serão, quanto as mentes já estavam menos lúcidas, costumava atacar o Augusto Brotas, que se resguardava enquanto os outros iam bebendo e tinha fama de sabedor.
Junto do balcão da taberna resistiam ainda os quatro da ordem: Chico Galhoso, Abílio da Chica, Bento e Tó da Marreca.
Vem de lá o Brotas e desafia cada um a contar a maior galga que já tivesse ouvido. O campeão ficava livre do pagamento de rodada e ele, Brotas, como juiz, também não pagava, naquela noite.
Começa o Tó da Marreca a dizer que já tinha estado numa herdade onde havia um poço tão fundo, tão fundo que, só para chegar à água, foram precisos quinze rolos de corda, com cento e vinte metros cada rolo. E, depois, ainda outro tanto para se alcançar o fundo.
Quase em uníssono exclamaram todos: aldra!...
Porém, sem se desmanchar, o Tó acrescentou que e o poço foi todo feito em areia e terra, sem se encontrar uma única pedra e a água é salgada, porque vem direitinha do mar.
O Galhoso atirou, de repente:
Andei, a ceifar, debaixo de um castanheiro, tão grande, tão grande, que num ano, carregou de castanhas um comboio, tão grande, tão grande, que o primeiro vagão estava a sair quando chegou o rancho da azeitona e o último ainda estava a carregar quando, ao fim de mês e meio, o rancho veio embora.
Mentiroso sou eu e parece-me que não viram grandes proezas, disse o Bento
Estive, há dias, ao pé duma abóbora, tão grande, tão grande, que para conseguir vê-la toda, era preciso andar em roda dela.
Chegou para fazer vianda para todos os porcos que nunca se lavaram no poço do Tó, porque a água era salgada, nem os que também o não fizeram para não deixar de carregar o comboio das castanhas.
Para pesar toda a produção foram precisas mais de uma dúzia de balanças e quatro homens gastaram à roda de um mês, só para parti-la.
O Abílio da Chica falou por último e disse que viu um mar, tão grande, tão grande, que nem todos os peixes do mundo a beber dele, são capazes de baixar-lhe o nível, quanto mais secá-lo!...
Salta de lá o Brotas, sisudo e muito convencido, com a sentença:
Temos aqui mentirosos de alta qualidade e todos muito sérios nas suas informações.
O poço do Tó, o castanheiro do Galhoso e a abóbora do Bento, merecem respeito. Mas o mar do Abílio é soberbo!...
Atão tantos peixes, a beber, desde que o mundo é mundo, e ainda o não secaram!?... Só esperamos que um dia não se lembrem de ir todos beber, ao mesmo sítio e à mesma hora …Aí o caso era muito sério!....
Parece-me que todos concordam que ganhou o Abílio e, venha de lá a rodada, antes que se acabe primeiro a água do mar do Abílio, que a zurrapa que o Ti’ Manel nos deita nos copos. Mas, antes oiçam lá esta:
Para a próxima, escusam de ir tão longe:
Atão não temos aqui uma serra tão grande, tão grande, que até o sol lhe passa sempre à roda, com medo de lhe passar por cima?
Atão, nunca tinham pensado porque puseram o nome de Serra aqui à nossa terra?...
Junto do balcão da taberna resistiam ainda os quatro da ordem: Chico Galhoso, Abílio da Chica, Bento e Tó da Marreca.
Vem de lá o Brotas e desafia cada um a contar a maior galga que já tivesse ouvido. O campeão ficava livre do pagamento de rodada e ele, Brotas, como juiz, também não pagava, naquela noite.
Começa o Tó da Marreca a dizer que já tinha estado numa herdade onde havia um poço tão fundo, tão fundo que, só para chegar à água, foram precisos quinze rolos de corda, com cento e vinte metros cada rolo. E, depois, ainda outro tanto para se alcançar o fundo.
Quase em uníssono exclamaram todos: aldra!...
Porém, sem se desmanchar, o Tó acrescentou que e o poço foi todo feito em areia e terra, sem se encontrar uma única pedra e a água é salgada, porque vem direitinha do mar.
O Galhoso atirou, de repente:
Andei, a ceifar, debaixo de um castanheiro, tão grande, tão grande, que num ano, carregou de castanhas um comboio, tão grande, tão grande, que o primeiro vagão estava a sair quando chegou o rancho da azeitona e o último ainda estava a carregar quando, ao fim de mês e meio, o rancho veio embora.
Mentiroso sou eu e parece-me que não viram grandes proezas, disse o Bento
Estive, há dias, ao pé duma abóbora, tão grande, tão grande, que para conseguir vê-la toda, era preciso andar em roda dela.
Chegou para fazer vianda para todos os porcos que nunca se lavaram no poço do Tó, porque a água era salgada, nem os que também o não fizeram para não deixar de carregar o comboio das castanhas.
Para pesar toda a produção foram precisas mais de uma dúzia de balanças e quatro homens gastaram à roda de um mês, só para parti-la.
O Abílio da Chica falou por último e disse que viu um mar, tão grande, tão grande, que nem todos os peixes do mundo a beber dele, são capazes de baixar-lhe o nível, quanto mais secá-lo!...
Salta de lá o Brotas, sisudo e muito convencido, com a sentença:
Temos aqui mentirosos de alta qualidade e todos muito sérios nas suas informações.
O poço do Tó, o castanheiro do Galhoso e a abóbora do Bento, merecem respeito. Mas o mar do Abílio é soberbo!...
Atão tantos peixes, a beber, desde que o mundo é mundo, e ainda o não secaram!?... Só esperamos que um dia não se lembrem de ir todos beber, ao mesmo sítio e à mesma hora …Aí o caso era muito sério!....
Parece-me que todos concordam que ganhou o Abílio e, venha de lá a rodada, antes que se acabe primeiro a água do mar do Abílio, que a zurrapa que o Ti’ Manel nos deita nos copos. Mas, antes oiçam lá esta:
Para a próxima, escusam de ir tão longe:
Atão não temos aqui uma serra tão grande, tão grande, que até o sol lhe passa sempre à roda, com medo de lhe passar por cima?
Atão, nunca tinham pensado porque puseram o nome de Serra aqui à nossa terra?...
quinta-feira, 4 de setembro de 2008
Chuva de prata
Toda a garotada da aldeia gostava de ouvir as histórias do velho Vicente Pisco, que morava num casebre, ao fundo da cabana onde o Ti’ Zé Coroado fazia cestos de verga.
Na nossa linguagem não havia números para dizer a idade do velhote; era velho e mais nada.
Naquele ano, à volta de mil novecentos e cinquenta, não havia escola no Posto da Serra e a garotada distribuiu-se pelas aldeias mais próximas; eu tinha a sorte de ter avós na Queixoperra e fui para lá, fazer a segunda classe.
Pouco mais me lembro, para além de que aquele ano foi muito bonito: gostei muito da Professora, dos colegas e, sobretudo, de ver muitas coisas que não havia na minha terra. Havia muitas peras, muitas casas com juntas de bois, muitos caçadores e duas coisas que, de tal modo me cativaram as papilas gustativas, que ainda consigo lembrar-lhes o sabor, na íntegra: os queijos da minha avó e as passas de figos brancos, da figueira da Amarela.
No Pito Cerro tínhamos laranjas muito doces, na horta do Ribeiro, cenouras – coisa que nunca tinha visto na Serra –, na Matagosa, água muito fresquinha e no Ougueiro, ao fundo do Pito de Horta, alhos, cebolas e alfaces e uma nora.
Uma coisa me incomodava: dado o elevado número de caçadores, havia muitos cães e eu tinha medo deles. Era um consolo subir e descer a azinhaga da Bica, quando ia a recados à loja do Ti’ Zé Maia, ou do Ti’ Silvestre: subia e descia sem encontrar um único cão.
Morava no casal, junto das casas da gente mais velha da terra e, da varandita do meu avô, via entrar e sair o Ti’ Vicente Pisco.
Diga-se que Vicente era um nome vulgar na Queixoperra e não havia nenhum na Serra. Aqui está mais uma novidade, para mim, entre muitas outras que me enriquecerem, de tal modo, que ainda hoje guardo um carinho especial pelos usos e costumes da terra e pelas suas gentes.
Ouvi, com outros miúdos, muitas histórias do velhote. Retenho-as, na sua grande maioria, na memória. Há, porém, uma que várias vezes se adianta e sobrepõe às outras: a do dia da chuva de prata.
Contava, sentado no degrau da sua porta, o Ti’Vicente Pisco: Há dias para tudo; uns melhores, outros piores e muitos nem bons nem maus.
Há dias que só vêm uma vez: só temos um dia para nascer e só outro para morrer. Um dos meus segredos é saber quais são esses dias: para nascer é o primeiro e para morrer é o último, da vida de cada um.
E olhem que já tem vindo aqui à minha porta o dia de morrer, mas eu, nesse dia, vou-me embora para longe, para as Fontainhas, ou para a Lameira Cimeira. É por isso que sou o mais velho da aldeia.
Há dias que nos ficam na lembrança e outros que teimam em não nos sair dela, embora gostássemos de os esquecer.
Há dias bons e dias maus – vocês conhecem o Ti’Manel Dias, das Barreirinhas? E que vos parece?
É claro, é mau. Assobia aos cães quando vocês lhe passam à porta!...
Nós, lá íamos abanando a cabeça, até que o João do Ribeiro, ou o Heitor – outro nome que também não havia na Serra –, lançavam o desafio: Oh Ti’Vicente, e é verdade que há um dia que chove prata?!...
Completamente verdade. Foi-me dito pelo meu avô e olhem que era homem que nunca mentia!...
Ele andou toda a vida para encontrar esse dia e parece-me que calhou numa altura em que tinha ido a alguma feira, ou quando andou na tropa. Acabou por não o descobrir.
Eu, aqui há uns anos, acordei com o chão coberto de branco. Vesti as calças, a correr, e fui à tapada para apanhar a prata, mas ainda não era o dia de chover prata; era, apenas, uma das poucas vezes que caiu neve cá na terra.
Palavra de Vicente Pisco: podem estar descansados que quando estiver para chegar o dia da chuva de prata, eu mando avisar todos – não quero que ninguém fique sem poder guardar um bem tão raro –.
Olhámos uns para os outros, muito crédulos, e fomos embora!...
Na nossa linguagem não havia números para dizer a idade do velhote; era velho e mais nada.
Naquele ano, à volta de mil novecentos e cinquenta, não havia escola no Posto da Serra e a garotada distribuiu-se pelas aldeias mais próximas; eu tinha a sorte de ter avós na Queixoperra e fui para lá, fazer a segunda classe.
Pouco mais me lembro, para além de que aquele ano foi muito bonito: gostei muito da Professora, dos colegas e, sobretudo, de ver muitas coisas que não havia na minha terra. Havia muitas peras, muitas casas com juntas de bois, muitos caçadores e duas coisas que, de tal modo me cativaram as papilas gustativas, que ainda consigo lembrar-lhes o sabor, na íntegra: os queijos da minha avó e as passas de figos brancos, da figueira da Amarela.
No Pito Cerro tínhamos laranjas muito doces, na horta do Ribeiro, cenouras – coisa que nunca tinha visto na Serra –, na Matagosa, água muito fresquinha e no Ougueiro, ao fundo do Pito de Horta, alhos, cebolas e alfaces e uma nora.
Uma coisa me incomodava: dado o elevado número de caçadores, havia muitos cães e eu tinha medo deles. Era um consolo subir e descer a azinhaga da Bica, quando ia a recados à loja do Ti’ Zé Maia, ou do Ti’ Silvestre: subia e descia sem encontrar um único cão.
Morava no casal, junto das casas da gente mais velha da terra e, da varandita do meu avô, via entrar e sair o Ti’ Vicente Pisco.
Diga-se que Vicente era um nome vulgar na Queixoperra e não havia nenhum na Serra. Aqui está mais uma novidade, para mim, entre muitas outras que me enriquecerem, de tal modo, que ainda hoje guardo um carinho especial pelos usos e costumes da terra e pelas suas gentes.
Ouvi, com outros miúdos, muitas histórias do velhote. Retenho-as, na sua grande maioria, na memória. Há, porém, uma que várias vezes se adianta e sobrepõe às outras: a do dia da chuva de prata.
Contava, sentado no degrau da sua porta, o Ti’Vicente Pisco: Há dias para tudo; uns melhores, outros piores e muitos nem bons nem maus.
Há dias que só vêm uma vez: só temos um dia para nascer e só outro para morrer. Um dos meus segredos é saber quais são esses dias: para nascer é o primeiro e para morrer é o último, da vida de cada um.
