quarta-feira, 26 de junho de 2013

Padre ABREU


O Abreu fazia vinte anos e fora, recentemente, às “sortes”, a Mação, tendo ficado “apurado para todo o serviço militar”, como então se dizia.

Andava muito triste, o que, na voz do povo, se devia à morte prematura da mãe, com doença não determinada, ou, pelo menos, não revelada, ao comum das pessoas. Mas a tristeza era outra.

Acompanhava os irmãos mais velhos, João e Benjamim, na missa dos domingos, na freguesia. Ia, também, o mais novito, o “António”, com dez anos, esperto e ladino, filho do pai e da madrasta. 

Pela cabeça do Abreu passava um turbilhão de ideias. 

Também era notória uma postura meditativa, uma marcada auto-análise e introspecção, invulgares em rapazes daqueles meios, daquelas idades e com a sua instrução – fizera a 4ª classe, sendo aprovado, com distinção –.

Um dia, o padre João Pereira, filhote do lugarejo e pároco numa pequena freguesia para os lados de Porto de Mós, veio à aldeia e cruzou-se com o rapazote, de que alguém lhe tinha já falado. 

O Abreu, recentemente apurado, nas sortes, ia, dentro de dias, partir para a ceifa, na companha do Ti’Chico “Manajeiro”, da Serra.

Na conversa que teve com o padre Pereira, o Abreu mostrou grande vontade de saber coisas sobre a vida de sacerdócio. 

Nas três perguntas que fez, a primeira é uma simples diversão: gostaria de saber qual a origem do nome da aldeia Queixoperra –; a segunda e terceira versavam o casamento dos padres.

O padre Pereira, cuja sensibilidade, embora embotada por muitos anos de meio rural, era de uma perspicácia evidente, percebeu que, das três perguntas, só a resposta à última tinha importância para o Abreu. 

Respondeu, evasivamente, sobre o nome da aldeia – cuja origem é incerta e nebulosa – e pouco adiantou sobre o casamento dos padres; mera questão de disciplina, instituída há séculos.

Já no que diz respeito à facilidade, ou dificuldade, de ser padre, o caso é mais complicado; talvez uma passagem dos evangelhos te ajude a compreender o que há para dizer: “aos desígnios do Senhor, nada é impossível”. 

A interpretação desta afirmação contém as respostas que procuras.

Só há uma única condição: a tua vontade e o teu querer têm de ser inabaláveis; o resto, não terá importância. 

Tens de ter muita confiança; tens a vida para viver.

Daí a dias, o Ti’Bento e o Luís Mendes foram a casa do Abreu avisá-lo que no dia seguinte, antes do romper da manhã, estariam de partida, para se juntar, na Saramaga à companha do Ti’Chico “Manajeiro”, da Serra e seguirem todos, para a estação de Abrantes, de onde seguiriam, no comboio, para a ceifa. 

Iria começar mais um dos duros trabalhos que, para o Abreu, seria dos últimos.

O Ti’Chico “Manajeiro” ufanava-se, anos mais tarde, de ter tido nas suas companhas da ceifa, doutores, oficiais da tropa, negociantes de fama e riqueza, brasileiros e até um padre, que de vez em quando, o ia visitar lá na Serra, onde o “manajeiro” passava os últimos dias do entardecer da vida, e, segundo as suas palavras, tinha muitos amigos, por quem pedia, à Senhora da Fátima.

E recordava o rapazote que levou, três anos, na companha: o Abreu, do compadre Francisco, da Queixoperra, que na malhada mostrava um ar de alheamento e distância e um certo quê de mistério. 

Os outros camaradas, reparavam, mas não comentavam muito, pois o Abreu não incomodava ninguém e desempenhava, a contento, todas as tarefas de que era incumbido. Era dos últimos a adormecer e nunca o fazia sem que rezasse as suas orações e se quedasse em meditações.

Nas festas e bailaricos, teve um ou outro “flirt” com raparigas, mas não passou daí e, quanto a respeito, não há nada a apontar-lhe.

