quarta-feira, 16 de junho de 2010

O ferrador

José da Silva, também conhecido pel’ O-dos-Gagos, foi para ali como meio latoeiro, meio ferreiro e acabou como um dos ferradores de mais nomeada em todas as terras além Jarmelo e raia do Côa.

Oriundo algures das abas do Douro, chegou a terras da Guarda e fixou-se, isto é, começou a percorrer as terras entre a Guarda e o Côa, como latoeiro e mais tarde construiu um tronco, no cimo dum pequeno outeiro, à entrada do Rochoso, não longe do cemitério e paredes meias com a cerca da quinta do padre Domingos. Antes estivera uns tempos nos Gagos, donde lhe vem a alcunha posta pelo povo, e onde aperfeiçoou a arte de ferrador, sobretudo de gado cavalar e bovino, aliás o de maior abundância na zona.

No Rochoso, foi-se apropriando daquele ermo, ali no cimo do cabeço, bastante desprotegido dos ventos frios que sopravam da serra da Estrela e não poupavam as terras mais desabrigadas. Havia, pois, justificação para uma primeira obra – um barraco tosco, onde guardava o burrito, duas cabritas, que também iam tasquinhando ali pelas redondezas e como que conquistando terreno. Ao fim de poucos anos já se assenhoreara do assento e, a troco de meia dúzia de notas, comprou o ermo ao Ti’Lampreia que nunca terá imaginado vir a receber fosse o que fosse por aquilo que não valia nada.

Tratava-se de uns barrocos pequenos e áridos, uma pequena cerca onde parecia que tinham semeado pedras, uns restos de lamaçal, onde, em tempos iam cavar a terra para fazer o barro usado nas paredes das casas mais modestas e meia dúzia de giestas que cercavam a vinha – nada mais, nada menos que catorze cepas, já velhas e muito mal tratadas, que nunca devem ter dado uvas que fizessem meio quartilho de vinho.

Encostados à canada que dali descia até ao caminho de entrada na povoação, havia uns velhos troncos de carvalho e o que restava de uns castanheiros, entretanto desaparecidos. Foi ali, junto dos restos das árvores que o ferrador pensou e construiu um tronco capaz de receber qualquer besta e ferrá-la.

Mais tarde, junto do barraco, fez a primeira casa. Jogando com a inclinação do terreno e fazendo um bom desaterro, construiu ali uma casa digna de se ver: toda a gente comentava o bom aproveitamento dado ao terreno e aos cómodos que nasceram dum esconso daqueles, onde mal se entregava. Casa de loja e andar de cima, cortes para gado e pocilga para o porco, cozinha e alpendre exterior à casa e ao lado do pequeno terreiro em frente da casa, arrasou giestas e restos de vinha e fez uma pequena latada, com mesas de pedra, protegidas do norte pelas terras do outeiro e por um muro de pedra cortada na pedreira e digna de se ver. Era imponente a vista sobre a aldeia, as terras para lá da ribeira, e, até por cima do Calvário se via a senhora do Monte e todo o termo do vale do Noeme, até para lá da Miuzela e terras do Côa.

A casa do ferrador era muito frequentada na terra, porque tinha a melhor vista, acabava por ser acolhedora, estando protegida dos ventos agrestes e virada ao decurso do sol; havia sempre umas bestas para ferrar, ou umas larachas para dizer e ouvir, de que O-dos-Gagos não perdia pitada e era ali que se toscava tudo o que havia sobre negócios, oportunidades, contrabandos e candongas, volfrâmio, etc.

Mais tarde e como o Zé da Silva sabia bem o que queria e aproveitava as oportunidades, comprou o alvará de uma tasca da terra aos herdeiros de um velhote, por uma tuta-e-meia e transferiu o negócio para um anexo que acrescentou ao lado do barracão, mesmo em frente da área do ofício. Passou a ser, dentro de pouco tempo o lugar mais frequentado da terra e visitado por muitos passantes que ali procuravam comida, às vezes dormida, por vezes esconderijo e informações para candongas, ou negócios mais ou menos claros.

Em poucos anos tinha uma das melhores casas da terra, comprou lameiros e tapadas, começou a criar gados, a produzir queijo, a vender batata por atacado para Lisboa e, tudo o que se vendeu no cerro d’O-dos-Gagos e imediações, veio parar-lhe às mãos. Depois fez o milagre: transformou pedras em plantas.

A mulher com quem casou era mais finória que ele para o negócio de porta aberta e para descobrir oportunidades; ele, porém, tinha umas mãos de verdadeiro artista para ferrar uma besta e canelo que fosse das mãos dele para um bovino assentava que nem uma luva. Confiava, cegamente no trabalho que fazia, ao ponto de apostar que reconheceria um trabalho seu, mesmo que a ferradura já andasse nas patas da besta há muitos meses.

A fama espalhou-se e todas as vezes que o experimentaram, tentando ver se era capaz de acertar nas ferraduras que tinha deitado nas patas de uma besta,
nunca falhou. Chegava ao pormenor de afirmar: neste boi, as duas patas da frente e a pata de trás do lado direito, foram tratadas por mim, já a pata de trás do lado esquerdo tem uma ferradura que não foi posta por mim. Por isso o animal sente-se desse lado e anda a dar mau trabalho.