E olhem que já tem vindo aqui à minha porta o dia de morrer, mas eu, nesse dia, vou-me embora para longe, para as Fontainhas, ou para a Lameira Cimeira. É por isso que sou o mais velho da aldeia.
Há dias que nos ficam na lembrança e outros que teimam em não nos sair dela, embora gostássemos de os esquecer.
Há dias bons e dias maus – vocês conhecem o Ti’Manel Dias, das Barreirinhas? E que vos parece?
É claro, é mau. Assobia aos cães quando vocês lhe passam à porta!...
Nós, lá íamos abanando a cabeça, até que o João do Ribeiro, ou o Heitor – outro nome que também não havia na Serra –, lançavam o desafio: Oh Ti’Vicente, e é verdade que há um dia que chove prata?!...
Completamente verdade. Foi-me dito pelo meu avô e olhem que era homem que nunca mentia!...
Ele andou toda a vida para encontrar esse dia e parece-me que calhou numa altura em que tinha ido a alguma feira, ou quando andou na tropa. Acabou por não o descobrir.
Eu, aqui há uns anos, acordei com o chão coberto de branco. Vesti as calças, a correr, e fui à tapada para apanhar a prata, mas ainda não era o dia de chover prata; era, apenas, uma das poucas vezes que caiu neve cá na terra.
Palavra de Vicente Pisco: podem estar descansados que quando estiver para chegar o dia da chuva de prata, eu mando avisar todos – não quero que ninguém fique sem poder guardar um bem tão raro –.
Olhámos uns para os outros, muito crédulos, e fomos embora!...
terça-feira, 2 de setembro de 2008
S. Barnabé
O Ti’Cavaco saía alta madrugada, montado no macho, estrada de Almodôvar a baixo e, antes de entrar na vila, desviava à direita, embrenhando-se no Caldeirão.
Passava entre as barragens de Monte dos Clérigos e Boavista, até às nascentes do rio Mira.
Entre as aldeias de Cansados e Felizes, circundava, pelo norte, as alturas da serra, onde está o talefe dos 577 metros, e tomava o caminho para S. Barnabé, onde chegava por volta do meio-dia.
Ia direito a casa do Ti’Chico da Azenha, em procura da melhor medronheira que alguma vez lhe passou pelo estreito.
Era dessa pomada que dispensava aos clientes amigos e especiais. Passados quase quarenta anos tenho ainda na minha casa umas duas garrafas desse néctar, adquirido a cinco escudos o litro, ou vinte e dois escudos e cinquenta centavos os cinco litros.
O Ti’Chico colhia o medronho quando já pendia, muito bem maduro. Tinha duas talhas de uns dez almudes cada, onde preparava as infusões. A água era cuidadosamente apanhada, de manhã cedo, numa mina distante de tudo e certamente conhecida de muito poucos. As raízes das torgas, arrancadas no fim do inverno e secas, à sombra, nos cómodos da burra, eram o combustível ideal para manter constante o calor que aquecia a caldeira do velho alambique de cobre.
O engenho, era formado, além da caldeira, calafetada em pedras e cal, sobre uma fornalha com acesso por uma pequena porta, onde ardia a fogueira que fazia ferver a infusão, pelo capelo, o banho onde estava mergulhado o cano, em serpentina, e o tubo onde corria a aguardente, para um cântaro, de barro, de uns vinte litros. Cada caldeira dava uns dois cântaros, da boa, e mais um, da mais fraca.
O Ti´Chico descrevia, com detalhe, a forma de trabalhar, mas… os segredos da colheita dos frutos, a recolha da água, o tempo de infusão, a apanha e tratamento das cepas das torgas e a temperatura a que pertencia guardar o néctar de príncipes e reis, como lhe chamava, só uma vez seriam revelados – cada pai passava o segredo ao filho mais velho, num ritual que envolvia a entrega de um tubo de cana grossa, fechado com uma rolha de cortiça e selado com sangue.
Contava o velhote:
Um dia, há centos de anos, andando à caça, pelos altos da Serra, o Senhor Rei D. Duarte – aquele que tinha um irmão para lá de Lagos –, matou um enorme javali e, tão contente ficou, que decretou que aquele lugar se passasse a chamar Felizes.
Levada, por caminhos difíceis, a imponente presa, de tão pesada que era, deixava exaustos todos os serviçais, cujo chefe pediu uma pausa a sua majestade. O senhor D. Duarte autorizou a paragem e ordenou que ao local se passasse a chamar Cansados.
Seguindo dali, por um dos mais belos vales do Caldeirão, deu a comitiva com uma azenha, onde apenas vivia um velho moleiro ermitão que, ao ver tão importante figura, lhe ofereceu uma pichorra de medronheira, preparada por ele próprio.
El-Rei D. Duarte, sentado ali, naquele banquinho de azinho, encostado ao alambique, aproveitou o calorzinho das brasas de Torga e provou a nossa medronheira, que nunca mais deixou que faltasse nas festas da sua corte.
Era dia de S. Barnabé e, também, esse o nome do meu antepassado que recebeu Sua Majestade, que, ali mesmo, mandou que o lugar se chamasse, para sempre, S. Barnabé
Passava entre as barragens de Monte dos Clérigos e Boavista, até às nascentes do rio Mira.
Entre as aldeias de Cansados e Felizes, circundava, pelo norte, as alturas da serra, onde está o talefe dos 577 metros, e tomava o caminho para S. Barnabé, onde chegava por volta do meio-dia.
Ia direito a casa do Ti’Chico da Azenha, em procura da melhor medronheira que alguma vez lhe passou pelo estreito.
Era dessa pomada que dispensava aos clientes amigos e especiais. Passados quase quarenta anos tenho ainda na minha casa umas duas garrafas desse néctar, adquirido a cinco escudos o litro, ou vinte e dois escudos e cinquenta centavos os cinco litros.
O Ti’Chico colhia o medronho quando já pendia, muito bem maduro. Tinha duas talhas de uns dez almudes cada, onde preparava as infusões. A água era cuidadosamente apanhada, de manhã cedo, numa mina distante de tudo e certamente conhecida de muito poucos. As raízes das torgas, arrancadas no fim do inverno e secas, à sombra, nos cómodos da burra, eram o combustível ideal para manter constante o calor que aquecia a caldeira do velho alambique de cobre.
O engenho, era formado, além da caldeira, calafetada em pedras e cal, sobre uma fornalha com acesso por uma pequena porta, onde ardia a fogueira que fazia ferver a infusão, pelo capelo, o banho onde estava mergulhado o cano, em serpentina, e o tubo onde corria a aguardente, para um cântaro, de barro, de uns vinte litros. Cada caldeira dava uns dois cântaros, da boa, e mais um, da mais fraca.
O Ti´Chico descrevia, com detalhe, a forma de trabalhar, mas… os segredos da colheita dos frutos, a recolha da água, o tempo de infusão, a apanha e tratamento das cepas das torgas e a temperatura a que pertencia guardar o néctar de príncipes e reis, como lhe chamava, só uma vez seriam revelados – cada pai passava o segredo ao filho mais velho, num ritual que envolvia a entrega de um tubo de cana grossa, fechado com uma rolha de cortiça e selado com sangue.
Contava o velhote:
Um dia, há centos de anos, andando à caça, pelos altos da Serra, o Senhor Rei D. Duarte – aquele que tinha um irmão para lá de Lagos –, matou um enorme javali e, tão contente ficou, que decretou que aquele lugar se passasse a chamar Felizes.
Levada, por caminhos difíceis, a imponente presa, de tão pesada que era, deixava exaustos todos os serviçais, cujo chefe pediu uma pausa a sua majestade. O senhor D. Duarte autorizou a paragem e ordenou que ao local se passasse a chamar Cansados.
Seguindo dali, por um dos mais belos vales do Caldeirão, deu a comitiva com uma azenha, onde apenas vivia um velho moleiro ermitão que, ao ver tão importante figura, lhe ofereceu uma pichorra de medronheira, preparada por ele próprio.
El-Rei D. Duarte, sentado ali, naquele banquinho de azinho, encostado ao alambique, aproveitou o calorzinho das brasas de Torga e provou a nossa medronheira, que nunca mais deixou que faltasse nas festas da sua corte.
Era dia de S. Barnabé e, também, esse o nome do meu antepassado que recebeu Sua Majestade, que, ali mesmo, mandou que o lugar se chamasse, para sempre, S. Barnabé
Retomamos as publicações
Historias de gente simples
Voltam ao convívio dos nossos leitores.
Mais uma vez, agradecemos as mensagens e contactos diversos, por diferentes meios
que nos incentivam a continuar a escrever.
Que sejam do vosso agrado as histórias que vão seguir-se e...
Não esqueçam, por favor, os vossos comentários.
O amigo
Prof. José Valente
josemvalente@netcabo.pt
historiasdegentesimples.blogspot.com
terça-feira, 12 de agosto de 2008
Interrupção, temporária, de publicações
Estimados leitores
Até final de Agosto, interromperemos as publicações no blog
Em Setembro teremos mais histórias de gente simples
Agradeço todos os comentários e outras missivas, normalmente de incentivo, que me têm dirigido e, para os que gostam, espero continuar a escrever as histórias das gentes simples das nossas terras.
Até breve
Prof. José Valente
Nota: A publicação em: maisfolhassoltas.blogspot.com, será, igualmente interrompida, até Setembro.
sexta-feira, 8 de agosto de 2008
Vizinhos
A água da mina da Matagosa era a melhor coisa que “Prudêncio” encontrava naquelas imediações.
Da Portela da Azenha, por toda a Amarela, subindo até à Pedreguina e entrando, depois, na vertente sul da serra do Corvo, até à Milharada, não havia uma pinga de água que se lhe comparasse. Ferrada, com cor levemente avermelhada, sabor intenso e frescura constante, nenhuma outra caía melhor ao resineiro.
O “Prudêncio”pegava no ferro, ao romper da manhã, passava na cozinha, engolia umas sopas de pão de milho com café de cevada e metia no bornal um bocado de pão com queijo, ou, em dias de mais abastança, um naco de toucinho, e, agarrando, por fim, a garrafa do ácido, fazia-se ao caminho, tendo como primeira paragem a mina da Matagosa, onde metia uma barrigada de água e começava a volta.
Junto da represa que entancava a água, afastava limos, folhas e outras impurezas da superfície e enchia a folha de couve, em forma de caneco, bebendo, com satisfação, uma meia litrada que havia de chegar até à mina do Ti' Domingos, na Milharada, mesmo no final da volta.
Ali, por volta das onze horas, com umas centenas de pinheiros renovados, estava ganho o dia. É claro que os tempos não eram fáceis e, não era raro os resineiros fazerem uma segunda volta, depois da sesta, até ao pôr-do-sol.
Pelo meio, havia que afiar o ferro, reabastecer a garrafa de ácido, jantar, esticar o corpo num boa sombra e, às vezes, aproveitar para regar uma represa de água, ou tratar de uns mimos.
A resina do pinheiro, que naqueles tempos era toda aproveitada, seguia das nossas terras, em barris de madeira, para as fábricas de Ortiga, Alferrarede, ou para os lados de Leiria e Pombal, onde era destilada, extraindo-se a aguarrás (essência de terebintina) e o pez louro, que, por sua vez, dava origem a muitas e variadas substâncias que alimentavam as indústrias químicas de perfumes, medicamentos, tintas e vernizes.
Era uma matéria-prima que servia para equilibrar a economia de muitas casas de lavoura e dava trabalho a muita gente do povo.
Quase de um dia para o outro, deixou de interessar.
Confesso que gostaria muito de explicar aqui as razões de tal abandono, os motivos por que acabou a exploração dessa matéria-prima, mas não as conheço, nem nunca ninguém mas explicou.
Mais tarde, os incêndios, fortuitos, passaram a rotina; as matas nacionais, primeiro e as privadas, depois, começaram a arder, ciclicamente, os resineiros acabaram, os pastores desistiram, os proprietários cansaram-se e, hoje, resta-nos a resignação de esperar para ver, num dos próximos verões, onde serão os próximos incêndios.
Quero, singelamente, prestar a minha homenagem a todos “os Prudêncios”, de todas as nossas terras, que beberam água nas minas e ganharam a vida fazendo “as voltas”da renova do pinhal e, agradecer, em meu nome e no de tantos outros que puderam estudar e livrar-se daqueles árduos trabalhos, à custa de resineiros, pastores e outras pessoas que cuidavam do alheio, como se de seu se tratasse.