Um dia, regressava da horta, onde estivera toda a manhã, junto com os irmãos, a arrancar as batatas e, ao passar à porta da taberna do ti Zé Maria, foi-lhe dito que já lá estavam os editais e que ele iria assentar praça em Abrantes, daí a quinze dias.

Operou-se, no rapaz, uma modificação profunda. 

Andava mais alegre, cantarolava, dava-se a conversas; parecia outro.

No dia três de Maio – festa da Santa Cruz –, foi, junto com os outros dois mancebos da freguesia, buscar as guias à Câmara de Mação e, no dia seguinte, foram apresentar-se em Abrantes, onde durante quase três meses fez a recruta e depois a especialidade, tendo sido escolhido para a escola de cabos. 

O Capitão, comandante da Companhia, casado com uma das senhoras da família Moura Neves, precisava de um “impedido” e, saiba-se lá porquê, escolheu o cabo Abreu, que passou a frequentar a casa do “patrão”, onde ajudava nas compras, lavava o automóvel, tratava do cavalo e se ocupava de outros afazeres da casa. 

A senhora dona Aninhas, mulher do Capitão Geraldes, gostou do militar que o marido escolhera, muito prestável e solícito, preocupado e amigo de ajudar, muito pontual e sério nas contas. 

No entanto, por vezes ficava triste, pensativo, vago e distante, o que levou a Senhora a perguntar se estava ofendido com alguma coisa, ou se tinha alguma coisa que ela pudesse ajudar a resolver.

Ai, minha Senhora, tanto e tão pouca coisa. 

Corou e quase se lhe embargou a voz, mas não podia perder a oportunidade e acrescentou: sou filho e neto, de gente pobre e humilde; pobre, de bens materiais, mas temente a Deus e muito honrada. Com fé nestes princípios, há oito ou dez anos o meu maior desejo é ser padre. 

Ser padre, Senhora Dona Aninhas, é o meu desejo. 

Homem, mas isso... venha comigo. Você, Mariana, vá tratar da lida da cozinha, que se fazem horas do almoço. 

Ah! o Abreu almoça cá, connosco.

Chegados à sala, a Senhora perguntou, secamente: tem, então, a certeza que é padre que quer ser? 

Certeza absoluta, minha Senhora. Só que, por mais que pense, não vejo como; até nem sei porque incomodei a Senhora com tais despropósitos. 

Que me desculpe, a Senhora, que tão boa tem sido para mim.

Não, meu bom homem, bateu à porta certa; aos desígnios do Senhor... 

Sem ouvir o resto da frase, fez-se luz na mente do rapaz; eram as palavras do evangelho, que o padre Pereira lhe tinha dito... 

A Senhora continuou, explicando que havia fortes ligações da sua “casa” com o Seminário de Portalegre e o dos Olivais, em Lisboa. 

Todos os anos tinha chegado ao fim um seminarista amigo, mas, havia três anos não se tinha ordenado ninguém da “casa”. Daí a nove ou dez anos, se Deus quisesse, haviam de ter um padre. Assim o Abreu quisesse…

A partir daquele dia, nem a Dona Aninhas, nem o Abreu conseguiram dormir direito, de felicidade. 

Uma semana depois já a Senhora anunciava, na presença do marido, que estava tudo tratado: nos meados de Setembro, o cabo Abreu seria licenciado, na qualidade de amparo de família. 

Na semana seguinte faria um retiro no Seminário de Portalegre e na última semana do mês, um outro retiro, no Seminário dos Olivais, em Lisboa. 

A Senhora queria ouvir opiniões e saber o que melhor se ajustaria ao seu novo protegido; isto se o Abreu não visse qualquer inconveniente. 

Resposta pronta e elucidativa: Mas é isso que eu quero, minha Senhora. A minha consumição é não ter meios nem maneiras de consegui-lo. Somos pobres e todos os braços são poucos para a labuta lá em casa. E sobra tão pouco!...

