sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Horizontes



O Lajinhas esgueirava-se por trás da escola e subia o monte, por entre os pinheiros, até ao cume, uns quinhentos metros, acima. Chegado ao cimo, parava, sentava-se e contemplava a paisagem. 

Da escola via todas as casas da aldeia, numa extensão de menos de um quilómetro. 

Junto da nascente da represa, onde se dessedentava, de mergulho, via mais longe, até aos confins da ribeira, lá para perto do Casalinho e as primeiras aldeias de Alcaravela. 

De meia encosta, ao pé do depósito da água, conseguia ver povoações mais distantes e serras bastante altas, de que não sabia o nome nem a localização. 

No cume, extasiava-se!... Olhava tudo sem distinguir nada e, por mais que olhasse, tinha sempre mais alguma coisa para ver. Que bonita era a linha do Tejo, lá ao longe, sempre coberta de névoas e, por perto, a cidade de Abrantes, no cimo do morro. 

Como era alta a serra dos Bandos, sobressaindo por cima de muitos outros montes menores. E para norte, as terras de Aboboreira, ali tão perto e que não podiam ser vistas da aldeia, visto que ficavam por trás da nossa serra. 

A poente, para lá do cabeço Barreiro, serpenteava a estrada, onde ouvia as camionetas carregadas e, duas vezes por dia, a camioneta dos Claras, que fazia carreira entre Abrantes e Chão de Lopes, seguindo depois até Proença-a-Nova. 

Lá longe, mais ou menos na linha do Tejo, via-se, de tempos a tempos, o rolo de fumo dos comboios; contrastando com a aldeia, ali em baixo, a seus pés, onde tudo era calma e sossego, apenas cortados pelo ladrar dos cães, pelo fumo das chaminés e pelo ruído abafado, de sons residuais, não determinados. 

No alto do monte, sentado sobre uma pedra, que tinha sido arrancada na pedreira próxima, o Lajinhas dava aplicação, na prática, ao que aprendera na Geografia. 

A senhora professora tinha dito que horizonte visual é tudo o que a nossa vista abrange, desde o local em que nos encontremos; aumenta à medida que subimos num monte. Quanto mais subimos, maior é o nosso horizonte. E a linha lá no fim do que vemos é curva; parecendo a borda de uma bola grande. 

Até aqui não tinha dúvidas, mas agora choviam em catadupa as perguntas que lhe bombardeavam a cabecita: serão mais felizes os que moram nos altos? Verão melhor os que têm horizonte maior? Quando chegar à linha do horizonte o que poderá ver? Os cegos não têm horizonte? Estas e outras perguntas davam-lhe que pensar e ocupavam horas infindas do seu dia-a-dia. 

Depois via a diferença entre os pequenos morros, os outeiros, os montes, as montanhas. 

Podia localizar montes isolados e, mais além, vários em conjunto, formando as serras. A seus pés, tinha o sopé do monte da Serra, de onde partira, ao pé da escola a encosta, ou vertente, e estava no cimo, ou cume. 

Não lhe passava despercebida a forma curva da linha do horizonte. As coisas que via nessa linha não estavam todas à mesma distância, mas estavam em curva. 

E se subisse muito, chegaria ao limite do horizonte? Poderia ver a curva toda, a volta completa? Era por isso que diziam que a Terra é redonda. 

É redonda e mexe-se; quando ali chegou o sol estava ao fundo do Casalinho e agora já subira e estava por cima do Carvalhal. 

Mas o Sol é uma estrela fixa; a Terra é que tinha rodado, dizia o livro! Neste ponto ficou baralhado e decidiu que pediria à professora uma explicação para estes movimentos. 

Com estas e muitas outras cogitações, nem deu pelo passar do tempo; quando reparou já o sol baixava. 

Desceu a correr pelo monte abaixo e foi para casa. Arrumou o bornal de cotim com os livros, procurou um bocado de pão, que comeu, sem conduto, e foi até à horta onde os pais regavam o milho e tinham presas as duas cabritas, da casa. 

Por ali ficou, até que, ao pôr-do-sol, recolheram todos a casa, cearam e foram dormir. O garoto teve dificuldade em adormecer. Não lhe saíam da cabeça as dúvidas sobre o fim do horizonte. 

Feito o exame da quarta classe, o Lajinhas foi à ceifa, com o pai e os dois irmãos mais velhos, na companha do Ti’Chico Manajeiro. 

Viu, pela primeira vez, o rio Tejo, ao pé de si, pois já muitas vezes o tinha imaginado do alto da serra, onde se refugiava com os seus pensamentos. 