Nota: – Escolhi o cenário da Queixoperra para enquadrar a história que ofereço aos leitores do “Jornal – Voz da Minha Terra –“por duas razões:
Por considerar que se trata de uma das aldeias onde o espírito e conceito de “vizinho”, se mantém muito vivo, e por ser a terra onde meu pai nasceu, e viveu até aos vinte e cinco anos.
E, era tão forte esse sentimento, que apesar de viver, depois, setenta anos, na Serra, manteve sempre aquele espírito gregário e de são e puro altruísmo, típico da sua aldeia de origem, a Queixoperra.
Da Portela da Azenha, por toda a Amarela, subindo até à Pedreguina e entrando, depois, na vertente sul da serra do Corvo, até à Milharada, não havia uma pinga de água que se lhe comparasse. Ferrada, com cor levemente avermelhada, sabor intenso e frescura constante, nenhuma outra caía melhor ao resineiro.
O “Prudêncio”pegava no ferro, ao romper da manhã, passava na cozinha, engolia umas sopas de pão de milho com café de cevada e metia no bornal um bocado de pão com queijo, ou, em dias de mais abastança, um naco de toucinho, e, agarrando, por fim, a garrafa do ácido, fazia-se ao caminho, tendo como primeira paragem a mina da Matagosa, onde metia uma barrigada de água e começava a volta.
Junto da represa que entancava a água, afastava limos, folhas e outras impurezas da superfície e enchia a folha de couve, em forma de caneco, bebendo, com satisfação, uma meia litrada que havia de chegar até à mina do Ti' Domingos, na Milharada, mesmo no final da volta.
Ali, por volta das onze horas, com umas centenas de pinheiros renovados, estava ganho o dia. É claro que os tempos não eram fáceis e, não era raro os resineiros fazerem uma segunda volta, depois da sesta, até ao pôr-do-sol.
Pelo meio, havia que afiar o ferro, reabastecer a garrafa de ácido, jantar, esticar o corpo num boa sombra e, às vezes, aproveitar para regar uma represa de água, ou tratar de uns mimos.
A resina do pinheiro, que naqueles tempos era toda aproveitada, seguia das nossas terras, em barris de madeira, para as fábricas de Ortiga, Alferrarede, ou para os lados de Leiria e Pombal, onde era destilada, extraindo-se a aguarrás (essência de terebintina) e o pez louro, que, por sua vez, dava origem a muitas e variadas substâncias que alimentavam as indústrias químicas de perfumes, medicamentos, tintas e vernizes.
Era uma matéria-prima que servia para equilibrar a economia de muitas casas de lavoura e dava trabalho a muita gente do povo.
Quase de um dia para o outro, deixou de interessar.
Confesso que gostaria muito de explicar aqui as razões de tal abandono, os motivos por que acabou a exploração dessa matéria-prima, mas não as conheço, nem nunca ninguém mas explicou.
Mais tarde, os incêndios, fortuitos, passaram a rotina; as matas nacionais, primeiro e as privadas, depois, começaram a arder, ciclicamente, os resineiros acabaram, os pastores desistiram, os proprietários cansaram-se e, hoje, resta-nos a resignação de esperar para ver, num dos próximos verões, onde serão os próximos incêndios.
Quero, singelamente, prestar a minha homenagem a todos “os Prudêncios”, de todas as nossas terras, que beberam água nas minas e ganharam a vida fazendo “as voltas”da renova do pinhal e, agradecer, em meu nome e no de tantos outros que puderam estudar e livrar-se daqueles árduos trabalhos, à custa de resineiros, pastores e outras pessoas que cuidavam do alheio, como se de seu se tratasse.
Nota: – Escolhi o cenário da Queixoperra para enquadrar a história que ofereço aos leitores do “Jornal – Voz da Minha Terra –“por duas razões:
Por considerar que se trata de uma das aldeias onde o espírito e conceito de “vizinho”, se mantém muito vivo, e por ser a terra onde meu pai nasceu, e viveu até aos vinte e cinco anos.
E, era tão forte esse sentimento, que apesar de viver, depois, setenta anos, na Serra, manteve sempre aquele espírito gregário e de são e puro altruísmo, típico da sua aldeia de origem, a Queixoperra.
terça-feira, 5 de agosto de 2008
O “senhor” dinheiro
O fidalgo da Torre era senhor das terras de umas duas léguas à roda do Tejo – nateiros e olivais, que se estendiam a perder de vista –, na margem direita. No lado de lá, já no Alentejo Alto, tinha herdades maiores que muitos concelhos e, se bem que a maior parte das terras fossem de pouca funda, só nos baixos e terras de regadio, alimentavam-se centenas de cabeças de gado. Mas a cortiça – tirava, todos os anos, para cima de mil arrobas –, era a sua maior riqueza.
Na Torre tinha o solar, umas jeiras de terras boas e o lagar de azeite que, em cada safra, trabalhava, só na azeitona da casa, para cima de dois meses e meio.
Uma bela ocasião – como contava o meu avô – o senhor Lavrador comprou um casal, no termo de Belver, e, a pedido do vendedor, a escritura foi marcada no Tabelião de Mação.
O senhor Lavrador não tinha muito hábito de frequentar aquela vila, mas avisou o feitor que tal dia, ao romper da manhã, tivesse o seu cavalo pensado e aparelhado e ele e mais dois homens, de confiança, armados, estivessem prontos para o acompanharem.
Adiantou, com a menção de segredo, que iria fazer uma escritura e levaria, consigo, bastante dinheiro.
Na hora e dia marcados, estava tudo pronto e, depois de uma bucha, oferecida pelo senhor Lavrador, montaram e seguiram para a vila. Um dos homens na frente, atrás o senhor Lavrador e o feitor e a fechar a coluna, o outro homem.
O fidalgo era homem simples, gostava de andar sem ser reconhecido – no que tinha certas dificuldades – e gostava muito de ouvir, e contar, chalaças.
No caminho, sem perderem o sentido da guarda, Lavrador e feitor, foram quase sempre de prosa.
Chegados à vila, os dois homens tomaram as rédeas das montadas do Lavrador e do feitor e quedaram-se ali pela taberna, aguardando que os senhores voltassem. Ao certo não sabiam aonde iam nem quanto tempo demorariam. Beberiam uns copos e esperariam…
Na frente o senhor Lavrador, com calças e jaqueta alentejanas, capote sobre os ombros e, na mão, uma bolsa de trapos, cujo cordão enfiara no braço.
Atrás dele, com indumentária idêntica, seguia o feitor que tomou a dianteira, ao entrar na sala, e, dirigindo-se à secretária, pediu para avisar que vinham para uma escritura, marcada para as nove horas.
Depois fez menção de se sentar numa cadeira que estava ao canto da sala, ao lado de outra já ocupada pelo senhor Lavrador.
A senhora, com ar de poucos amigos, num tom de comandante de qualquer coisa; tudo, menos pessoa correcta e educada – na expressão do meu avô –, disse, apontando o dedo ao fidalgo:
Eh! Você aí, levante-se lá, que essas cadeiras são para os senhores que hão-de vir – testemunhas e acompanhantes ficam de pé. Ou será que já está cansado, logo pela manhã!?
O Tabelião, esquecera-se de avisar quem eram os intervenientes no negócio, apesar de conhecer o fidalgo, que, aliás, cumprimentou, respeitosamente, ao chegar ao cartório e convidou a entrar, de imediato, para a sala das escrituras.
No interior, a secretária foi puxar um cadeirão e com a cerimónia que seria difícil adivinhar-lhe, momentos antes, na sala de espera, convidou o senhor fidalgo a sentar-se.
Porém, perfilado ao lado do cadeirão, o senhor D. Jorge de Meneses de Sá e Boaventura Falcão, pegou, cuidadosamente, na bolsa e, pousando-a no assento, disse:
- Senta-te aí, senhor dinheiro!... E manteve-se de pé.
A secretária, mais encarnada que uma romã madura, ia a pedir desculpa, quando o senhor Lavrador, dirigindo-se ao Tabelião, pediu que se começasse, de imediato, a função. Podiam estar para chegar alguns senhores, que não deveriam fazer esperar, acrescentou, ironicamente.
Finda a escritura, o senhor Lavrador e, no acto, comprador, pegou na bolsa e abrindo-a, tirou as centenas de notas suficientes para fazer o pagamento da escritura de maior valor alguma vez realizada, até então, por aquele Tabelião.
Na Torre tinha o solar, umas jeiras de terras boas e o lagar de azeite que, em cada safra, trabalhava, só na azeitona da casa, para cima de dois meses e meio.
Uma bela ocasião – como contava o meu avô – o senhor Lavrador comprou um casal, no termo de Belver, e, a pedido do vendedor, a escritura foi marcada no Tabelião de Mação.
O senhor Lavrador não tinha muito hábito de frequentar aquela vila, mas avisou o feitor que tal dia, ao romper da manhã, tivesse o seu cavalo pensado e aparelhado e ele e mais dois homens, de confiança, armados, estivessem prontos para o acompanharem.
Adiantou, com a menção de segredo, que iria fazer uma escritura e levaria, consigo, bastante dinheiro.
Na hora e dia marcados, estava tudo pronto e, depois de uma bucha, oferecida pelo senhor Lavrador, montaram e seguiram para a vila. Um dos homens na frente, atrás o senhor Lavrador e o feitor e a fechar a coluna, o outro homem.
O fidalgo era homem simples, gostava de andar sem ser reconhecido – no que tinha certas dificuldades – e gostava muito de ouvir, e contar, chalaças.
No caminho, sem perderem o sentido da guarda, Lavrador e feitor, foram quase sempre de prosa.
Chegados à vila, os dois homens tomaram as rédeas das montadas do Lavrador e do feitor e quedaram-se ali pela taberna, aguardando que os senhores voltassem. Ao certo não sabiam aonde iam nem quanto tempo demorariam. Beberiam uns copos e esperariam…
Na frente o senhor Lavrador, com calças e jaqueta alentejanas, capote sobre os ombros e, na mão, uma bolsa de trapos, cujo cordão enfiara no braço.
Atrás dele, com indumentária idêntica, seguia o feitor que tomou a dianteira, ao entrar na sala, e, dirigindo-se à secretária, pediu para avisar que vinham para uma escritura, marcada para as nove horas.
Depois fez menção de se sentar numa cadeira que estava ao canto da sala, ao lado de outra já ocupada pelo senhor Lavrador.
A senhora, com ar de poucos amigos, num tom de comandante de qualquer coisa; tudo, menos pessoa correcta e educada – na expressão do meu avô –, disse, apontando o dedo ao fidalgo:
Eh! Você aí, levante-se lá, que essas cadeiras são para os senhores que hão-de vir – testemunhas e acompanhantes ficam de pé. Ou será que já está cansado, logo pela manhã!?
O Tabelião, esquecera-se de avisar quem eram os intervenientes no negócio, apesar de conhecer o fidalgo, que, aliás, cumprimentou, respeitosamente, ao chegar ao cartório e convidou a entrar, de imediato, para a sala das escrituras.
No interior, a secretária foi puxar um cadeirão e com a cerimónia que seria difícil adivinhar-lhe, momentos antes, na sala de espera, convidou o senhor fidalgo a sentar-se.
Porém, perfilado ao lado do cadeirão, o senhor D. Jorge de Meneses de Sá e Boaventura Falcão, pegou, cuidadosamente, na bolsa e, pousando-a no assento, disse:
- Senta-te aí, senhor dinheiro!... E manteve-se de pé.
A secretária, mais encarnada que uma romã madura, ia a pedir desculpa, quando o senhor Lavrador, dirigindo-se ao Tabelião, pediu que se começasse, de imediato, a função. Podiam estar para chegar alguns senhores, que não deveriam fazer esperar, acrescentou, ironicamente.
Finda a escritura, o senhor Lavrador e, no acto, comprador, pegou na bolsa e abrindo-a, tirou as centenas de notas suficientes para fazer o pagamento da escritura de maior valor alguma vez realizada, até então, por aquele Tabelião.
Assinados todos os papéis e feitas as despedidas, o senhor Lavrador cumprimentou e saiu, seguido do feitor.
Tabelião e secretária, olharam-se e, assumindo o erro, perceberam a lição: as pessoas passaram a sentar-se, na sala de espera, pela ordem de chegada.
Moral da história, como, sempre dizia o meu avô, a fechar: o saber, a educação e o respeito, não ocupam lugar!... Tanto podem estar atrás dum capote alentejano, como numa bolsa de pano!...
Tabelião e secretária, olharam-se e, assumindo o erro, perceberam a lição: as pessoas passaram a sentar-se, na sala de espera, pela ordem de chegada.