Como naquele tempo havia bastantes roubos de gados que, mais tarde, apareciam nas feiras e era difícil fazer prova de verdadeiro dono de um animal, muita gente começou a ir a’O-dos-Gagos ferrar as bestas para que se, um dia, tivesse, em demanda, de provar que um animal era seu, pudesse levar junto do juiz o ferreiro e este comprovasse que aquele animal tinha sido ferrado por ele e, por isso, não podia ser de quem nunca recorreu aos seus serviços.

Não demorou muito que não fosse indicado ao tribunal da Guarda, como perito, para fazer prova de que uma junta de bois posta à venda da feira de Trancoso, tinha sido ferrada por ele, na sua casa do Rochoso e, perante testemunhas o vendedor afirmava que os bois nasceram e cresceram ali junto de Frexes, nunca tendo ido a tal terra.

Chamado ao juiz o ferreiro disse que, só, com o senhor doutor juiz e em reservado, pois não estava disposto a revelar o segredo da sua arte, comprovaria, a sua excelência, se os animais tinham sido ferrados por ele, ou não. Como os animais estavam apreendidos às ordens do tribunal, foi o juiz com o ferreiro e, passadas umas três horas – pois tiveram que levar os bois a um tronco de ferrador – o juiz condenou a dois anos de prisão, por roubo de gado, o vendedor dos bois, mais custas de processo e diligências e pagamento ao perito de um dia de trabalho especializado e deslocações, no valor de quatro contos de reis, o que naquele tempo era dinheiro de se lhe tirar o chapéu. E os bois foram entregues ao seu legítimo dono, que ainda acabou por gratificar bem o ferreiro e passou a ser, dali em diante, o maior propagandista do ferreiro do Rochoso. Contou o caso do tribunal da Guarda centenas de vezes e sempre deixou de boca aberta quem o ouvia.

Foi a consagração de um herói. Se já tinha muita freguesia, nunca mais teve mãos a medir e, de um ajudante, passou para três: um na forja, onde fazia e temperava as ferraduras e dois nos trabalhos de desbaste, limpeza e preparação das patas das bestas. Os acertos finais e a colocação de ferraduras eram trabalho do mestre, bem como o acabamento das ferraduras e canelos que eram passados da fornalha, em brasa, para um pequeno anexo, onde o ferrador, à porta fechada, dava as últimas pancadas e metia no banho da água para arrefecimento e têmpera. Dali trazia-os para colocar nas patas dos animais, pregava os cravos e deixava os acabamentos - corte das pontas e acerto dos cascos – para um dos ajudantes.

Toda a gente tentou saber como era possível ao ferrador conhecer todas as bestas que ferrava e nunca ninguém descobriu o óbvio. Em ar de chalaça o ferrador dizia: Levo os animais ali ao reservado, tiro-lhe as ferraduras e pergunto se fui eu que os ferrei e se querem ou não voltar a ser ferrados por mim. Simples, não é!? E como os animais ainda não aprenderam a mentir, até hoje, nunca me enganaram e eu, até na frente de juízes posso dar a minha garantia. Porém, para continuar a ter a confiança dos bichos, garanto-lhes que tudo o que me disserem fica em rigoroso segredo. Só os juízes podem estar presentes quando eu faço as perguntas e têm de estar devidamente fardados.

Um dia o Ti’Zé da Silva, O-dos-Gagos, como ele gostava de ser chamado, sentado à sombra de uma frondosa acácia que pendia a um canto do largo em frente da sua casa, vendo um dos genros, acompanhado dos ajudantes, no trabalho de ferrador de uma junta de bois, chamou-os e disse-lhes: Chegou a hora de revelar o segredo ao meu genro que, daqui a muitos anos, quando sentir que começa a estar da meia tarde para a noite, como eu, o passará a quem entender.

Levantou-se, dirigiu-se à forja, seguido do genro e passaram ao reservado onde eram dados os toques finais. Momentos depois saíram e o genro desfazia-se a rir atrás do velho ferreiro, que, com o seu ar de sempre se voltou para os presentes e com um gesto largo disse: o meu António julgava que era mais difícil aprender a fazer as perguntas aos animais! Achou graça!

O segredo continuou a passar de geração em geração, até que quase uma centena de anos depois, quando todos viram na França e Alemanha o “el dorado” e pensaram que também tinham um dia de ir até lá abanar a árvore das patacas, acabou-se o negócio do ferreiro. A partir de então para ferrar uma besta era necessário deslocar-se a Vila Fernando.

Porém, um dia, o último descendente d’O-dos-Gagos a exercer a arte, já bem enfeitado e a troco de mais uma grade de cervejas, revelou, finalmente, um segredo tão bem guardado durante gerações:

Ainda estão lá em casa, embora já bastante gastos, dois punções com as letras O e G, que querem dizer, como é óbvio, O-dos-Gagos. O ferrador recebia as ferraduras, em brasa, do ferreiro e no anexo, à porta fechada, gravava, na parte de dentro das ferraduras as letras. Depois de colocadas as ferraduras, ninguém mais dava por nada e mesmo que outro ferrador desferrasse a besta e visse as letras não lhe ligava. Se um dia fosse preciso, a ferrador tirava as ferraduras e via se tinham ou não a sua marca e sabia, de imediato, se tinha sido ele ou não a ferrar aquela besta. Simples, limpo e infalível.

Os punções estavam, despreocupadamente, guardados num buraco da parede, debaixo de uns papéis velhos e ninguém estava autorizado a entrar naquela dependência, onde se guardavam, também, os valores da casa.

Foi este, meus senhores, o segredo do negócio dos meus avós, que Deus tenha em descanso, a que eu, talvez por ser o pior deles, resolvi pôr fim.