sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Honra e preconceito

Na noite de Inverno, o vento e a chuva calaram-se pouco depois do pôr-do-sol; só os cães, as aves nocturnas e os balidos e chocalhos dos rebanhos, nas cortes, quebravam o silêncio que se abatera sobre o povoado.

A quietude e a escuridão adensavam de tal forma a atmosfera que não havia nariz que ousasse arriscar-se fora das portas.

Até as tabernas da terra fecharam, bem cedo, as portas, pondo na rua os últimos bêbedos que podiam pedir ainda mais um copito e embrulhar um paivante, aumentando o rol.

Umas duas, ou três horas depois de se recolher, o Zé da Ti’Ana, já com a carraspana meio curtida, precisou de sair para se ir baixar junto da parede do quintal, debaixo da videira que trepava na figueira despidas de folhas.

Ao olhar para os lados da Estrela, arrepiou-se todo; não havia qualquer clarão de luar e em vez de reflexo e vento, a serra mandava camadas sucessivas de borrasca e um frio de cortar à faca.

Não se enxergava, através do nevoeiro, mais de meia dúzia de metros; nem sequer se via até à outra parede do quintalzito.

Os paus das árvores pingavam e as pedras que procurou, aos apalpões, para se limpar, estavam geladas e molhadas.

Não chovia, mas a humidade era tanta que atravessava a roupa e enregelava até os ossos mais escondidos do corpo.

Voltou a entrar em casa e deitou-se.

Ao clarear do dia pouco mais luz se fez; o nevoeiro e a humidade, ajudados pelo frio, não deixaram nascer o sol.

O Zé levantou-se e foi pensar o burrito e as duas cabras, trazendo, numa malga encardida, uma pequena quantidade de leite que bebeu, ainda quente, dum trago. Acompanhou com uma côdea de pão espanhol e duas dentadas do queijo amarelo, que davam na sacristia.

Quando corria a tranqueta da porta, o Zé da Ti’Ana pensou na caminhada que teria de fazer, até aos barrocais, lá em baixo, a meio caminho da ribeira.

Talvez estivesse menos frio nas grutas do barroco maior do que ali em casa, onde a telha vã não vedava frio nem humidade e só a poder do peso da roupa, na cama, se arranjava algum calor; já que o da fogueira das giestas, se tinha acabado umas horas antes, engolido pela invernia.

Mas, ainda faltava algum tempo para a hora a que teria de ir cumprir a promessa que fizera a si próprio e ficou-se, um pouco mais, debaixo de telha.

Espreitou, pela janelita, e não viu vivalma.

Pouco depois, saiu de casa, canada fora, rumo aos barrocais.

Esticou o passo e só se deteve às vistas da ribeira, junto ao amontoado de barrocos, que tão bem conhecia, a meias com cães, gatos-bravos, raposas e lobos.

Entrou, procurou o esconderijo onde guardava as escopetas e o fuzil e partiu dali em direcção à casa do Manel Caldeireiro, onde, em permanência, só estava a Rita, filha do Manel que ganhava a vida de terra em terra e fazia ausências de semanas.

A moçoila, na casa dos trinta, de compleição física avantajada, olhos grandes, cabelos pretos e pele morena, recebia os seus amigos, ao que se dizia; todavia, ninguém jamais ousou apontar-lhe fosse o que fosse, mais com receio do mau feitio do caldeireiro que com respeito pela cachopa.

Havia fanfarrões que se gabavam, à boca pequena, disto e daquilo e nunca tinham, sequer, chegado perto da rapariga.

O Zé da Ti’Ana, mais entradote, vivia só, desde que perdera a mãe e sofria, cada vez que as línguas, soltas pelo vinho, se referiam à Rita, ocultando o seu nome, mas sendo suficientemente denunciadores, para cantar façanhas.

De todas as vezes que chegara às falas com a rapariga sempre esbarrara com uma resistência inultrapassável.

Das espreitas e investigações que lhe levaram noites a fio, nada resultou em desabono.

Tomou a decisão de pedir a rapariga em casamento, perguntando-lhe, apenas, se, a partir daquele dia, poderia obrigar, ainda que a poder de sangue, quem dissesse fosse o que fosse, a prová-lo.

A Rita olhou-o nos olhos e jurou total inocência, porque tudo o que pudessem dizer dela ela mentira.