Moral da história, como, sempre dizia o meu avô, a fechar: o saber, a educação e o respeito, não ocupam lugar!... Tanto podem estar atrás dum capote alentejano, como numa bolsa de pano!...
segunda-feira, 4 de agosto de 2008
O Tó “Lixado”
Atarracado, de compleição física bastante débil, o António era, desde pequenito, extremamente atencioso e gostava de ouvir quem falasse bem, isto é, quem dissesse muitas coisas, sem se enganar.
Por certo, nem perceberia o que diziam; seguro é que gostava de ouvir qualquer orador, leigo ou religioso, político ou não, sabedor ou ignorante.
Várias vezes se infiltrava na sala de audiências, do tribunal, para ouvir os advogados e os juízes.
Nas feiras tinha uma predilecção especial pelos propagandistas e leiloeiros, nas festas não perdia um sermão e não faltava a uma pregação religiosa.
Fez o exame da quarta classe e sabia de cor a maior parte das histórias do Livro de Leituras.
Nas redacções nunca esgotava o assunto e livrito que lhe chegasse às mãos, era devorado em pouco tempo.
A única dúvida era acerca do entendimento que teria sobre o que ouvia e lia, dado que não se exprimia com grande facilidade.
Participou desde muito novo em todas as tarefas próprias da sua idade e do seu meio rural.
Chegada a altura namorou e casou-se; era um normal chefe de família e zelador das suas pequenas leiras em que angariava o sustento para si e para os seus.
Mas porquê a alcunha de “Tó Lixado”, que, diga-se, nada o incomodava?
Numa das pregações da Semana Santa foi anunciado um pregador de grande fama e nomeada.
Diziam uns que fazia chorar as pedras, outros que só à conta dele já tinham seguido as vocações para cima de vinte padres e outras tantas religiosas.
O Tó não mostrava tanto alvoroço há muito tempo; para mais que a pregação teria lugar na igreja de S. Sebastião e ele era muito devoto do “mártir S. Sebastião”.
Todos ouviam, em silêncio, a dramatização, efectivamente pintada com as cores negras da flagelação do mártir e o pregador descrevia, cuidadosamente, cada seta.
No meio do adro, amarrado a um tronco, o mártir levantou os olhos ao céu, quando um dos soldados disparou a primeira seta que lhe acertou nas costelas, disse o pregador.
Respondeu o Tó, que já se acercara do púlpito, num tom perfeitamente audível por todos os circunstantes e pelo próprio orador: Ai!..., meu rico S. Sebastião!...
Depois, o pregador continuou: Um segundo facínora atirou outra seta e acertou-lhe no ventre. O santo apenas gemeu!...
O Tó, aumentando o tom, exclamou: Ai!..., meu pobre S. Sebastião, deve ter doído tanto!...
O pregador continuou a descrever as setas seguintes, cada vez mais terríveis e perigosas, e também o Tó ia dramatizando os lamentos e apelos de coragem para que a martírio fosse menos pesado ao santo e dizendo-lhe palavras de incentivo para que tudo suportasse.
Nessa altura a assistência já olhava ora na direcção do pregador, ora na do Tó, para seguir por um lado a descrição do martírio e pelo outro a coragem com que o Tó animava o santo para suportar todas as sevícias.
A voz do padre era, como convinha, num tom suave e apiedado; a do Tó ia subindo de tom à medida de cada seta e de cada cena.
À sétima seta, com a assistência em transe, o pregador suspendeu-se e disse: Não satisfeito com o sofrimento do santo, o chefe dos guardas, pegou no arco de um deles e disparou uma seta que foi direita ao coração do mártir S. Sebastião, que levantou os olhos…
Nessa altura, num tom de voz clara e sem qualquer sentimento, o Tó exclamou, de rompante, mas pausadamente:
Foi … essa…! Essa … é … c’o lixou!...
Alguém começou a chamar-lhe “Tó Lixado”.
Assim ficou, para o resto dos seus dias.
Por certo, nem perceberia o que diziam; seguro é que gostava de ouvir qualquer orador, leigo ou religioso, político ou não, sabedor ou ignorante.
Várias vezes se infiltrava na sala de audiências, do tribunal, para ouvir os advogados e os juízes.
Nas feiras tinha uma predilecção especial pelos propagandistas e leiloeiros, nas festas não perdia um sermão e não faltava a uma pregação religiosa.
Fez o exame da quarta classe e sabia de cor a maior parte das histórias do Livro de Leituras.
Nas redacções nunca esgotava o assunto e livrito que lhe chegasse às mãos, era devorado em pouco tempo.
A única dúvida era acerca do entendimento que teria sobre o que ouvia e lia, dado que não se exprimia com grande facilidade.
Participou desde muito novo em todas as tarefas próprias da sua idade e do seu meio rural.
Chegada a altura namorou e casou-se; era um normal chefe de família e zelador das suas pequenas leiras em que angariava o sustento para si e para os seus.
Mas porquê a alcunha de “Tó Lixado”, que, diga-se, nada o incomodava?
Numa das pregações da Semana Santa foi anunciado um pregador de grande fama e nomeada.
Diziam uns que fazia chorar as pedras, outros que só à conta dele já tinham seguido as vocações para cima de vinte padres e outras tantas religiosas.
O Tó não mostrava tanto alvoroço há muito tempo; para mais que a pregação teria lugar na igreja de S. Sebastião e ele era muito devoto do “mártir S. Sebastião”.
Todos ouviam, em silêncio, a dramatização, efectivamente pintada com as cores negras da flagelação do mártir e o pregador descrevia, cuidadosamente, cada seta.
No meio do adro, amarrado a um tronco, o mártir levantou os olhos ao céu, quando um dos soldados disparou a primeira seta que lhe acertou nas costelas, disse o pregador.
Respondeu o Tó, que já se acercara do púlpito, num tom perfeitamente audível por todos os circunstantes e pelo próprio orador: Ai!..., meu rico S. Sebastião!...
Depois, o pregador continuou: Um segundo facínora atirou outra seta e acertou-lhe no ventre. O santo apenas gemeu!...
O Tó, aumentando o tom, exclamou: Ai!..., meu pobre S. Sebastião, deve ter doído tanto!...
O pregador continuou a descrever as setas seguintes, cada vez mais terríveis e perigosas, e também o Tó ia dramatizando os lamentos e apelos de coragem para que a martírio fosse menos pesado ao santo e dizendo-lhe palavras de incentivo para que tudo suportasse.
Nessa altura a assistência já olhava ora na direcção do pregador, ora na do Tó, para seguir por um lado a descrição do martírio e pelo outro a coragem com que o Tó animava o santo para suportar todas as sevícias.
A voz do padre era, como convinha, num tom suave e apiedado; a do Tó ia subindo de tom à medida de cada seta e de cada cena.
À sétima seta, com a assistência em transe, o pregador suspendeu-se e disse: Não satisfeito com o sofrimento do santo, o chefe dos guardas, pegou no arco de um deles e disparou uma seta que foi direita ao coração do mártir S. Sebastião, que levantou os olhos…
Nessa altura, num tom de voz clara e sem qualquer sentimento, o Tó exclamou, de rompante, mas pausadamente:
Foi … essa…! Essa … é … c’o lixou!...
Alguém começou a chamar-lhe “Tó Lixado”.
Assim ficou, para o resto dos seus dias.
sexta-feira, 1 de agosto de 2008
Convite
Disponha-se o leitor a esquecer as agruras da vida, a deixar o stress bem longe, a abstrair-se do barulho da cidade e, a pouco e pouco, ouvir toda a Natureza a tocar, só para si, a mais bela das sinfonias que já imaginou.
Se gosta de ler, leve um clássico e misture o idílio com a leitura. Acabará por sentir-se onde nunca foi, nem nunca esteve.
A paz invadi-lo-á!...
Sente-se, na pequena ponte de madeira, sobre o ribeirito, com os pés pendentes para a corrente de água que, uns dois metros abaixo, segue o seu caminho, rumorejando no talvegue do riacho.
Contemple o leito, atapetado em tons de verde; nas margens, as torgas e balças que amarinham pelas paredes das hortas, até ao topo.
Junto das poças de água e dos pequenos pegos, onde nadam peixitos e outros anfíbios, crescem carriços e juncos.
As amoras negras, das balças, e as flores de variadas cores das trepadeiras, completam a primeira moldura.
No cimo das paredes, na orla das hortas, filas de videiras, entrecortadas por figueiras, oliveiras, macieiras, marmeleiros e tufos de plantas indeterminadas, têm, como continuação natural, os milheirais e outras culturas da época, que nos meses de Verão enchem as hortas de frescura, junto das correntes de água.
Pelo lado esquerdo, a levada estende-se até ao açude que, àquela hora da manhã, completamente cheio de água, em completa quietude, reflecte o azul do céu.
O sol, que no mês de Agosto se levanta bem cedo, tem certa dificuldade em afastar a neblina matinal – a maresia que desfazendo-se em gotas, deixa tudo a pingar de orvalho -, ergue-se já e faz-se anunciar pelos primeiros raios que, penetrando por entre os pinheiros, vão projectar-se no monte, em frente.
Para lá do açude, na curva da ribeira, erguem-se os cabecinhos, de um e outro lado.
A nascente e poente, partindo da linha de água, elevam-se as encostas, até onde não vemos o cume e tudo está coberto, para lá do bordo das hortitas, de pinheiros, mato e outros arbustos.
À retaguarda, o vale abre-se, pelos brejos, em direcção à aldeia, de onde vem o ladrar dos cães, o balido dos rebanhos e o chiar dos rodados das carroças. Mas, ao longe, nem sequer é ruído de fundo.
Nas proximidades da ponte toma posição a carricita e a megengra, que, juntas com a toutinegra e o cata-piolhos, fazem pela vida, em silêncio, e levam para os filhos, ainda pouco experientes, o que vão apanhando.
Mais além, sobre a esquerda baixa, os melros ensaiam os primeiros acordes, no que são seguidos pelas felosas e balceiras; ao centro, os rouxinóis, que estiveram calados, sob as videiras e na laranjeira, atiram os primeiros trinados melodiosos e sublimes, qual naipe de violinos.
Da direita, vêm os tentilhões e as milheiras, seguidos pelos verdilhões, ferreiros e rabos-vermelhos.
Mais atrás, o trinado, em alegro, dos pintassilgos e, em fundo, um pouco mais longe, a cotovia vem completar o naipe, em perfeita harmonia e angélica sintonia.
Sobre a represa do açude, a arvéloa, qual maestro, agita a cauda, imperturbável à passagem do pica-peixe e, sob o olhar atento do peneireiro, dirige aquela orquestra sinfónica, onde, dos graves aos agudos, dos metais à percussão, não falta nada.
Dos altos, os solos de um gaio e uma pega sobrepõem-se às batidas cadenciadas do pica-pau que vinha dando o ritmo e anuncia a passagem do “molto vivace” para o “moderato”.
As rolas, nos pinheiros, num arrulhar doce, introduzem o “pianíssimo”, serenando as crias, despertas pelo wagneriano gaio.
As cigarras, embora não sendo pássaros, ascendem da surdina, em crescendo, e, no momento mais quente, quebram a quietude.
São secundadas pelos restantes naipes da orquestra e, num final apoteótico, dão lugar ao sol que irradia toda a sua calma e força e convida os intérpretes a um merecido intervalo.
Os sons, as cores e os odores, inundam os ares de frescura e, conjugando-se com a aragem, transformam-se num cenário natural de perfeita harmonia, cuja dimensão e beleza, apenas dependem dos olhos, dos ouvidos …da sua sensibilidade, caro leitor!...
Se gosta de ler, leve um clássico e misture o idílio com a leitura. Acabará por sentir-se onde nunca foi, nem nunca esteve.
A paz invadi-lo-á!...
Sente-se, na pequena ponte de madeira, sobre o ribeirito, com os pés pendentes para a corrente de água que, uns dois metros abaixo, segue o seu caminho, rumorejando no talvegue do riacho.
Contemple o leito, atapetado em tons de verde; nas margens, as torgas e balças que amarinham pelas paredes das hortas, até ao topo.
Junto das poças de água e dos pequenos pegos, onde nadam peixitos e outros anfíbios, crescem carriços e juncos.
As amoras negras, das balças, e as flores de variadas cores das trepadeiras, completam a primeira moldura.
No cimo das paredes, na orla das hortas, filas de videiras, entrecortadas por figueiras, oliveiras, macieiras, marmeleiros e tufos de plantas indeterminadas, têm, como continuação natural, os milheirais e outras culturas da época, que nos meses de Verão enchem as hortas de frescura, junto das correntes de água.
Pelo lado esquerdo, a levada estende-se até ao açude que, àquela hora da manhã, completamente cheio de água, em completa quietude, reflecte o azul do céu.