E como era grande toda aquela extensão de água a correr e os terrenos das margens, tão verdes, planos e largos!... Aquilo é que eram terras para fundir bem, pensou ele. 

Logo a seguir outra grande novidade – o comboio – que, pelo seu caminho, rompeu campos adiante, por entre montados e searas até lá ao Alentejo, onde os campos lisinhos estavam todos cobertos do pão que iriam ceifar. Seriam quarenta dias de trabalho forçado. 

Um dia, debaixo duma azinheira, enquanto toda a gente dormia a sesta, sobre uns restos de palha, o Lajinhas pensava, com os seus botões: aqui o horizonte é pequeno; quase nem dá para ver que acaba em curva. 

Afinal a Terra pode ser redonda, mas tem muitos bocados grandes onde é direitinha. O comboio, desde Abrantes, veio sempre em frente e quase não subiu nem desceu; onde está a curvatura da terra? 

Estas e outras conjecturas eram o seu entretém, antes de adormecer, depois de se apagar a luz; enquanto o petromax estava aceso, ia lendo os dois ou três livritos que pedira à professora, na biblioteca da escola, de que continuava a ser o principal leitor. 

Ia já no fim da Colecção Educativa, da Campanha Nacional de Educação de Adultos – estava agora a ler um livro de Júlio Verne: Volta ao Mundo, em oitenta dias. Já decidira que, voltaria a lê-lo. 

Terminada a ceifa, voltou à aldeia. Os seus quinze, dezasseis e dezassete anos foram desperdiçados, segundo o seu conceito, na guarda do gado, ajuda nas sementeiras, regas e colheitas. 

O pai falou-lhe em aprender um ofício, mas desistiu da ideia, pois o Lajinhas não estava ali, tinha outras expectativas, sonhava com outros horizontes. Apenas esperou pelos dezoito anos para se fazer ao Mundo. 

E, tinha planos concretos, meticulosamente elaborados com destinos e rotas, desenhados, em cima de tempos definidos. 

E haveria de cumpri-los!...

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

O barrete do Ti’Manel



O ti’Manel Pisco morava lá para o cimo do Casal, junto ao ribeirito que descia da Barroca para a Horta de Casa. 

Na cachoeirita, junto à casa, numa curva do caminho, chegou a lavar-se a roupa e até foi local de lavagem das tripas, por altura de matanças do porco. 

A Ti’Maria da Barroca, com quem casara, muitos anos antes, sempre fora mulher de pouca saúde e fracas cores. Cuidava dos dois filhos e guardava duas ou três cabritas e uma ou duas ovelhas, donde provinha o leite que, nas falas do povo, dava os melhores queijos da terra. 

A casa de habitação, retirada da rua, num cotovelo do ribeirito, tinha anexos os cómodos do costume: barracão, cabana do carro, palheiro do macho, cerca do gado, pocilga do porco, forno do pão e casa da despensa, onde além das batatas, cebolas, alhos e ramos de louro, se guardava a talha do azeite, os cântaros das azeitonas e alguma fruta e outros mimos da casa, sem esquecer o pote do mel, de que o Ti’Manel era o maior produtor da aldeia. 

Uma meia dúzia de galinhas, um capãozito e uma ninhada de pintainhos, tinham o privilégio de vaguear pelo quintal, arranjando assim a maior parte do sustento, completado com algumas hortaliças, restos do caldo, ou uns bagos de milho, em alturas de mais carências na hortita. 

Os ovos rendiam cinco ou seis mil réis, por semana, dinheirito esse que constituía o fundo de maneio da Ti’Maria, usado para comprar uma chitas, popelinas, linhas e botões, a um dos tendeiros que semanalmente visitam a aldeia e alguma mercearia, na taberna, onde se vendia de tudo, desde petróleo a açúcar e a cevada moída, que aquecia o estômago, de manhã. 

Além do macho, de provecta idade, manso como as pedras da calçada, fazia parte da família um cachorrito, que respondia pelo nome de “farrusco”e raramente abandonava o dono, especialmente quando este estava nas redondezas da casa.

Ao fundo da cabana do carro, situava-se o poço, com mais ou menos metro e meio de diâmetro e não mais de quinze palmos de fundura. 

Em volta do poço, um muro redondo, com uns sessenta centímetros de altura e, sobre ele, a armação de ferro, onde trabalhava a roldana em que deslizava a corda que prendia o balde da água. 