Com a confirmação da rapariga, o Zé passou nas tabernas e disse que se casaria com a Rita.

Jurou que, a partir de então, quem acusasse a sua noiva fosse do que fosse, ou provava, ou morria.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Nunca o diabo mais nos leve

Os pinheiros da Caldeirinha andam a comer de três concelhos; não admira, pois, que aqueles sapeirões gozem mais que os dos vizinhos que, naquela pissara, pouco mais têm que terra para sobreviverem.

Cada uma daquelas árvores vale por uma boa meia dúzia das da courela vizinha.

Só mete ali o ferro quem pagar bem.

Com estas afirmações, o Ti’Alberto entrava na taberna seguido pelo Bento, comprador de resinas por conta das fábricas de Leiria. E, já ao pé do balcão, acenou ao Manuel que deitasse uns copos de vinho, convidando o Chico Alfaiate, resineiro da terra, a beber com eles e a dizer se havia em toda a área das redondezas pinheiros mais leiteiros que os da sua,da Caldeirinha.

O resineiro confirmou que, de facto, não conhecia árvores que melhor fundissem do que um bom magote lá da Caldeirinha, embora também lá houvesse alguns mais fracotes.

Dava gosto passar a mudar os canecos duas ou três vezes, em cada colha. São árvores desenxovalhadas; deviam espalhar-se os pinhões delas por mais lados…

Aqui, entrou o Ti’Alberto: E a terra também a espalhavam, ora não?!...

O Bento que sabia ser verdade tudo o que acabava de ouvir, embora não lhe conviesse a conversa, acercou-se do Ti’Alberto, estendeu a mão e disse-lhe, em surdina: não se fala mais nisso; são os dez mil réis por cada bica da Caldeirinha e pelos seus restantes, o preço de toda a área: seis mil réis.

Está feito?!... O Ti’Alberto acenou ao taberneiro que deitasse mais uns copos e disse: Está feito, homem… mais um ano em que me enganas, mas… nunca o diabo mais nos leve!...

Ao recordar estas cenas, repassadas de uma simplicidade tão pungente e enternecedora, em que em frente do balcão da taberna se faziam os negócios, repletos de arte e manha, mas envolvidos numa ingenuidade pura e sã, não podemos esquecer as premonições da última frase do Ti’Alberto: … nunca o diabo mais nos leve!...

É que, desde aqueles anos sessenta em que muitos de nós, então jovens adolescentes, estudámos fora das nossas aldeias e por esse país além alcançámos lugares nunca pensados pelos nossos avós, à custa daqueles pinheiros que dando mais ou menos resina rendiam os cobres com que os nossos pais pagavam estudos, aboletamento e confortos que nunca tinham experimentado, tudo mudou…

E, infelizmente, tudo o diabo lhes levou!...

As transformações políticas, primeiro; os incêndios, depois, reduziram a nada aquela exploração de uma matéria-prima que, como nos ensinaram na escola, dava origem a uma farta gama de produtos, desde farmacêuticos a químicos e cosméticos e constituía uma riqueza nacional.

Nunca compreendemos como foi possível tal estado de coisas e é com muita mágoa que só na lembrança restam aqueles pinhais, de árvores esbeltas, que, generosamente, vertiam nos canecos a resina que escorria das suas sangrias.

Não se mataram apenas os pinheiros; foram, com eles, muitas gotas de sangue das gentes que viram o diabo levar-lhes tudo, quer ele vestisse a pele dos políticos, quer fosse um qualquer incendiário.

Aquelas gentes, que passaram a depender das esmolas dos poderes públicos, podem até viver melhor, ter melhores acessos e comunicações, desfrutar de alguns confortos das sociedades modernas, mas não são felizes… nunca aprenderam, nem se conformaram, a viver de esmolas; nunca comeram nada que não soubessem como lhes chegava às mãos e sempre se consideraram senhores de si próprios; nunca perceberam as razões dos que, alto e bom som, dizem que lhes vão fechar o hospital, a escola ou o posto médico; nunca aceitaram os que querem proibi-los de beber a água dos seus poços, comer a carne dos seus porcos e a desfrutar da floresta que, impunemente, alguns teimam em queimar-lhes.

Gentes de tanto querer, almas de tanta fé e vontades tão indómitas, deram lugar a populações descrentes, almas sem esperança e velhos resignados; todos sem alegria e esperando, pacientemente, o resto dos seus dias.