O sol, que no mês de Agosto se levanta bem cedo, tem certa dificuldade em afastar a neblina matinal – a maresia que desfazendo-se em gotas, deixa tudo a pingar de orvalho -, ergue-se já e faz-se anunciar pelos primeiros raios que, penetrando por entre os pinheiros, vão projectar-se no monte, em frente.
Para lá do açude, na curva da ribeira, erguem-se os cabecinhos, de um e outro lado.
A nascente e poente, partindo da linha de água, elevam-se as encostas, até onde não vemos o cume e tudo está coberto, para lá do bordo das hortitas, de pinheiros, mato e outros arbustos.
À retaguarda, o vale abre-se, pelos brejos, em direcção à aldeia, de onde vem o ladrar dos cães, o balido dos rebanhos e o chiar dos rodados das carroças. Mas, ao longe, nem sequer é ruído de fundo.
Nas proximidades da ponte toma posição a carricita e a megengra, que, juntas com a toutinegra e o cata-piolhos, fazem pela vida, em silêncio, e levam para os filhos, ainda pouco experientes, o que vão apanhando.
Mais além, sobre a esquerda baixa, os melros ensaiam os primeiros acordes, no que são seguidos pelas felosas e balceiras; ao centro, os rouxinóis, que estiveram calados, sob as videiras e na laranjeira, atiram os primeiros trinados melodiosos e sublimes, qual naipe de violinos.
Da direita, vêm os tentilhões e as milheiras, seguidos pelos verdilhões, ferreiros e rabos-vermelhos.
Mais atrás, o trinado, em alegro, dos pintassilgos e, em fundo, um pouco mais longe, a cotovia vem completar o naipe, em perfeita harmonia e angélica sintonia.
Sobre a represa do açude, a arvéloa, qual maestro, agita a cauda, imperturbável à passagem do pica-peixe e, sob o olhar atento do peneireiro, dirige aquela orquestra sinfónica, onde, dos graves aos agudos, dos metais à percussão, não falta nada.
Dos altos, os solos de um gaio e uma pega sobrepõem-se às batidas cadenciadas do pica-pau que vinha dando o ritmo e anuncia a passagem do “molto vivace” para o “moderato”.
As rolas, nos pinheiros, num arrulhar doce, introduzem o “pianíssimo”, serenando as crias, despertas pelo wagneriano gaio.
As cigarras, embora não sendo pássaros, ascendem da surdina, em crescendo, e, no momento mais quente, quebram a quietude.
São secundadas pelos restantes naipes da orquestra e, num final apoteótico, dão lugar ao sol que irradia toda a sua calma e força e convida os intérpretes a um merecido intervalo.
Os sons, as cores e os odores, inundam os ares de frescura e, conjugando-se com a aragem, transformam-se num cenário natural de perfeita harmonia, cuja dimensão e beleza, apenas dependem dos olhos, dos ouvidos …da sua sensibilidade, caro leitor!...
Sinfonia inacabada
O canteirito, no cimo da testada, é uma nesga de terra com pouco mais de metro e meio de largura por uns vinte de comprimento.
Ali, junto da levada, não podia queixar-se da falta de água, até ao dia em que ela deixou de ser um camalhão de terra e o cômoro foi substituído por cimento, tijolos e pedras.
A meio da hortita ia dar a ponte de tábuas de madeira, com uns oitenta centímetros de largura, assentes num lado sobre a calha de cimento, que levava a água e no outro sobre um barrote de eucalipto. O valado, no topo da ponte conduzia à levada e dali, para a direita ficava o açude e para a esquerda a casita da azenha.
A ponte era de pé-posto; a besta ficava no palheiro, poucos metros antes da ribeira. Não tinha guardas, nem corrimão e em períodos de taró mais intenso, era escorregadia e perigosa.
Todavia, não se sabe que, de lá, tenha caído alguém.
No cimo do canteirito acabavam-se as hortas, até ao açude, uns vinte metros a montante, para norte. A levada deixava de ser de alvenaria e passava a um simples rego entre o cômoro e a encosta do monte, que dali subia, para sul, até ao cume da lomba, povoada de estevas e pinheiros.
Entestado entre as paredes das hortas do tio Abílio Lindo, pelo poente, e do tio Manuel Rosa, a nascente, o açude da Pleissa era formado por uma fiada de quatro ou cinco grandes calhaus – que deviam estar ali “desde que o mundo é mundo, para os homens”, como me dizia o meu avô quando queria ir longe, no tempo –. A segurá-los, leivas de terra, barro, raízes de carriços, gramas e outras aquáticas.
Não eram raras as queixas dos meeiros quanto à má qualidade do açude, sobretudo em anos de maior canícula.
Faziam-se reparos na represa, remendava-se a levada,dava-se caça às eirós que furavam as leivas e os cômoros. A manilha do bueiro, foi substituído e acabou por ficar a contento de todos.
Na pequena veiguita, antes da azenha, criavam-se os mimos da casa: os alfobres de cebolinho, de couves (galega, sete-semanas, tronchuda, repolho, couve-flor, couve-nabo, coração de boi), de alfaces, almeirões, tomates e pimentos. Não faltava o canteiro da salsa, o rego da hortelã e a belga de coentros, cenouras e espinafres.
No tempo do feijão verde, três ou quatro leiras de outros tantos regos, semeados a intervalos de quinze dias, davam vagens por um período ininterrupto de três meses, no Verão. Estavam lá, também, abaceladas as vides escolhidas para fazer o bacelo e para usar nas enxertias da vinha.
Embora o calor nunca apertasse muito, ali junto da ribeira, no pino do Verão fazia-se sentir, de tal forma que era preciso regar, dia-sim, dia-não.
As regas já quase se não fazem, aqueles canteirinhos, então tratados como jardins, têm, agora, mais ervas e menos desvelos.
Porém, o chilrear dos pássaros, o roçar do vento nas ramagens, o rumorejar das águas e até o som desafinado das cigarras, continuam a compor a mais bela sinfonia que nos foi dado ouvir.
No açude, continua a poisar a arvéloa, agitando a cauda, com tal leveza, qual a batuta de maestro…
A sinfonia continua inacabada…
Ali, junto da levada, não podia queixar-se da falta de água, até ao dia em que ela deixou de ser um camalhão de terra e o cômoro foi substituído por cimento, tijolos e pedras.
A meio da hortita ia dar a ponte de tábuas de madeira, com uns oitenta centímetros de largura, assentes num lado sobre a calha de cimento, que levava a água e no outro sobre um barrote de eucalipto. O valado, no topo da ponte conduzia à levada e dali, para a direita ficava o açude e para a esquerda a casita da azenha.
A ponte era de pé-posto; a besta ficava no palheiro, poucos metros antes da ribeira. Não tinha guardas, nem corrimão e em períodos de taró mais intenso, era escorregadia e perigosa.
Todavia, não se sabe que, de lá, tenha caído alguém.
No cimo do canteirito acabavam-se as hortas, até ao açude, uns vinte metros a montante, para norte. A levada deixava de ser de alvenaria e passava a um simples rego entre o cômoro e a encosta do monte, que dali subia, para sul, até ao cume da lomba, povoada de estevas e pinheiros.
Entestado entre as paredes das hortas do tio Abílio Lindo, pelo poente, e do tio Manuel Rosa, a nascente, o açude da Pleissa era formado por uma fiada de quatro ou cinco grandes calhaus – que deviam estar ali “desde que o mundo é mundo, para os homens”, como me dizia o meu avô quando queria ir longe, no tempo –. A segurá-los, leivas de terra, barro, raízes de carriços, gramas e outras aquáticas.
Não eram raras as queixas dos meeiros quanto à má qualidade do açude, sobretudo em anos de maior canícula.
Faziam-se reparos na represa, remendava-se a levada,dava-se caça às eirós que furavam as leivas e os cômoros. A manilha do bueiro, foi substituído e acabou por ficar a contento de todos.
Na pequena veiguita, antes da azenha, criavam-se os mimos da casa: os alfobres de cebolinho, de couves (galega, sete-semanas, tronchuda, repolho, couve-flor, couve-nabo, coração de boi), de alfaces, almeirões, tomates e pimentos. Não faltava o canteiro da salsa, o rego da hortelã e a belga de coentros, cenouras e espinafres.
No tempo do feijão verde, três ou quatro leiras de outros tantos regos, semeados a intervalos de quinze dias, davam vagens por um período ininterrupto de três meses, no Verão. Estavam lá, também, abaceladas as vides escolhidas para fazer o bacelo e para usar nas enxertias da vinha.
Embora o calor nunca apertasse muito, ali junto da ribeira, no pino do Verão fazia-se sentir, de tal forma que era preciso regar, dia-sim, dia-não.
As regas já quase se não fazem, aqueles canteirinhos, então tratados como jardins, têm, agora, mais ervas e menos desvelos.
Porém, o chilrear dos pássaros, o roçar do vento nas ramagens, o rumorejar das águas e até o som desafinado das cigarras, continuam a compor a mais bela sinfonia que nos foi dado ouvir.
No açude, continua a poisar a arvéloa, agitando a cauda, com tal leveza, qual a batuta de maestro…
A sinfonia continua inacabada…
terça-feira, 29 de julho de 2008
O ”pardina”
As noites andavam muito rigorosas naquele mês de Janeiro. As chuvadas caíam umas atrás das outras e as trovoadas não faltavam um único dia. Todos os ribeiritos rebentavam pelas costuras e os caminhos pareciam charcos que ao reflectirem o luar geravam uma luminosidade feérica e anormal. O vivo selvagem – raposas, gatos-bravos e lobos – aproximava-se dos povoados e a míngua obrigava a aventuras nas capoeiras e redis das redondezas de quintas e casais.
Quando se acabavam os cavacos que durante as primeiras horas do serão ardiam na lareira, para ferverem a panela das viandas e servirem de aquecimento ao pessoal, e as brasas já estavam completamente apagadas, era hora da deita. Depois, nas enxergas, agasalhados quanto podiam, homens e mulheres aconchegavam-se e aqueciam-se, mutuamente, até adormecer.
O ruído do vento e o martelar da chuva, nos telhados de telha vã, cortados pelo ladrar dos cães e, ribombar da trovoada, criavam o ambiente para crendices, almas do outro mundo e fenómenos anormais de bruxarias e coisas semelhantes.
As noites, escuras como breu, eram apenas cortadas pelas lanternas de azeite que se usavam para uma necessidade maior, ou para pensar o gado. O convívio com a escuridão era normal nas gentes das aldeias e o escuro, em si, não incomodava.
Só muitos anos mais tarde, durante a década de setenta, do século passado, se generalizou a extinção das estrumeiras, o calcetamento das ruas das aldeias e a iluminação pública. Até aí, mato, lama, excrementos e todo o género de imundície, enchiam as ruas.
O “pardina” dormia grande parte das noites no palheiro da horta da Cova do Pereiro.
Paredes de pedra e barro, sem qualquer janela e uma porta de tábuas de pinho, fechada, por fora, com uma tranqueta e, por dentro, trancada por uma costaneira grossa, enfiada em dois buracos da parede, um de cada lado da porta.
Quem tentasse entrar, com a porta trancada por dentro, não tinha maneira de fazê-lo, a não ser pelo telhado, de telha vã, afastando as telhas e depois de partir algumas ripas.
O espaço, amplo, teria quatro metros de frente, por três metros de profundidade. As paredes eram grossas e sem qualquer reboco. Entrando na porta, a parede da esquerda era mais alta e daí desciam os barrotes de vergônteas de castanho, já de provecta idade e pouco espaçados, que suportavam as ripas sobre que se estendiam as telhas de canudo, vulgarmente chamadas mouriscas.
A toda a volta do palheiro, excepto pela frente, havia um fosso de uns sessenta centímetros de largura, entre as paredes e as barreiras de terra e xistos – lousinhas, como se diz na região –. O palheiro aproveitava, assim, o desnível do terreno e era praticamente invisível, uma vez que o telhado ficava ao nível do solo pelos lados norte, onde ficavam as traseiras, e poente, onde estava a empena mais alta. Pela frente as árvores da horta completavam a camuflagem.
Junto à parede mais alta, a da empena, o “pardina” montou um catre tosco. Uma espécie de manjedoura cheia de palha, coberta com um panal da azeitona e umas duas ou três mantas velhas, encardidas e esfarrapadas. No topo oposto à porta, uma saca cheia de camisas de milho, servia de travesseiro. Estacas espetadas na parede serviam de cabides para o fato e de suporte a sacos que tinham de ser preservadas dos ratos.