A uns dois metros do poço, estava a laranjeira. 

Nas falas e sentimentos do dono, não havia melhores laranjas, no mundo, que as da sua laranjeira. Mas vale a pena reproduzir a frase do Ti’Manel que definia o seu sentimento quanto à sua arvorezita: 

”Em mais de meio mundo, que já vi, nunca encontrei nada que me satisfizesse mais que uma boa sesta à sombra da minha laranjeira”. 

Com a forma de sepultura antropomórfica, escavou o Ti’Manel, uma pequena cova, com um palmo de fundo, exactamente no sentido da sombra da laranjeira, nas horas de maior calmaria. 

Encheu a cova com palha de centeio. Na parte virada a norte, o Ti’Manel teve o cuidado de deixar um ressalto, para servir de cabeceira, onde a palha, cortada, foi colocada de travesso e coberta com um panal da azeitona. 

Não há quadro do local, porque nunca nenhum pintor presenciou aquele idílio: o Ti’Manel, deitado à sombra da sua laranjeira e o “farrusco”, dando conta de tudo o que se passasse para além do muro que bordejava o quintal e a casa. 

Um dia, numa das habituais passagens pela aldeia, o Manel da Rosa – caldeireiro, “bimbo, lá de cima”, sempre acompanhado pela mulher, que além de angariar trabalho para o companheiro, pedia esmola, às portas – vendo o homem a dormir a sesta, com o cãozito ao lado, impávido e sereno, ficou a imaginar coisas... e aproximou-se do muro, junto do portalito tapado com galhos e ramos de oliveira. 

Mas – pernas para que te quero – salta de lá o “farrusco”, direito ao caldeireiro, que não ganhou para o susto e não parou antes da taberna. 

O Ti’Manel era um homem grande, de peitaça saliente e braços, anormalmente, compridos. De estatura mais que meã para o uso na terra, como ele dizia. 

Barbeava-se uma vez por semana – aos domingos, antes da missa – e usava calças de cós alto, apertadas com um cordel e, normalmente, tão subidas que deixavam a descoberto as botas de cabedal, com solas de pneu, a que o Manel da Rosa “deitara uns gatos”, na última passagem pela aldeia. Na cabeça o mesmo barrete de sempre, preto, enterrado até um pouco acima das sobrancelhas, descaído sobre o pescoço e com a borla quase desfeita. 

Quando andara por Lisboa, onde dera o corpo ao manifesto, na estiva de navios e a servir nas obras; nas ceifas do Alentejo; nas podas dos laranjais de Setúbal e nos navios, que o levaram aos cantos do Mundo, só tirava o barrete para o pôr, dobrado debaixo da cabeça, servindo de almofada. 

Além da igreja, contam-se pelos dedos da mão as alturas em que o Ti’Manel foi visto sem barrete, e representam outros tantos acontecimentos marcantes: o dia do casamento, no casamento dos filhos, uma ou outra vez em que foi padrinho de casamento, ou de baptizado, de algum familiar. 

Nestas ocasiões, usou o chapéu que ainda estava pendurado num prego espetado na parede, por cima da enxerga em que passava as noites. 

Quando se deitava, tirava o barrete, dobrava-o, cuidadosamente, e estendia-o, a servir de almofada, quer se deitasse na sua cama, ou na esteira que preparara, debaixo da laranjeira, para dormir a sesta. 

Um tal procedimento despertou a curiosidade de muita gente, mas nunca ninguém ousou perguntar-lhe algo, ou tocar-lhe no barrete, que sempre o acompanhava: debaixo da cabeça, quando dormia, sob os joelhos, quando ajoelhava, na missa, ou dobrado, em cima do ombro, quando tinha necessidade de descobrir-se frente a alguém. 

Afora essas ocasiões, o barrete pendia da cabeça do seu dono. 

O mistério manteve-se por muitos anos: a curiosidade e cobiça de uns, a ganância de outros - familiares mais próximos que imaginavam ali um bom pecúlio -, talvez as intenções que atribuímos ao Manel da Rosa – lançar a mão ao barrete do velho – não fossem tão raras… 

Até que um dia, o Ti’Manel, já viúvo, não saiu. 

No dia seguinte, os vizinhos chamaram e não ouviram resposta. 

Avisaram um dos filhos, com casa no outro lado da aldeia. Juntou-se o povo, como é normal nestas ocasiões, e entrou-se em casa, onde deram com o Ti’Manel, deitado na cama, com o barrete debaixo da cabeça e a mais tranquila e serena paz, no rosto. 