No início de Outubro, tudo começou no Seminário de Alcains, onde, num ano, o Abreu, fez segundo e parte do quinto ano. 

No ano seguinte, em Portalegre, completou os preparatórios e no terceiro ano completou estudos gerais, indo logo a seguir iniciar a Teologia, que o levaria, passados cinco anos, a cantar Missa Nova, por pedido da Senhora, no Seminário dos Olivais.

Numa visita à aldeia depois de estar no Seminário de Alcains e após ter passado pelos seus pais adoptivos, como sempre fez questão de dizer, encontrou-se com o padre João Pereira. 

Abraçaram-se e o seminarista Abreu apenas balbuciou as palavras que escolheu para lema de toda a sua vida: “Aos desígnios do Senhor nada é impossível”. 

Paroquiou uns anos em Martinchel; no termo de Abrantes – de onde podia visitar a família adoptiva e confortar, na doença, a Senhora Dona Aninhas. 

Transferiu-se depois, por interferências e empenhos da Senhora, para São Facundo, freguesia também perto de Abrantes, onde o velho senhor Moura Neves, saudoso pai da Senhora, tinha a maioria das suas terras.

Lá viveu, muitos e bons anos o Padre Abreu. 

De vez em quando, ia à Queixoperra, para rever as suas origens e, sobretudo, para matar saudades da sua infância. 

Nessas viagens, dava um salto à Serra, para ver o “Manajeiro”.

Morreu, em paz, quase a completar noventa anos, sem deixar quaisquer bens materiais. 

Do seu espólio constam apenas dez ou doze nomes, de outros tantos padres, que, por sua iniciação e orientação, serviram, tal como ele, a Igreja.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Zé Cristo


O clã dos “Cristos” metia respeito: o Manel, na casa dos vinte e oito anos, o João, com menos dois, o Chico, recém vindo da tropa, cujo tempo passara, na maior parte, no forte da Graça, em Elvas, e o ganapo – o Zé – a atingir os dezoito anos, dentro de dias. 

Todos iam acima do metro e oitenta.

Não havia festa, ou descante, onde os quatro irmãos não aparecessem, com ar provocador e, por vezes, munidos dos respectivos paus – que punham sobre as omoplatas, formando uma cruz, com os braços –. 

Daí derivava, ao que se pensa, a alcunha que ostentavam, vinda já dos seus antepassados e que não ligava ao apelido da família: Alexandre.

Os paus constituíam um verdadeiro adereço; eram vulgaríssimos, na época. 

Tratava-se de uma vergôntea de marmeleiro, bem seleccionada e seca longe do sol, com uns dois côvados, ou uma vara – o côvado media 66 cm e a vara 11 decímetros –. 

Conhecemos apenas duas utilidades a estes paus, que qualquer homem que se prezasse exibia nas feiras e mercados: para conduzir o gado, ou para se apoiar. 

Uma outra utilidade – como padrão – era pouco aplicada.

As zaragatas eram, de facto, o terreno mais vulgar para o uso do pau. 

Nas aglomerações e festanças, dos meios rurais, disputava-se o jogo do pau, mas o verdadeiro uso do mesmo era no costado de um qualquer adversário, quando o ensejo tal proporcionasse. 

Todavia este e outros costumes foram-se extinguindo, devido à proliferação da GNR e firmeza de Regedores e Cabos de Ordens, nome por que na região eram designados os Juízes de Paz.

Os magotes de rapazes, que andavam de aldeia em aldeia, nos bailes, descantes e festas, deixavam os paus escondidos de forma que pudessem dispor deles, em poucos minutos, se necessário fosse. 

Nos torneios de jogo de pau disputavam-se prémios e honrarias, de que qualquer homem se prezava.

Ouvia-se contar, aos mais velhos, que no descante do casamento da mãe do Ti’Chico “Manajeiro”, houve uma zaragata, provocada pelos rapazes de Alcaravela, em que foram partidas mais de vinte cabeças e imobilizados mais de uma dúzia de braços. 