Junto à porta, do lado direito, uma pequena choça de colmo, ligada à parede, servia de casa do cachorro. Com o chão atapetado de palha, o “bimbo” não passava frio e além do caneco, onde não se acabava a água, uma pia de pedra estava, usualmente, abastecida de comida. Havia autonomia para três ou quatro dias, não contando com caça e fruta, abundante na horta, todo o ano.
Os acessos eram recônditos, pois à volta havia estevas altas, carrasqueiros e balças e, pelo lado da horta, as laranjeiras, oliveiras e videiras, fechavam as vistas do caminho que passava ao fundo da horta em direcção à Pedreguina, Cabeço Seixo e Serra do Corvo, perdendo-se para os lados da Queixoperra.
O “pardina” era um tipo especial. Tinha, e cultivava, ar de lorpa e fingia aceitar todas as petas que lhe pregavam. Na escola foi andando, até à terceira classe; nos trabalhos do campo era teso mas muito pouco organizado; tinha habilidade nata e propensão para lidar com animais, para tratar de colmeias e para armar os ferros aos coelhos e lebres que comia todo o ano e nunca se acabavam na “arca”: uma caixa, de latão, dentro duma saca de adubo, pendurada no poço, por uma corda, de forma a ficar a uns dois metros da água. Conservava a caça, uma ou duas semanas.
A cabaça, com água do próprio poço, estava também, pendurada no fresco.
No serviço militar foi soldado em Abrantes e Elvas e desempenhou, a contento, os serviços básicos de que foi incumbido: tratar de animais, limpar cavalariças e fazer recados, dentro e fora do quartel. Sempre passou despercebido.
Em casa fazia todo o tipo de trabalhos, cavava, roçava mato, regava e trabalhava com a carroça e o arado. Foi a azeitonas, ceifas, mondas e “alimpas” e podas.
Nunca se lhe conheceu namorada, se bem que fosse com os restantes rapazes do seu tempo a bailes e descantes, na terra e fora dela. Porém, nesta área, era muito calado e, como dizia o Ti’Alfredo, seu avô materno, comia, pela calada, e fechava-se em copas.
A alcunha “pardina” vinha-lhe de um estudo – como orgulhosamente dizia – que fizera, durante anos a fio, a umas avezinhas migratórias que chegam, em bandos, às nossas terras, aí por meados de Agosto. Uma verdadeira nuvem que até tapava o sol.
O nome desses taralhões é chascos, embora vulgarmente se chamem pardinhas – provavelmente pelo tom pardacento da sua plumagem. O Luís eliminou o “l” e sempre disse “pardinas”; ficou com esse apelido, que nada o incomodava e, uma vez em cada ano, no mês de Agosto, haviam de vir os passaritos que traziam anilhas, de lata, nas patitas. Tinham escritas umas letras e muitos números.
Pensava o Manel com os seus botões: “Látvia” não sei o que é, mas a acreditar nos números, tão grandes, das anilhas, são milhões de passaritos e, entre doze e catorze de Agosto, já tinha o lameiro, na frente da horta, coberto de costelas, com agúdias a luzir, aos primeiros raios do sol da aurora.
Ia, depois, na companhia do “bimbo”, para o cabecito, em frente, e, olhando para o céu, esperava a nuvem de passaritos que havia de chegar. Impacientava-se mais que o companheiro e, depois da invasão de toda aquela multidão, que, momentos depois, acabava por levantar voo para outro lado, o “pardina” recolhia os despojos.
Dizia, depois, na taberna, que numa das caçadas, nas cento e oitenta costelas que espalhou, apanhou cento e sessenta pardinas. Vezes sem conta repetia a história e sempre o Chico coxo resmungava: mentiroso sou eu e nunca fiz tal caçada; aldra!...
Embora pernoitasse no palheiro, que ficava a uns quinze minutos da casa dos pais, no Casal, nunca deixava de comparecer, chovesse ou fizesse sol, a tratar dos animais, comer uma bucha e acompanhar o pai nas lides da casa. Estava sempre a horas no seu lugar e, raramente, se atrasava para as refeições da família.
Esta situação fazia desconfiar a vizinhança: que raio teria ele no palheiro que o fizesse deixar a casa de baixo, onde tinha uma enxerga, lareira e cozinha, ali a dois passos da taberna e junto de pai e mãe? E a saca que trazia, sempre, ao ombro?
Bem, nestas alturas há logo quem pense coisas e loisas e não falta quem invente de tudo, para todos os gostos. Foi, pois, a curiosidade que moveu o Ti’Zé do Codes a montar a espreita com o fim de descobrir o mistério.
Começou a sair de casa logo depois do pôr do sol e após uma primeira passagem pelo caminho da Queixoperra, desviava-se em direcção ao Cabeço Seixo e subia a um pinheiro de onde conseguia ver, vagamente, a porta do palheiro do “pardina”.
Esperava e caso o visse entrar, normalmente, descia do pinheiro e voltava para casa, uma vez que nada de anormal se passava. Nas noites seguintes tudo igual, afora os dias em que o “pardina” dormia na casa dos pais e o Ti´Zé cansava e desesperava em cima da árvore, enregelado.
Junto do palheiro o guarda de serviço era um rafeiro, que dava pelo nome de “bimbo” e reagia à menor ameaça de aproximação de intrusos, ou ao mais pequeno ruído não identificado. Na presença do dono, imobilizava-se e só fazia o que ele lhe mandava. Comia do que caçava e das sobras do dono e nada lhe faltava, na casota.
Se o dono queria ir a algum lado sem companhia, voltava-se para o bimbo e ordenava: que é da copa, bimbo!? Tanto bastava para que o bicho largasse à desfilada, mais parecendo um galgo, e fosse tomar o seu lugar na sua casota, à porta do palheiro. E ali se quedava até que o dono voltasse; demorasse o tempo que demorasse.
Se ia com o dono armar um ferro aos coelhos ou lebres, ou tocaiar outra qualquer presa, ou se recebia sinal de que a sua presença, os seus odores, ou o seu barulho eram prejudiciais, metia o rabinho entre as pernas e retirava-se para não incomodar.
Os estranhos que passavam no caminho que circundava a horta, eram, discretamente, acompanhados até o convencerem de que não se dirigiam às imediações do reino do dono. Caso contrário, eram ameaçados por ruídos e atitudes, chegando mesmo a vias de facto se o intruso teimasse em aproximar-se do seu local de guarda.
Conhecia e permitia a aproximação ao palheiro apenas a quatro pessoas: o dono, o Ti’ Jorge do Casal e a Ti´Joaquina, pai e mãe do dono e a Amélia – uma amiga –.
O Manel do Casal, vulgo “pardina”, já passara os quarenta e embora conseguisse viver com a solidão, olhava para os pais, já de idade bastante avançada, lembrava a única irmã, há muitos anos ausente no Alentejo, para onde casara e de onde raramente voltara à terra onde nascera e pensava em mudar o seu estado de vida; arranjar uma mulher e casar-se.
A mãe, que não era excepção nas dúvidas que toda a gente tinha quanto ao modo de vida do filho, perguntou-lhe uma vez:
Oh Manel, já pensaste que, um dia, podes ficar sozinho, envelheces e nem sequer tens ninguém chegado que cuide de ti!? Vê se arranjas uma mulher que te mereça, que te ajude na lida das terras e cuide de ti, mesmo que não tenha grandes posses. Tens bem que chegue para te ocupar e filhos já não serão muito de esperar; como sobrinhos não tens, para ti há-de chegar e sem ninguém a quem deixares, não adianta esfalfares-te com trabalho. Ouve o que te digo!
Aquela meia dúzia de ideias encheram-lhe a cabeça e, durante longas noites, pensava no que a mãe lhe dissera.
Porém, não era fácil abandonar o palheiro da Cova do Pereiro, deixar de partilhar com o fiel “bimbo” a cumplicidade das horas boas e más, abdicar do gozo que lhe causava a vida que conseguia fazer com a Amélia, nas barbas de todo o mundo, sem que ninguém tivesse toscado nada.
O segredo de ambos, era a coisa mais bonita que alguma vez tinham conseguido e era de tal modo doentio e forte que, tanto ele como ela, engendravam tudo e levavam a tal ponto os cuidados para que jamais fossem surpreendidos, que, muitas vezes, se surpreendiam a eles próprios e se desencontravam.
O “bimbo” único conhecedor e cúmplice das intimidades do casal, tivessem elas lugar no palheiro do Manel, nos cómodos da casa da Amélia, ou em lugares recônditos do campo, parecia gozar com o segredo e passava horas, parado, em guarda, à espera que tudo acabasse e tivesse, por fim, no olhar de ambos, a merecida recompensa pela sua colaboração.
Quando o casal se separava, o “bimbo” acompanhava, discretamente, a Amélia, até que a considerasse em segurança e livre de suspeitas.
A Amélia, mulher robusta, poucos anos mais velha que o Manel, filhota da Saramaga e a viver nos fundos da Pedreguina, onde a família passava os dias, na horta e courela – espécie de casal, com casa, criação, e cómodos – tinha o secreto desejo de casar.
Recusara vários pretendentes, em benefício de um ideal que só ela, o Manel e o “bimbo” conheciam e alimentavam. O pai, de idade muito avançada, sabia que havia mouro na costa, mas não se metia na vida da filha, que andava feliz e contente e dava mostras de nada lhe faltar. Ao fim de contas, se também a Amélia nada deixava faltar-lhe, para que havia de se meter.
O Ti’Chico Pedra enviuvou cedo e ficou só, com a Amélia, a tratar daquele casal. Pela filha deixou de ir a muitos trabalhos que lhe dariam algum dinheirito junto, mas nunca lhe faltou nada.
A rapariga cresceu e embora nunca tivesse frequentado a escola era esperta e zeladora da casa; não lhe faziam o ninho atrás da orelha. Conhecia o dinheiro e andava bem arranjada para o meio em que vivia: umas vezes ia à missa dos domingos à Saramaga, outras à Queixoperra e, menos vezes, à Serra.
Nos casamentos e festas, ficava em casa de parentes e acompanhava as outras, ao ritmo da sua idade. Numa dessas andanças veio às falas com o “pardina”, afinal um dos seus vizinhos mais chegados e pessoa de que gostou logo nessa primeira prosa.
O rapaz tinha vindo da tropa e passava muitos dias na Cova do Pereiro. Filho de boas gentes e de trato e maneiras muito simples, agradou à Amélia.
Pouco depois morreu a mãe da rapariga e o Manel foi-se aproximando, chegando mesmo a dar uns dias em casa do Ti’Chico, lavrando e semeando as hortas e começando a aparecer em malhas, descamisadas e matanças. Cruzava-se com a rapariga, olhavam-se, demoradamente, e depois, mais uma semana de separação.
Até que no regresso de umas festas de Alcaravela, em pouco mais de meia dúzia de palavras, acertaram que haviam de ser um para o outro, demorasse o tempo que demorasse, acontecesse o que acontecesse. E, assim foi.
Encontravam-se, ou faziam-se encontrados, fortuitamente. Andavam perto um do outro, fruindo uma auréola de bem-estar e cumplicidade, olhavam-se em silêncio e realizavam-se, platonicamente, até que um dia de S. João, ao voltar da missa, o Manel chamou a Amélia e perguntou se podia falar com ela, depois do pôr do sol, na horta dos limoeiros, junto da represa. De preferência depois do pai se deitar e sem a presença dos cães, para que nada pudesse ser suspeito, ou pensado por alguém.
Lá te esperarei, homem. Temos muito que conversar. Até logo!...
O Manel saíu ali da igreja da Queixoperra, passou pelo palheiro e dirigiu-se a casa dos pais.
Comeu qualquer coisa, arrumou uma camisa, um par de ceroulas e umas meias no fundo da saca e voltou para a Cova do Pereiro.
Contra o que lhe era habitual, sentiu que o tempo passava devagar demais e nunca mais se fazia noite.
Ao sol posto, saiu, tomou a direcção da Serra, atravessou nos altos do Cabeço Seixo, tomou o caminho das Vagens, até à portela da Azenha. Dali, a corta mato, tomou a direcção da horta dos limoeiros e, às vistas da represa, ocultou-se entre os arbustos e esperou.
Esperou, todavia, pouco tempo; a Amélia estava oculta entra as videiras da horta e, em resposta a um ruído estranho, mostrou-se, para que o amigo saísse da sombra e se dirigissem, os dois, para junto da represa.
O escuro tinha já caído e o ar quente estava praticamente parado, naquela calma das noites de verão. A pouca luz e a propensão para ver de noite, puseram a nu um tom claro e muito brilhante nos olhos da Amélia.