Estava morto. 

Os preceitos do costume, o enterro, as partilhas dos parcos tarecos e toda a gente ansiava pela revelação do mistério: o que estava, realmente, no barrete, que seguiu na cabeça do dono, para a sua última morada, no cemitério da freguesia - Penhascoso -? 

O filho mais velho, que herdara do pai alguma serenidade, revelou, finalmente, que no barrete estava um rosário de Fátima, com as contas muito gastas, pelo uso, e um pequeno papel, muito bem dobrado, com a indicação de um buraco da casa, onde seria encontrada uma caixa de lata, de uma marca de bolachas. 

O conteúdo da caixa, constituído por algumas notas nacionais e estrangeiras – algumas das quais já sem curso legal – foi dividido entre os irmãos; o rosário foi pendurado junto à imagem de Santo António, na capela do Senhor dos Aflitos, na aldeia, onde se manteve por muitos anos, até que desapareceu.... 

Quanto às notas de banco que os herdeiros dividiram entre si, pouco valeram, pois nenhum dos beneficiados passou a rico…como comentava, com ironia, o filho mais velho, quando lhe tocavam no assunto.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

O penedo da Lameira



Ainda o sol, vindo dos lados do Casalinho, depois de contornar o cabeço do Pião, não banhava o povoado, já o “príncipe” espreitava os primeiros raios, especado no alto da portela da Casinha, ali no cimo dos Brejos. 

Um pouco mais atrás, o Ti’Luís Mestre – moleiro desde que se conhecia e dono de uma das azenhas do ribeiro da Louriceira – seguia o “fadista”, ajoujado sob a carga de taleigos de farinha, com passo lento e cadenciado. 

A aldeia, estendida no sopé de um pequeno relevo – de que herdou o nome, impróprio, de Serra – tinha acordado, há muito. Eram sinais disso, o cantar dos galos, o ladrar dos cães e o barulho de um ou outro chocalho das cabeças de gado que já se dirigiam às hortas. 

O moleiro, que visitava a aldeia todas as semanas, tinha os seus fregueses. Até o “fadista” guiava o dono, parando junto às portas onde ia trocar o taleigo de farinha pelo saco de cereal, que levava para o moinho, trazendo a farinha, depois de moída e maquiada, na semana seguinte. 

Naquele ritual, enquanto parava às portas, o “fadista” ia lançando a boca às verduras, ou outras coisas comestíveis que apanhasse à mão, o que muitas vezes lhe valia uma arrochada no lombo, não tanto como castigo, pelo abuso, mas como sinal de arranque para a próxima paragem. 

O “príncipe”, que todo o caminho se entretivera a correr, a parar de repente, a ir ao dono, a fugir para fora do caminho, perseguindo as lagartixas que passavam ao seu alcance, sentava-se, sobre as patas traseiras, enquanto atendiam os fregueses. 

Não se incomodava com a comida, pois, normalmente, não tinha fome. Os ratos, ratazanas e similares, que pululavam lá nas azenhas, chegavam e sobravam para lhe encher a barriga. 

Daí que os seus maiores inimigos fossem os gatos, que pintavam no terreno, à procura de “caça”. 

O Ti’Luís Mestre, sexagenário baixote e atarracado, vestia, invariavelmente, calças de saragoça, camisa de flanela e um blusão, tipo jaqueta, justo na cintura. 

Calçava botas de cabedal, ensebadas e cobria-se com uma boina escura e esbranquiçada pela farinha. Até as sobrancelhas denunciavam a profissão do moleiro, que, raramente se separava da bengala com que acariciava o lombo do “fadista” e lhe servia de amparo e companhia, nas caminhadas. 

A maquia dos taleigos chegava para lhe dar uma vidinha sem sobressaltos e para criar os quatro filhos que estavam em casa, com a mãe – a Ti’Luísa, uma santa. 

A personalidade e o feitio do moleiro tinham-se adaptado ao ritmo da azenha; dormia, com o barulho das mós, acordava, com o silêncio das paragens. 

Uma manhã, de fins de inverno, ao deitar o nariz fora do casebre, onde funcionava a azenha e onde tinha o catre em que, tal como seus antepassados, estendia os ossos, enquanto o engenho marchava, viu tudo branco – havia, nos campos, uma coisa que nunca vira –. 

Imediatamente lhe veio à ideia que em tempos ouvira falar na neve, que cobre as terras altas e é formada por água gelada, que cai assim do céu. 