Talvez, por isso, “o Manajeiro”, era o maior amigo da ordem e do respeito.

Quase todos os “Cristos” tinham já passado pelas companhas do Ti’Chico; esse ano ia o Zé Cristo, como aprendiz do terceiro ano. 

Passaria à condição de camarada no final da safra e, no ano seguinte, teria já todas as condições de “oficial”, nomeadamente soldada por inteiro e direito a prémios. 

Os aprendizes recebiam, por norma, duas décimas, no primeiro ano; 3 décimas, no segundo e três quartas, no terceiro ano. 

No quarto ano, ou não eram mais chamados para as companhas, ou eram-no, na qualidade de camaradas.

O Zé Cristo era teso, caladão e ligeiramente vesgo – chamavam-lhe “zanaga”-. 

Era o mais alto da companha e em largura de ombros, não havia quem se lhe comparasse. 

Falava pouco, mas, em contrapartida, comia por três ou quatro. 

A trabalhar, uma máquina; os moços, que seguiam no seu encalço, viam-se e desejavam-se para atar os molhos e fazer os rolheiros, atrás dele.

Um dia, um dos moços, o Benvindo, chamou-lhe “caga-molhos”, pois não conseguia manter limpa a área de corte do Zé Cristo. 

Tanto bastou para que o Zé pousasse a foice e, pegando pelo atilho das calças elevasse o garoto bem alto, no cimo do longo braço e parecendo mostrar um troféu a toda a companha. 

Depois, pô-lo, cuidadosamente, no chão, tornou a pegar na foice e começaram a amontoar-se, atrás dele as gavelas ceifadas.

Sorrateiramente, como era seu hábito, o Ti’Chico, fez sinal ao Manel Carolo, em cujo grupo estava o Zé Cristo, e afastou-se da frente de corte, para que o Lopes e o Duque, camaradas que iam ao lado do rapaz, normalizassem a situação.

Uns minutos depois, fitou o Zé Cristo nos olhos – que nessa altura ficaram mais vesgos e baixos – e apenas disse: é a primeira e a última vez que, nesta companha, alguém falta ao respeito; se voltas a fazer alguma das tuas, racho-te!... 

Aqui, somos todos homens, e no que ao respeito diz respeito, até os moços o têm de ter. 

Este caso foi edificante. 

Muito ao modo como o Ti’Chico costumava actuar; batia pouco, mas, quando o fazia, era inexorável e altamente eficaz. 

No resto dos dias da companha não houve mais qualquer altercação. E voltaram todos mais amigos que quando partiram.

No fim da companha, o manajeiro reuniu os chefes de grupo e disse o que pensava fazer com as soldadas. 

Tudo esteve de acordo. 

O Ti’Chico dividiu a totalidade do dinheiro em 40 partes e atribuiu uma a cada um dos trinta oficiais. 

As dez que ficaram – as dos aprendizes –, eram para os cortes, cujas quantias iriam fazer os prémios para compensar o mérito de cada um. 

Nessa altura tomou a palavra e chamou o Zé Cristo, entregando-lhe uma maquia igual à dos camaradas, dizendo que mostrou corpo, disciplina e trabalho como os melhores, e que a justiça deve sempre ser praticada. 

Ninguém se opôs.

Foi a primeira vez, nas memórias das companhas, que um aprendiz foi promovido em pleno campo de trabalho. 

Pela justiça da decisão, o Ti’Chico “Manajeiro”, como sempre ficou conhecido e será lembrado, ainda hoje, é apontado como exemplo de capacidade de liderança e espírito de justiça.

Quanto ao Zé Cristo, aceitou as palavras sábias do “mestre” e não consta que alguma vez mais se tenha envolvido em desavenças.

domingo, 9 de junho de 2013

A ceifa no Alentejo

Ceifa no Alentejo - aguarela de 1917

O “monte” da Herdade do Castanho, situava-se numa pequena elevação dos terrenos a sul da Ribeira dos Tourões, que pertenciam ao Senhor Lavrador, numa extensão de mais de catorze léguas, segundo as palavras do capataz.