Pela primeira vez o Manel tinha, a uns dois palmos, os lindos olhos duma mulher; sentia o arfar do peito, robusto e apetitoso da Amélia e ao tomar-lhe uma das mãos, sentiu uma humidade, anormalmente, fria.
O Manel, sem saber porquê, mantinha uma calma e presença de espírito, anormais. Respirava um pouco mais rapidamente que o costume, mas estava perfeitamente controlado. Apertou a mão da Amélia, olhou-a bem nos olhos e, simultaneamente, chegaram-se um ao outro, com os braços estendidos e os rostos proeminentes.
Estava dado o primeiro de muitos beijos que haveriam de trocar, entre si.
Pararam e ficaram a olhar-se, dizendo, em rigoroso silêncio, aquilo que durante tanto tempo teriam ensaiado; prometendo o que sentiam e queriam para ambos, antevendo uma longa vida a dois, em paz, harmonia e comunhão.
Nem deram pelo passar das horas, sentados, de mãos dadas, calados na maior parte do tempo e, cada um por seu lado, pensando e arquitectando uma vida em comum. Mais tarde, confessaram, um ao outro, que aquele foi o seu verdadeiro casamento e mesmo que mais nada tivesse acontecido, não voltariam a ser de ninguém, senão um do outro. E, de facto, assim viria a ser.
O luar veio com a sua claridade, aproximar mais aquelas duas almas que acabaram por se levantar e, sempre agarradinhos, caminharem pela levada, até ao cabanal do carro e sentaram-se na guarda da eira, junto a um monte de camisas de milho.
Continuavam a falar pouco, suprindo com o olhar tudo o que as palavras não diziam.
Porém, mais por ingénua insinuação e atrevimento da Amélia que por destemor e desenvoltura do Manel, com a lua por testemunha e os panos da carroça por leito, foi feita mulher a donzela da Pedreguina.
Extasiados, incrédulos, admirados e com a felicidade expressa nos rostos, beijaram-se, carinhosamente, e continuaram, em silêncio, até altas horas da madrugada.
Despediram-se e cada um por seu lado, ela depois de guardar, ciosamente os panos ensanguentados, dormiu, profundamente, até que o pai a chamou.
Ele, no catre do palheiro do Vale do Pereiro, não acordou, como habitualmente, e, contra o seu costume, só apareceu, em casa dos pais, com o sol já alto.
O “pardina” tinha ouvido algumas conversas sobre relacionamento entre pessoas, vida em comum, relacionamento sexual, e ávido de saber coisas, estava sempre de ouvido à espreita; era muito mais amigo de ouvir que de falar e, como ele às vezes dizia:
“Ouvi um dia dizer, lá na tropa, a um oficial, que as pessoas têm dois ouvidos e só uma boca. Devem ouvir em dobro e falar em singelo. Assim, estou certo.”
Mas voltemos ao assunto que marcava toda a sua conduta e o seu relacionamento com o da sua mulher.
Só uma coisa muito forte poderia impedir que se fizesse um casamento, certamente do agrado de todos e sem nada aparente que impedisse aquela união. E isso não era assim tão mau; sempre que se encontravam, passados mais de quinze anos sobre aquela primeira vez na eira, era tal a intercomunicação, tão forte a comunhão, tão verdadeira a entrega dos dois que poderia ser descrito como perfeito.
Nada, nem ninguém, poderia quebrar o vínculo que unia aquelas duas almas, porque, como o Manel aprendeu: nunca ninguém forçava ninguém, havia um verdadeiro segredo – qual pacto de sangue –, cada um só queria satisfazer o outro, acertavam na perfeição os tempos e as reacções, numa palavra: eram, verdadeiramente, dois num só.
O “pardina” e a Amélia nunca casaram; mantiveram sempre uma relação perfeita. Acabaram por baixar a guarda e, já com avançada idade, foram, um dia, surpreendidos.
O “bimbo” tinha sido apanhado pelo carro do veterinário que, de visita à aldeia, não foi capaz de evitar o atropelamento. Estava fora do seu posto, quando o “Samarra” que havia muito tempo seguia a Amélia, a viu entrar no palheiro e ficou à coca.
Esperou toda a noite, mas na manhã seguinte estava sentado na nora da horta do “pardina” e surpreendeu o casalinho a sair do ninho de amor.
Com a maior tranquilidade do mundo, o Manel, depois de salvar, apenas disse: vamos Amélia que se calhar o animal já está pior e, se não chegamos a tempo, não haverá ajuda que o salve. Fizeste bem em vir-me chamar!...
E, ainda nesta vez, deixaram o intruso de boca à banda e avisado que tivesse cuidado com a língua, pois qualquer história que “inventasse” podia sair-lhe cara.
E o Manel e a Amélia lá seguiram na direcção da Pedreguina, onde acabaram por se rir da cara do estouvado do “Samarra”, que, mais uma vez, acabou enganado, quanto ao que julgava poder espalhar, aos sete ventos, sobre o segredo do Palheiro da Cova do Pereiro.
Quando se acabavam os cavacos que durante as primeiras horas do serão ardiam na lareira, para ferverem a panela das viandas e servirem de aquecimento ao pessoal, e as brasas já estavam completamente apagadas, era hora da deita. Depois, nas enxergas, agasalhados quanto podiam, homens e mulheres aconchegavam-se e aqueciam-se, mutuamente, até adormecer.
O ruído do vento e o martelar da chuva, nos telhados de telha vã, cortados pelo ladrar dos cães e, ribombar da trovoada, criavam o ambiente para crendices, almas do outro mundo e fenómenos anormais de bruxarias e coisas semelhantes.
As noites, escuras como breu, eram apenas cortadas pelas lanternas de azeite que se usavam para uma necessidade maior, ou para pensar o gado. O convívio com a escuridão era normal nas gentes das aldeias e o escuro, em si, não incomodava.
Só muitos anos mais tarde, durante a década de setenta, do século passado, se generalizou a extinção das estrumeiras, o calcetamento das ruas das aldeias e a iluminação pública. Até aí, mato, lama, excrementos e todo o género de imundície, enchiam as ruas.
O “pardina” dormia grande parte das noites no palheiro da horta da Cova do Pereiro.
Paredes de pedra e barro, sem qualquer janela e uma porta de tábuas de pinho, fechada, por fora, com uma tranqueta e, por dentro, trancada por uma costaneira grossa, enfiada em dois buracos da parede, um de cada lado da porta.
Quem tentasse entrar, com a porta trancada por dentro, não tinha maneira de fazê-lo, a não ser pelo telhado, de telha vã, afastando as telhas e depois de partir algumas ripas.
O espaço, amplo, teria quatro metros de frente, por três metros de profundidade. As paredes eram grossas e sem qualquer reboco. Entrando na porta, a parede da esquerda era mais alta e daí desciam os barrotes de vergônteas de castanho, já de provecta idade e pouco espaçados, que suportavam as ripas sobre que se estendiam as telhas de canudo, vulgarmente chamadas mouriscas.
A toda a volta do palheiro, excepto pela frente, havia um fosso de uns sessenta centímetros de largura, entre as paredes e as barreiras de terra e xistos – lousinhas, como se diz na região –. O palheiro aproveitava, assim, o desnível do terreno e era praticamente invisível, uma vez que o telhado ficava ao nível do solo pelos lados norte, onde ficavam as traseiras, e poente, onde estava a empena mais alta. Pela frente as árvores da horta completavam a camuflagem.
Junto à parede mais alta, a da empena, o “pardina” montou um catre tosco. Uma espécie de manjedoura cheia de palha, coberta com um panal da azeitona e umas duas ou três mantas velhas, encardidas e esfarrapadas. No topo oposto à porta, uma saca cheia de camisas de milho, servia de travesseiro. Estacas espetadas na parede serviam de cabides para o fato e de suporte a sacos que tinham de ser preservadas dos ratos.
Junto à porta, do lado direito, uma pequena choça de colmo, ligada à parede, servia de casa do cachorro. Com o chão atapetado de palha, o “bimbo” não passava frio e além do caneco, onde não se acabava a água, uma pia de pedra estava, usualmente, abastecida de comida. Havia autonomia para três ou quatro dias, não contando com caça e fruta, abundante na horta, todo o ano.
Os acessos eram recônditos, pois à volta havia estevas altas, carrasqueiros e balças e, pelo lado da horta, as laranjeiras, oliveiras e videiras, fechavam as vistas do caminho que passava ao fundo da horta em direcção à Pedreguina, Cabeço Seixo e Serra do Corvo, perdendo-se para os lados da Queixoperra.
O “pardina” era um tipo especial. Tinha, e cultivava, ar de lorpa e fingia aceitar todas as petas que lhe pregavam. Na escola foi andando, até à terceira classe; nos trabalhos do campo era teso mas muito pouco organizado; tinha habilidade nata e propensão para lidar com animais, para tratar de colmeias e para armar os ferros aos coelhos e lebres que comia todo o ano e nunca se acabavam na “arca”: uma caixa, de latão, dentro duma saca de adubo, pendurada no poço, por uma corda, de forma a ficar a uns dois metros da água. Conservava a caça, uma ou duas semanas.
A cabaça, com água do próprio poço, estava também, pendurada no fresco.
No serviço militar foi soldado em Abrantes e Elvas e desempenhou, a contento, os serviços básicos de que foi incumbido: tratar de animais, limpar cavalariças e fazer recados, dentro e fora do quartel. Sempre passou despercebido.
Em casa fazia todo o tipo de trabalhos, cavava, roçava mato, regava e trabalhava com a carroça e o arado. Foi a azeitonas, ceifas, mondas e “alimpas” e podas.
Nunca se lhe conheceu namorada, se bem que fosse com os restantes rapazes do seu tempo a bailes e descantes, na terra e fora dela. Porém, nesta área, era muito calado e, como dizia o Ti’Alfredo, seu avô materno, comia, pela calada, e fechava-se em copas.
A alcunha “pardina” vinha-lhe de um estudo – como orgulhosamente dizia – que fizera, durante anos a fio, a umas avezinhas migratórias que chegam, em bandos, às nossas terras, aí por meados de Agosto. Uma verdadeira nuvem que até tapava o sol.
O nome desses taralhões é chascos, embora vulgarmente se chamem pardinhas – provavelmente pelo tom pardacento da sua plumagem. O Luís eliminou o “l” e sempre disse “pardinas”; ficou com esse apelido, que nada o incomodava e, uma vez em cada ano, no mês de Agosto, haviam de vir os passaritos que traziam anilhas, de lata, nas patitas. Tinham escritas umas letras e muitos números.
Pensava o Manel com os seus botões: “Látvia” não sei o que é, mas a acreditar nos números, tão grandes, das anilhas, são milhões de passaritos e, entre doze e catorze de Agosto, já tinha o lameiro, na frente da horta, coberto de costelas, com agúdias a luzir, aos primeiros raios do sol da aurora.
Ia, depois, na companhia do “bimbo”, para o cabecito, em frente, e, olhando para o céu, esperava a nuvem de passaritos que havia de chegar. Impacientava-se mais que o companheiro e, depois da invasão de toda aquela multidão, que, momentos depois, acabava por levantar voo para outro lado, o “pardina” recolhia os despojos.
Dizia, depois, na taberna, que numa das caçadas, nas cento e oitenta costelas que espalhou, apanhou cento e sessenta pardinas. Vezes sem conta repetia a história e sempre o Chico coxo resmungava: mentiroso sou eu e nunca fiz tal caçada; aldra!...
Embora pernoitasse no palheiro, que ficava a uns quinze minutos da casa dos pais, no Casal, nunca deixava de comparecer, chovesse ou fizesse sol, a tratar dos animais, comer uma bucha e acompanhar o pai nas lides da casa. Estava sempre a horas no seu lugar e, raramente, se atrasava para as refeições da família.
Esta situação fazia desconfiar a vizinhança: que raio teria ele no palheiro que o fizesse deixar a casa de baixo, onde tinha uma enxerga, lareira e cozinha, ali a dois passos da taberna e junto de pai e mãe? E a saca que trazia, sempre, ao ombro?
Bem, nestas alturas há logo quem pense coisas e loisas e não falta quem invente de tudo, para todos os gostos. Foi, pois, a curiosidade que moveu o Ti’Zé do Codes a montar a espreita com o fim de descobrir o mistério.
Começou a sair de casa logo depois do pôr do sol e após uma primeira passagem pelo caminho da Queixoperra, desviava-se em direcção ao Cabeço Seixo e subia a um pinheiro de onde conseguia ver, vagamente, a porta do palheiro do “pardina”.
Esperava e caso o visse entrar, normalmente, descia do pinheiro e voltava para casa, uma vez que nada de anormal se passava. Nas noites seguintes tudo igual, afora os dias em que o “pardina” dormia na casa dos pais e o Ti´Zé cansava e desesperava em cima da árvore, enregelado.
