sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A mina do Souto

Garantiam as vozes mais acreditadas que na mina do Souto, depois das hortas do Passeiro, a dois passos da cerejeira grande, não longe do caminho que da Serra se dirige até à Lameira, estava sentado um homem que, imóvel, fumava uma cigarrada, todas as tardes, antes do pôr do sol.

Homem de idade avançada, com a cabeleira farta e branca, os olhos encovados e o olhar fixo na boca da mina, permanece imóvel, se bem que abra e feche os olhos, de vez em quando.

A conversa que corria, em surdina, de boca em boca, chegou aos ouvidos do padre João, que, calmamente, se manteve tranquilo, esperando que mais vozes lhe trouxessem a notícia.

Quando lhe pareceu adequado falou e, com toda a serenidade do mundo, explicou os factos, tal qual eles se lhe apresentavam e, aproveitando, pedagogicamente, o incidente. Disse:

Começo por lhes dizer que, acompanhado por vários de entre vós, estive a observar a mina do Souto e a única coisa que adiantei, como aliás já esperava, foi beber uma boa barrigada de água e beneficiar da paz e sossego que, felizmente, reinam no local.

Todavia, deste lugar sagrado, quero tecer alguns comentários, pois está em causa a dignidade e respeito que devemos aos nossos mortos e, em caso algum, podemos tecer acusações e cair em falso testemunho.

Que descansem em paz!...

O Ti´Chico da Ladeira, que ainda conheci e, reconheço, não terá sido um exemplo de virtudes, fez das suas, como toda a gente sabe e alguns sofreram na pele.

Ao longo da estrada da Lameira ele e o seu bando não ajudaram ninguém e prejudicaram muita gente, sem, todavia, atentar contra vidas e molestar fisicamente.

Além de pequenos furtos e acções de amedrontamento, nunca exerceram violência gratuita sobre nenhum dos presentes, ao que julgo saber.

Deus é Pai e, como tal, profundamente tolerante. Nós, mortais, muitas vezes levianamente, acusamos esta ou aquela alma de sofrer o castigo de Deus e não contentes com o juízo, ditamos a sentença: penar na terra e expiar as faltas cometidas até poder entrar no reino dos céus.

Até, neste caso, condenamos o pobre Chico a estar ali dentro de uma mina.

É bem simples o que se observa na mina e são absolutamente naturais todas as reacções de cada um dos que afirmam ter visto isto, ou aquilo.

Ao fim da tarde, entra mais luz do sol pela boca da mina.

Esta luz, reflectida pela água, como se de um espelho se tratasse, dirige-se para dentro da mina.

A poucos metros de entrada, há várias raízes que na busca de água pendem do tecto e dos lados da mina.

Essas raízes tomam feitios caprichosos e projectam sombras, parecendo verdadeiras formas reais.

Por algumas dessas raízes escorrem fios de água, que ao cabo de muitos anos formam corpos sólidos, esbranquiçados ou avermelhados, permanentemente húmidos.

Quando um raio de sol, reflectido pela água da represa, acerta numa dessas estalactites ou estalagmites – estes são os nomes dessas formas calcárias que se formam –, parecem olhos a brilhar que, de repente, ou porque a água se moveu, ou porque o raio de sol foi interrompido, se apagam.

Nada mais que isto se passa na mina; podem beber descansados e aproveitem para ver com muita atenção tudo o que acabo de lhes descrever.

Mesmo quem nunca estudou estes efeitos dos fenómenos da Natureza pode compreendê-los se usar a inteligência e sobretudo souber ver com atenção o que tem diante dos olhos.

Vamos rezar para que as almas necessitadas, e não apenas a do Ti´Chico, alcancem a graça de Deus e descansem em paz.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

O colégio

As primeiras décadas do século XX deixaram o País num estado de desenvolvimento muito longe do aceitável; não tivemos guerra dentro das nossas fronteiras mas sofremos as incidências dos grandes conflitos mundiais e demorámos demasiado tempo a livrar-nos das sequelas e das chagas sociais deles resultantes.

O nosso concelho, bem no centro de Portugal, era atravessado por duas estradas de macadame, que a certa altura se juntavam numa só, em forma de ípsilon.

Delas irradiavam os caminhos municipais, normalmente de terra batida e com as rodeiras, profundas, das rodas das carroças.

No verão montanhas de poeira e no Inverno charcos e lama, em abundância.