O Ti’Chico “Manajeiro” conhecia a chapada que, partindo da ribeira, subia até ao “monte”. Uma extensão de mil metros, por uns oitocentos de largura, cobertos de “pão”, que havia de ser calcorreada, centímetro a centímetro, pelos homens da companha que acabava de chegar.

Havia uma pequena “folha” de cevada e o resto era um extenso trigal, bem apresentado e que, graças a Deus, não tinha acamado. 

Podiam contar-se, pelos dedos, da mão, os sobreiros e azinheiras, ou outras árvores, que pudessem dar sombra, ou ajudar a diminuir a secura daqueles campos, cobertos de “pão”.

Embora a inclinação não fosse grande, a chapada era ligeiramente inclinada e avesseira pelo que tinha que ser muito bem definido o sentido do corte; a descer, o trabalho é mais cansativo e menos rendoso e de través, o equilíbrio dificulta o bom andamento. Se possível, também a direcção do sol deve ficar pela esquerda dos ceifeiros – pormenores importantes, que os manajeiros aprenderam, com a vida -.

A ribeira, sem água corrente, apenas tem um ou outro pego que servirá para tomar banho nalguns fins de dia, o que, aliás, foi motivo de grandes recomendações por parte do manajeiro. 

Há que não ir sozinho, nunca depois de comer e evitar sítios escondidos ou isolados. 

Todavia, naquele ano, não seria grande o perigo, dada a escassez de água, mesmo nos pegos. 

Eram agradáveis, sim, os tufos de juncos e os salgueiros e freixos que rodeavam o talvegue. 

Alguns traziam, ramos e junco para o acampamento, ou para espalhar pela malhada, a servir de colchão.

No chavascal que ladeava a chapada, pelo sul, havia todo um emaranhado de silvas, tojos e arbustos – sinais evidentes de que por baixo andam águas –. 

Ali se acoitavam diversos tipos de pássaros, zelando pelos ninhos mais serôdios, ou pelos filhotes mais atrasados e também lá tomavam refúgio os predadores, a caça e outros pequenos animais que fazem das searas a sua despensa – ratos, coelhos, musaranhos, ouriços, répteis, etc. –.

Depois da primeira noite na malhada, ou sob a copa de um sobreiro, ao romper da madrugada, começaram as movimentações: idas e vindas para a latrina, para os tanques onde se lavava a cara e mais o que se quisesse e para a malhada, onde se arrumavam os parcos pertences de cada um, de modo que, antes que a estrela boieira se afundasse no horizonte, todos tivessem engolido as sopas de café e estivessem junto do manajeiro, para seguirem até ao corte.

Um pintor teria feito ali um magnífico quadro: o manajeiro, à frente, seguido dos ganhões e dos moços; uns e outros com os chapéus de palha de abas largas, na cabeça, camisas abertas e foices em punho e, na mão esquerda, as dedeiras de cana. 

Os rostos de alguns, ainda leitosos, iam, em poucos dias, tisnar-se e tomar um bronze natural.

O Ti’Chico olhou em redor e, como incentivo curto, mas muito a propósito, disse apenas: Vamos ao trabalho, com a graça de Deus!... Força, rapazes!... E benzeu-se.

Os mais velhos, conhecedores, de ginjeira, daquelas andanças, seguiam calados; os mais novatos e os debutantes, satisfaziam a sua curiosidade, não sabendo bem o que os esperava e extasiando-se com tanto pão junto – cenários novos e que jamais tinham imaginado –.

Já no fundo da chapada, junto à ribeira, o Ti’Chico “Manajeiro” chamou os das pontas de corte – o Chico Coxo e o Zé Taliscas – e mandou-os tomar posições, distantes um do outro, cento e cinquenta passos – seria essa a largura de corte –. 

Entre eles distribuíram-se os restantes camaradas e moços, mantendo-se os grupos que tinham sido formados no dia anterior.