Saiu do tugúrio, assobiou ao “príncipe”, que parecia louco, a correr de um lado para o outro e a meter o focinho na neve branca e fofinha. 

Deu uns passos em redor do engenho. A água do ribeirito continuava a correr e tudo marchava, em perfeita ordem e harmonia. 

Nesse dia fazia a volta da Serra, pois era terça-feira e não era dia de Entrudo, nem de Natal – únicas excepções para essa viagem semanal –. 

Ao chegar quase ao cimo do vale, junto ao penedo da Lameira, olhou para o cabeço do Loureiro, nos altos da encosta em frente e viu tudo branco. 

Que delícia, o brilho do sol reflectido pela neve!... 

Parou uns momentos e fez alto ao “fadista”, voltando-se para ele, como que a convidá-lo a admirar aquela paisagem, nunca antes vista e, provavelmente, poucas vezes se repetiria. 

Inopinadamente, um sobressalto agitou o burrito, que soprou, violentamente, pelas narinas; ali perto, o cãozito, andava num frenesim nada habitual – nunca se lhe vira tal agitação –. 

Homem e animais estavam no centro de qualquer coisa; participavam em qualquer cena desconhecida a que a neve dava moldura especial e o espírito calmo e pachorrento do Ti’Luís Mestre não percebia. 

Sentia que o burrito estava hirto e o cãozito todo eriçado, fixados na fresta do penedo. 

Olhou, instintivamente, na mesma direcção, depois de, em milésimos de segundo, lembrar as moiras encantadas, as luzes referidas pelos mais alucinados com a zurrapa que bebiam na tasca do Sebastião e até imaginou a bandeira que, segundo a tradição, ali foi colocada, pelas tropas de Napoleão, marcando o centro de Portugal. 

De repente, acordou, desceu à terra, agitou os pés, sobre a neve, e, junto dos seus companheiros, olhou... esfregou os olhos, para se certificar que não sonhava, e viu uma loba, maior que os maiores cães que já vira, saindo da fenda do penedo, abandonando o covil, acompanhada por três filhotes. 

Depois, dirigiu-se para o mato, sem denotar grande nervosismo, e desapareceu. 

Estava feita luz na cabeça do Ti’Luís Mestre; não lhe falassem de barulhos de moiras encantadas, de luzes na escuridão, ou bailados e reuniões de bruxas... 

No penedo havia sim um covil de lobos, cujos ruídos eram normais e que ao saírem, durante a noite, projectam a luz dos olhos para quem os vê. 

Foi sem receio que continuou a passar no local, pois ao ser interpelado, o ti’Luís limitava-se a galhofar: 

Tenho medo do “bicho homem”, que me pode fazer mal; dos outros, dos verdadeiros bichos, nunca tive medo, porque tenho a certeza que sempre me tratarão como eu os trato: nunca me farão mal.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Lagar cooperativo


A oliveira, se bem que árvore secundária na zona, ocupava, nos meados do século passado, lugar importante na arboricultura e pesava muito na economia daquelas terras do centro do País. 

O azeite “chave dourada”, da região de Mação, era afamado, desde que, em tempos passados, segundo cronistas locais, chegou à mesa do Rei. 

Os olivais, lenta mas continuadamente, iam sendo substituídos pelos pinhais, tal como anos antes, no início do século XX, tinham ocupado os soutos de castanheiros, que, ao tempo, estavam, praticamente, extintos. 

Nos anos quarenta e cinquenta havia, ainda, muitos lagares de azeite, dispersos nas margens das ribeiras, em locais de difíceis acessos. 

Muitos estavam em vias de abandono, porque apertava o rigor das normas de higiene e os métodos ancestrais começavam a ser substituídos por força motriz. 

Na Serra, tínhamos restos de um lagar, na ribeira e, dentro do povo, ainda havia uma casa, ao fundo da Carreira, a que se chamava a atafona, por ter sido lagar, noutros tempos. 

Para moer a azeitona da terra, recorria-se aos lagares das redondezas: do Ti’Manel da Cruz, na Queixoperra, da Amieira Cova, às vistas da Saramaga, da Aboboreira, junto ao ramal do Vale da Figueira e de Penhascoso, para os lados do Pedrógão. 

Fui a todos eles, com meu pai. Era vulgar moer-se, em cada ano, em dois ou três lagares, consoante a proximidade dos locais de recolha da azeitona, que, em nossa casa, estavam dispersos, desde o Carocho, entre a Queixoperra e Penhascoso, às hortas da Ribeira, entre a Serra e a Saramaga. 