O sistema de ensino público era garantido, até à quarta classe, por escasso número de escolas, complementado com postos escolares que acabavam por cobrir quase todas as aldeias e mesmo lugarejos.

Porém as motivações para estudar eram praticamente nulas.

Nas aldeias raramente se via um automóvel, salvo o do médico, padre ou veterinário e os caminhos impediam, completamente, na época das chuvas, o acesso a muitas localidades.

Passavam as camionetas para retirar a madeira e a resina, mas carro ligeiro, que se aventurasse, era certo e sabido que teria que ser rebocado de algum atoleiro.

As bestas, com cangalhas, alforges ou carroças, eram, na prática, os mais fiáveis e comuns meios de comunicação.

O telefone e a electricidade eram bens raros.

A água corria nas fontes, de bica ou de mergulho e era muito generalizado o recurso aos poços de cada um.

Estas circunstâncias, acrescidas da falta de dinheiro em circulação, facilitavam a filosofia oficial do Governo que defendia a agricultura de subsistência, a instrução básica como suficiente para a generalidade dos homens, já que às mulheres se reservava o papel de mãe de família, sem necessidade de alfabetização, sem direito a voto e sem necessidade de trabalhar fora do lar.

Os trabalhos do campo, uns lugares na tropa, forças de polícia, empregados públicos dos graus inferiores e serventia, quer nas obras públicas, quer nas casas dos senhores, eram o destino de quem tinha padrinhos ou parentes a quem se ofereciam as primícias das colheitas, os cabritos, garrafões de azeite e presuntos.

Mesmo as casas abastadas das aldeias, com as arcas a abarrotar de cereais, as pipas cheias de vinho, as talhas repletas de azeite e de mel, não tinham dinheiro, nem informação, para quebrar a inércia.

Só os mais lúcidos, os que tinham quem os incentivasse, oferecendo-se para receber nas cidades os filhos de algum parente que quisesse seguir estudos, mandavam os filhos estudar.

Estas perspectivas não eram nada animadoras para a juventude dos anos quarenta e cinquenta; os liceus mais próximos ficavam nas sedes de distritos – Santarém, Leiria, Portalegre e Castelo Branco -, as escolas técnicas ainda não tinham aparecido e os poucos colégios eram distantes e caros.

Restava o recurso aos Seminários, quer diocesanos, quer das Ordens Religiosas e não esqueçamos a grande ajuda que deram a muita gente que sem esse recurso, nunca teria acesso à instrução e educação.

Foi nessa altura que apareceram os colégios particulares e com eles a grande democratização do ensino; quase todas as aldeias do concelho mandaram os primeiros estudantes para Mação, Sardoal, Mouriscas e Abrantes, entre outras localidades.

Porém, passados poucos anos, quando essa plêiade de jovens deveria continuar os estudos para níveis superiores, rebentam as guerrilhas nos territórios ultramarinos.

Ora a maioria dos jovens das classes mais baixas não dispunha de meios nem de influências para se safar das comissões no ultramar.

Por norma educados em ambientes conservadores, aderentes aos princípios do respeito pela família, pela hierarquia social e do culto pela Pátria, não fugiram às suas obrigações e pagaram-no bem caro.

Muitos interromperam cursos para não mais os terminar, outros morreram ou ficaram marcados pelas mais diversas deficiências e vidas com um rumo e expectativa social não raro foram orientadas para caminhos diferentes.

Não me parece pertinente a emissão de juízes de valor sobre a vida profissional do homem que veio para a nossa terra e nela fundou o colégio – o Prof. Anastácio Nogueira Lalanda –.

Sou um dos indefectíveis defensores da sua acção, em prol da juventude do meu tempo e relevo, facilmente, alguns métodos e meios que usava, quando os comparo com os benefícios que a sua acção trouxe a centenas de jovens, condenados à nascença a uma condição social anquilosante.

Em seis anos, nunca experimentei o peso físico e psicológico da régua ou das mãos do senhor Lalanda.

Mais tarde, já professor, falei várias vezes com o senhor Lalanda e confesso que são grandes, enormes mesmo, os créditos que lhe atribuo e socialmente notáveis as acções que desenvolveu na ajuda a muita gente.

Para mim, a sua figura destaca-se, claramente, como uma das mais marcantes do nosso concelho, no último século.

Homens desta estirpe, que cultivaram e desenvolveram a nossa matéria-prima mais valiosa –as pessoas –, merecem ter o seu nome perpetuado e a sua figura presente em qualquer lugar destacado do concelho.