Cada chefe de grupo sabia, perfeitamente, o que tinha que fazer, para que a frente de corte se mantivesse sempre em linha e os trabalhos seguissem a bom ritmo. 

Era aqui que entravam as ajudas e compensações e é nesta tarefa que o trabalho do manajeiro é fundamental; incentivando os mais atrapalhados e coordenando os mais ousados, de modo que o grupo se mova sempre como uma mola, projectando-se de trás para diante.

O Ti’Chico, direito no meio da linha, mandou o Manel Carolo levantar a mão esquerda para que todos vissem as “dentadas da foice” nas dedeiras. 

A seguir, levantou os olhos ao céu e benzeu-se, exclamando: avante camaradas!...

Todos se curvaram e não tardou que começassem a ver-se, no restolho, os molhos de trigo. 

Logo a seguir os moços foram ensinados, pelo manajeiro, a formar os rolheiros, pondo os molhos na forma mais correcta: o “pão” é posto com a troça para fora, formando um círculo, com as espigas para o meio. 

Os rolheiros tem a largura aproximada de metro e meio e os molhos de cada camada são colocados, alternadamente, para que fiquem travados e o mais justo possível, de forma a evitar entrada de roedores e más influências de ventos, chuvas e orvalhadas. 

Um rolheiro deve ter a altura máxima do peito de um homem. 

Quando os rebanhos vierem ao rabisco, ou as varas de porcos se espalharem no restolho, o zagal tem de estar seguro que não farão mossa, nos rolheiros de trigo.

Pelas dez e meia da manhã – segundo a mediana do Ti’Chico – chega o manteeiro e os moços aguadeiros, para distribuírem um quarto de pão de trigo e um bom naco de queijo, ou um pedaço de toucinho, segundo o gosto e preferência de cada um, e darem os corchos de água que cada camarada quiser. 

Aproveita-se para enrolar um paivante e, uma meia hora depois do “alto”, comida a bucha e saciada a sede, é dada a voz de “ao trabalho, camaradas!...” e todos pegam na foice e retomam a labuta.

Com o sol a pino – meio-dia solar, que os ganhões mais experimentados calculam pelo tamanho da própria sombra – é altura de jantar. 

O manajeiro dá “alto ao trabalho” e todos param, colocando a foice no chão e tirando as dedeiras. 

Juntam-se ao chefe e seguem-no até à malhada, onde os espera o gaspacho, o cozido de grão, o ensopado de borrego, o guisado, os feijões cozidos ou guisados com algum tempero, conforme os dias da semana. 

Ao lado do caldeiro da comida está um cesto de pão, cozido ainda há pouco e suficiente para que todos comam, à vontade.

Oito grupos de homens, cercando outros tantos barranhões, e cada um com a sua própria “ferramenta”, constituída por colher, garfo e navalha, saciam a fome e sede – uma das galas do Senhor Lavrador da Herdade do Castanho é que todos comam até querer –. 

Todavia, uma das maiores bênçãos do jantar é a sombra da malhada e as duas horas de sesta que se lhe seguem. 

Lá mais para diante é, também, a altura desejada nas companhas: a entrega do correio.

Finda a sesta, ouve-se o grito de “ao trabalho” e todos se juntam para, atrás do manajeiro, se dirigirem ao corte e retomarem a tarefa que os espera. 

O ritual repete-se todos os dias, durante a ceifa.

Quando a sombra começa a alongar-se – por volta das cinco horas – é dado o “alto para a merenda” e repete-se, sem grandes cambiantes, o que se passou ao almoço. 

Daí até ao fim do dia de trabalho, vai o sol cair no horizonte e uma meia hora depois de desaparecido o astro-rei é dado o “alto ao trabalho”.

Regressados à malhada, espera-se pela ceia, que será em tudo semelhante ao jantar, e pelas nove horas da noite, os chefes de grupo certificam-se de que tudo está em ordem e faz-se silêncio e escuridão, para que todos possam repousar.

O Ti’Chico, reza as suas orações e recolhe-se ao seu reservado.