terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Os bolinhos do Augusto

Os dias frios, dos princípios de Novembro, não tinham ainda trazido a chuva, que batera bem nos meados de Outubro, mas parara, dois ou três dias antes dos Santos.

O “verão de S. Martinho” veio mais cedo e a manhã em que os meninos da terra iriam, de casa em casa, pedir os bolinhos, apareceu soalheira e agradável.

Todos os anos, desde tempos imemoriais, no primeiro de Novembro, dia de Todos-os-Santos, as crianças da aldeia, entre os quatro ou cinco anos e os dez ou onze, percorriam todas as casas da terra, dizendo a velha lengalenga:

“Tia, bolinhos, bolinhos, em louvor de todos os santinhos” e recolhiam, numa bolsa de trapos, o que cada um lhes dava.

O Zézito estava no colégio havia menos de um mês e, aproveitando o feriado, que naquele ano calhou numa segunda-feira, foi para casa, já com a ideia de aproveitar, pela última vez, uma das ocasiões que mais prazer lhe davam: o pedido de bolinhos no dia de Todos-os-Santos.

Tinha já feito os dez anos e iria dar a volta, com o irmão que iria fazer oito e a irmã, que acabara de fazer seis.

O senhor prior avisou, na missa, que, por ser dia de Todos-os-Santos, as crianças da aldeia passariam a pedir os bolinhos, em todas as casas e esperava que, mantendo essa tão bonita tradição, todos colaborassem, como pudessem, “pelas almas dos que Deus já Lá tinha”, cuja memória se comemorava no dia seguinte, com missas rezadas lá na capela, ao nascer do sol e mais tarde na capela do cemitério, em Penhascoso.

Mal o padre disse “ite missa est”, todos os garotos correram a buscar as bolsas de trapos que tinham deixado atrás da porta de casa e, qual bando de pardalitos, invadiram os caminhos da aldeia, correndo para os pontos onde cada um ia começar a volta, pedindo os bolinhos.

O Zézito, mandou esperar os irmãos, para falar ao pai quando voltasse da igreja.

O Augustito que com ele fizera, no último verão, o exame da quarta classe, tinha torcido um pé, quando guardava o gado, e estava em casa, sem poder andar.

O que ele queria era pedir ao pai se podia passar por casa do amigo, para levar a bolsa dele e pedir os bolinhos por ele, uma vez que estava doente.

Quanto os pais viram que os três filhos estavam à porta – a casa era mesmo em frente da capela – foram ver o que se passava e o Zézito explicou a sua ideia e perguntou se estava correcta e se poderia fazer isso.

A resposta não se fez esperar: Claro!... Está muito bem pensado. Vai lá buscar a bolsa e passa por aqui a apanhar a tua e levar os teus irmãos.

A casa do Augusto ficava nas traseiras da capela pelo que o Zézito não tardou a aparecer, correndo, com a bolsita do amigo na mão.

Pegou na dele e prometeu aos pais que iria explicar, em todas as casas, porque levava duas bolsas.

As voltas correram pelo melhor. Toda a gente louvou a atitude, bonita e generosa, de auxiliar um amigo e nenhuma casa se recusou a dar os bolinhos do Augusto.

Uns perguntavam se as coisas corriam bem no colégio, outros diziam que afinal se aprendiam lá coisas boas e até alguns lembravam as brigas que o Zézito e o Augusto costumavam travar, por dá-cá-aquela-palha.

O Zézito, orgulhoso e ufano do sentimento que a sua atitude despertou na aldeia, no final das voltas deixou a sua bolsa em casa e foi junto do amigo entregar-lhe o resultado do peditório e explicar-lhe o que cada casa tinha dado, igualzinho para os dois: as romãs da tia Judite, as passas da tia Nazaré, as maçãs riscadinhas da tia Maria Marques, as capeludas – espécie de papo-secos de pão de trigo – da tia Ermelinda Capaceta, as talassas da tia Capaceta do Casal, as ervilhanas da tia Avelina e os tostões da tia Conceição Grande. Muitas casas deram tremoços, bolos
próprios do dia – com muita erva-doce e diversas peças de fruta.

Porém, duas casas deram bolinhos diferentes: As madrinhas do Zézito, tia Maria Alvega e a do Augusto, tia Deolinda Marques, distinguiram os afilhados – deram bolos especiais.

A tia Deolinda disse que já tinha pensado mandar o filho levar os bolinhos ao afilhado Augusto, mas achava muito bem que fosse o Zézito a lavar-lhos, dizendo que era das atitudes mais bonitas que já tinha visto em toda a sua vida.

Durante uns tempos foi muito falado o gesto, na terra, chegando o senhor prior, durante a missa, a referir e exaltar a atitude da criança que se lembrou do amigo doente e fez o peditório para ele.

Fez questão de acrescentar que estava informado que ninguém lhe encomendara o sermão, saindo a ideia da cabeça do garoto.

Os pais do Zézito, eram bastante comedidos nessas coisas e pouco mais manifestaram que o gosto que tinham tido e o orgulho que sentiram quando ouviram o senhor prior louvar, do púlpito abaixo, a atitude do filho.

Fizeram as recomendações do costume: que não se envaidecesse e fizesse tudo o que pudesse para compensar os sacrifícios que faziam para o trazer no colégio, onde esperavam que viesse a fazer-se homem de carácter e chegar onde eles não tinham podido.

Mas o mais enternecido era, no entanto, o avô do Zézito: homem de poucas palavras e muitas virtudes; de poucas letras e grande filosofia; de pouca vaidade mas muito sentimento.

Dizia, para os mais chegados, como recados para a aldeia: Se Deus quiser irá longe; mostrará a esta gente que os tempos são outros, que os valores deles são diferentes dos nossos e ainda todos se orgulharão dele e muitos hão-de seguir-lhe o exemplo.

Palavras proféticas do ti’Zé Lourinho, um dos homens de maior visão que a aldeia gerou e merece ser lembrado nos quarenta anos da sua morte:

DESCANSE EM PAZ, AVÔ ZÉ LOURINHO. Abril de 2008.