Junto do palheiro o guarda de serviço era um rafeiro, que dava pelo nome de “bimbo” e reagia à menor ameaça de aproximação de intrusos, ou ao mais pequeno ruído não identificado. Na presença do dono, imobilizava-se e só fazia o que ele lhe mandava. Comia do que caçava e das sobras do dono e nada lhe faltava, na casota.
Se o dono queria ir a algum lado sem companhia, voltava-se para o bimbo e ordenava: que é da copa, bimbo!? Tanto bastava para que o bicho largasse à desfilada, mais parecendo um galgo, e fosse tomar o seu lugar na sua casota, à porta do palheiro. E ali se quedava até que o dono voltasse; demorasse o tempo que demorasse.
Se ia com o dono armar um ferro aos coelhos ou lebres, ou tocaiar outra qualquer presa, ou se recebia sinal de que a sua presença, os seus odores, ou o seu barulho eram prejudiciais, metia o rabinho entre as pernas e retirava-se para não incomodar.
Os estranhos que passavam no caminho que circundava a horta, eram, discretamente, acompanhados até o convencerem de que não se dirigiam às imediações do reino do dono. Caso contrário, eram ameaçados por ruídos e atitudes, chegando mesmo a vias de facto se o intruso teimasse em aproximar-se do seu local de guarda.
Conhecia e permitia a aproximação ao palheiro apenas a quatro pessoas: o dono, o Ti’ Jorge do Casal e a Ti´Joaquina, pai e mãe do dono e a Amélia – uma amiga –.
O Manel do Casal, vulgo “pardina”, já passara os quarenta e embora conseguisse viver com a solidão, olhava para os pais, já de idade bastante avançada, lembrava a única irmã, há muitos anos ausente no Alentejo, para onde casara e de onde raramente voltara à terra onde nascera e pensava em mudar o seu estado de vida; arranjar uma mulher e casar-se.
A mãe, que não era excepção nas dúvidas que toda a gente tinha quanto ao modo de vida do filho, perguntou-lhe uma vez:
Oh Manel, já pensaste que, um dia, podes ficar sozinho, envelheces e nem sequer tens ninguém chegado que cuide de ti!? Vê se arranjas uma mulher que te mereça, que te ajude na lida das terras e cuide de ti, mesmo que não tenha grandes posses. Tens bem que chegue para te ocupar e filhos já não serão muito de esperar; como sobrinhos não tens, para ti há-de chegar e sem ninguém a quem deixares, não adianta esfalfares-te com trabalho. Ouve o que te digo!
Aquela meia dúzia de ideias encheram-lhe a cabeça e, durante longas noites, pensava no que a mãe lhe dissera.
Porém, não era fácil abandonar o palheiro da Cova do Pereiro, deixar de partilhar com o fiel “bimbo” a cumplicidade das horas boas e más, abdicar do gozo que lhe causava a vida que conseguia fazer com a Amélia, nas barbas de todo o mundo, sem que ninguém tivesse toscado nada.
O segredo de ambos, era a coisa mais bonita que alguma vez tinham conseguido e era de tal modo doentio e forte que, tanto ele como ela, engendravam tudo e levavam a tal ponto os cuidados para que jamais fossem surpreendidos, que, muitas vezes, se surpreendiam a eles próprios e se desencontravam.
O “bimbo” único conhecedor e cúmplice das intimidades do casal, tivessem elas lugar no palheiro do Manel, nos cómodos da casa da Amélia, ou em lugares recônditos do campo, parecia gozar com o segredo e passava horas, parado, em guarda, à espera que tudo acabasse e tivesse, por fim, no olhar de ambos, a merecida recompensa pela sua colaboração.
Quando o casal se separava, o “bimbo” acompanhava, discretamente, a Amélia, até que a considerasse em segurança e livre de suspeitas.
A Amélia, mulher robusta, poucos anos mais velha que o Manel, filhota da Saramaga e a viver nos fundos da Pedreguina, onde a família passava os dias, na horta e courela – espécie de casal, com casa, criação, e cómodos – tinha o secreto desejo de casar.
Recusara vários pretendentes, em benefício de um ideal que só ela, o Manel e o “bimbo” conheciam e alimentavam. O pai, de idade muito avançada, sabia que havia mouro na costa, mas não se metia na vida da filha, que andava feliz e contente e dava mostras de nada lhe faltar. Ao fim de contas, se também a Amélia nada deixava faltar-lhe, para que havia de se meter.
O Ti’Chico Pedra enviuvou cedo e ficou só, com a Amélia, a tratar daquele casal. Pela filha deixou de ir a muitos trabalhos que lhe dariam algum dinheirito junto, mas nunca lhe faltou nada.
A rapariga cresceu e embora nunca tivesse frequentado a escola era esperta e zeladora da casa; não lhe faziam o ninho atrás da orelha. Conhecia o dinheiro e andava bem arranjada para o meio em que vivia: umas vezes ia à missa dos domingos à Saramaga, outras à Queixoperra e, menos vezes, à Serra.
Nos casamentos e festas, ficava em casa de parentes e acompanhava as outras, ao ritmo da sua idade. Numa dessas andanças veio às falas com o “pardina”, afinal um dos seus vizinhos mais chegados e pessoa de que gostou logo nessa primeira prosa.
O rapaz tinha vindo da tropa e passava muitos dias na Cova do Pereiro. Filho de boas gentes e de trato e maneiras muito simples, agradou à Amélia.
Pouco depois morreu a mãe da rapariga e o Manel foi-se aproximando, chegando mesmo a dar uns dias em casa do Ti’Chico, lavrando e semeando as hortas e começando a aparecer em malhas, descamisadas e matanças. Cruzava-se com a rapariga, olhavam-se, demoradamente, e depois, mais uma semana de separação.
Até que no regresso de umas festas de Alcaravela, em pouco mais de meia dúzia de palavras, acertaram que haviam de ser um para o outro, demorasse o tempo que demorasse, acontecesse o que acontecesse. E, assim foi.
Encontravam-se, ou faziam-se encontrados, fortuitamente. Andavam perto um do outro, fruindo uma auréola de bem-estar e cumplicidade, olhavam-se em silêncio e realizavam-se, platonicamente, até que um dia de S. João, ao voltar da missa, o Manel chamou a Amélia e perguntou se podia falar com ela, depois do pôr do sol, na horta dos limoeiros, junto da represa. De preferência depois do pai se deitar e sem a presença dos cães, para que nada pudesse ser suspeito, ou pensado por alguém.
Lá te esperarei, homem. Temos muito que conversar. Até logo!...
O Manel saíu ali da igreja da Queixoperra, passou pelo palheiro e dirigiu-se a casa dos pais.
Comeu qualquer coisa, arrumou uma camisa, um par de ceroulas e umas meias no fundo da saca e voltou para a Cova do Pereiro.
Contra o que lhe era habitual, sentiu que o tempo passava devagar demais e nunca mais se fazia noite.
Ao sol posto, saiu, tomou a direcção da Serra, atravessou nos altos do Cabeço Seixo, tomou o caminho das Vagens, até à portela da Azenha. Dali, a corta mato, tomou a direcção da horta dos limoeiros e, às vistas da represa, ocultou-se entre os arbustos e esperou.
Esperou, todavia, pouco tempo; a Amélia estava oculta entra as videiras da horta e, em resposta a um ruído estranho, mostrou-se, para que o amigo saísse da sombra e se dirigissem, os dois, para junto da represa.
O escuro tinha já caído e o ar quente estava praticamente parado, naquela calma das noites de verão. A pouca luz e a propensão para ver de noite, puseram a nu um tom claro e muito brilhante nos olhos da Amélia.
Pela primeira vez o Manel tinha, a uns dois palmos, os lindos olhos duma mulher; sentia o arfar do peito, robusto e apetitoso da Amélia e ao tomar-lhe uma das mãos, sentiu uma humidade, anormalmente, fria.
O Manel, sem saber porquê, mantinha uma calma e presença de espírito, anormais. Respirava um pouco mais rapidamente que o costume, mas estava perfeitamente controlado. Apertou a mão da Amélia, olhou-a bem nos olhos e, simultaneamente, chegaram-se um ao outro, com os braços estendidos e os rostos proeminentes.
Estava dado o primeiro de muitos beijos que haveriam de trocar, entre si.
Pararam e ficaram a olhar-se, dizendo, em rigoroso silêncio, aquilo que durante tanto tempo teriam ensaiado; prometendo o que sentiam e queriam para ambos, antevendo uma longa vida a dois, em paz, harmonia e comunhão.
Nem deram pelo passar das horas, sentados, de mãos dadas, calados na maior parte do tempo e, cada um por seu lado, pensando e arquitectando uma vida em comum. Mais tarde, confessaram, um ao outro, que aquele foi o seu verdadeiro casamento e mesmo que mais nada tivesse acontecido, não voltariam a ser de ninguém, senão um do outro. E, de facto, assim viria a ser.
O luar veio com a sua claridade, aproximar mais aquelas duas almas que acabaram por se levantar e, sempre agarradinhos, caminharem pela levada, até ao cabanal do carro e sentaram-se na guarda da eira, junto a um monte de camisas de milho.
Continuavam a falar pouco, suprindo com o olhar tudo o que as palavras não diziam.
Porém, mais por ingénua insinuação e atrevimento da Amélia que por destemor e desenvoltura do Manel, com a lua por testemunha e os panos da carroça por leito, foi feita mulher a donzela da Pedreguina.
Extasiados, incrédulos, admirados e com a felicidade expressa nos rostos, beijaram-se, carinhosamente, e continuaram, em silêncio, até altas horas da madrugada.
Despediram-se e cada um por seu lado, ela depois de guardar, ciosamente os panos ensanguentados, dormiu, profundamente, até que o pai a chamou.
Ele, no catre do palheiro do Vale do Pereiro, não acordou, como habitualmente, e, contra o seu costume, só apareceu, em casa dos pais, com o sol já alto.
O “pardina” tinha ouvido algumas conversas sobre relacionamento entre pessoas, vida em comum, relacionamento sexual, e ávido de saber coisas, estava sempre de ouvido à espreita; era muito mais amigo de ouvir que de falar e, como ele às vezes dizia:
“Ouvi um dia dizer, lá na tropa, a um oficial, que as pessoas têm dois ouvidos e só uma boca. Devem ouvir em dobro e falar em singelo. Assim, estou certo.”
Mas voltemos ao assunto que marcava toda a sua conduta e o seu relacionamento com o da sua mulher.
Só uma coisa muito forte poderia impedir que se fizesse um casamento, certamente do agrado de todos e sem nada aparente que impedisse aquela união. E isso não era assim tão mau; sempre que se encontravam, passados mais de quinze anos sobre aquela primeira vez na eira, era tal a intercomunicação, tão forte a comunhão, tão verdadeira a entrega dos dois que poderia ser descrito como perfeito.
Nada, nem ninguém, poderia quebrar o vínculo que unia aquelas duas almas, porque, como o Manel aprendeu: nunca ninguém forçava ninguém, havia um verdadeiro segredo – qual pacto de sangue –, cada um só queria satisfazer o outro, acertavam na perfeição os tempos e as reacções, numa palavra: eram, verdadeiramente, dois num só.
O “pardina” e a Amélia nunca casaram; mantiveram sempre uma relação perfeita. Acabaram por baixar a guarda e, já com avançada idade, foram, um dia, surpreendidos.
O “bimbo” tinha sido apanhado pelo carro do veterinário que, de visita à aldeia, não foi capaz de evitar o atropelamento. Estava fora do seu posto, quando o “Samarra” que havia muito tempo seguia a Amélia, a viu entrar no palheiro e ficou à coca.
Esperou toda a noite, mas na manhã seguinte estava sentado na nora da horta do “pardina” e surpreendeu o casalinho a sair do ninho de amor.
Com a maior tranquilidade do mundo, o Manel, depois de salvar, apenas disse: vamos Amélia que se calhar o animal já está pior e, se não chegamos a tempo, não haverá ajuda que o salve. Fizeste bem em vir-me chamar!...
E, ainda nesta vez, deixaram o intruso de boca à banda e avisado que tivesse cuidado com a língua, pois qualquer história que “inventasse” podia sair-lhe cara.
E o Manel e a Amélia lá seguiram na direcção da Pedreguina, onde acabaram por se rir da cara do estouvado do “Samarra”, que, mais uma vez, acabou enganado, quanto ao que julgava poder espalhar, aos sete ventos, sobre o segredo do Palheiro da Cova do Pereiro.
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