Cada época íamos várias vezes, ao lagar: começava-se por combinar os serviços e conhecer a tulha que nos era distribuída, depois levava-se a azeitona, ia buscar-se o azeite e o bagaço e, participava-se na tiborna que encerrava a safra. 

Comia-se uma boa couvada com bacalhau, temperada com azeite seleccionado para amostra da produção desse ano. 

O azeite era, generosamente, derramado nos pratos dos convidados, sobre as couves e o bacalhau, com uma medida de folha, de um ou dois litros. 

Tenho, ainda, na memória, aquele gosto de azeite novo. 

Foi neste contexto que um dia, depois da ceia, o meu avô e meu pai saíram, dizendo que iam a uma reunião por causa dum lagar. 

Não era muito frequente e os que ficámos fomos para a lareira, como de costume. 

Pouco tempo depois, ao voltarem, confirmaram que tinha sido formada uma “comprativa” para fazer um lagar e que, das cem acções, a nossa casa ficou com três – uma para cada neto, segundo as palavras do meu avô –. 

Assim, como assim, só a facilidade de levar a azeitona e trazer azeite e bagaço, valiam os três contos de réis que se aplicavam; mas havia de vir de lá alguma coisa que compensasse. E, o mais importante, como frisava o meu avô: Nestas coisas, não se deve ficar de fora. É um melhoramento na terra. 

Fui ao dicionário, quando cheguei, dias depois, a Mação, ver que raio de coisa seria aquela de “comprativa”. Lá consegui saber que se tratava de uma cooperativa e percebi, em essência, como funcionaria o lagar, que afinal seria feito com o dinheiro de todos os associados e não de um único dono. 

De resto em tudo era idêntico aos lagares tradicionais, excepto na força motriz a utilizar e nos equipamentos; uma e outros, modernos e avançados para os tempos que corriam: motor a diesel e prensa hidráulica. 

A construção decorreu a tempo de fazer a próxima safra, por sinal um ano de boa produção e boa funda da azeitona. Muito azeite e de boa qualidade, ajudaram a entusiasmar toda a aldeia e o lagar moeu, praticamente toda a azeitona da terra e ainda alguma de fora. 

Muito trabalho, bons resultados de maquia e, dado que ainda não havia despesas de manutenção, bom rendimento do dinheiro das quotas de cada cooperante. 

Muitos manifestaram arrependimento de não terem entrado de início e quando tentaram comprar quotas, não encontraram vendedores. 

Durante vinte ou trinta anos tudo correu bem; depois, com a degradação dos equipamentos, as despesas aumentaram, a quantidade de azeitona diminuiu e as exigências legais quanto a qualidade, asseio, meios técnicos e controlo de produção tornaram o número de associados cada vez mais pequeno. 

Veio a ser só de três sócios que acabaram por se desentender, puxando cada um para seu lado. Tinha-se acabado a “comprativa”. 

Acabou, por falta de quem dirigisse. 

As imposições legais, tratando estas pequenas unidades como sociedades industriais de grande porte, deram a machadada final numa coisa que foi tão bonita e conseguiu vingar, quando, ainda em tempos do Estado Novo, não era muito apoiada e acarinhada qualquer iniciativa de natureza cooperativa. Era um nome que pouco entusiasmava as autoridades. 

Não sei como foram os últimos tempos do lagar da Serra. Penso, no entanto, que acabou propriedade de um só dono e que só excepcionalmente laborou, nos últimos anos, deixando de dar lucros. 

Mas, o maior prejuízo foi para a Terra, em vez de um serviço ao pé da porta, os moradores voltaram a ter de deslocar-se até aos lagares de outras terras próximas. 

A resina e o azeite foram duas das grandes fontes de subsistência daquelas pequenas terras de província. 

Não posso ouvir dizer, numa altura em que tanto se fala de desemprego e problemas sociais, que já não é rentável explorar aquelas matérias-primas, com a desculpa de que é mais barato comprar fora que produzir. 

E acabo meditando nas palavras do meu avô. 

Nunca consegui saber a resposta, ou a frase completa que ele tantas vezes quis dizer-me: adeus mundo, cada vez… Na expressão do meu avô, seria, de certeza, melhor… 

É que sempre o vi como um homem muito prudente, seguro de si, ponderado e crente. 

Mas também ousado, ambicioso e confiante. E confiava, acima de tudo, na força de vontade e na capacidade humana. Um verdadeiro optimista. 

Um homem não muito grande, mas um grande homem, o avô Zé Lourinho.