segunda-feira, 20 de outubro de 2008

O terreiro dos ladrões

Atrás da Portela da Casinha, no cimo da chapada dos Brejos, meia encosta do Cabeço Barreiro e não longe da vereda que dá para os cimos da Horta de Casa, ergue-se um palanque natural de terra lisa, onde ainda hoje se pode ver a delimitação, de pedras, que cerca a zona plana.

Diziam os mais antigos que aquele lugar era como que um sítio excomungado, onde se refugiavam os ladrões e outros malfeitores, uma vez que chegados ali, ninguém lhes podia fazer mal.

Melhor dizendo, ninguém se atrevia a entrar naquele recinto em perseguição de alguém, embora todos ignorassem o que poderia acontecer a quem violasse tal preceito e desconhecessem alguém que a tal se tivesse aventurado.

Dizia-se que um senhor de grandes posses que outrora habitara na região se sentava naquele pequeno planalto a contemplar as suas terras que se estendiam para além do vasto horizonte dali desfrutado.

Ali construiu uma casa senhorial, ainda que bem camuflada, onde praticava toda a espécie de desmandos sobre as gentes locais, incluindo um recinto com grande número de concubinas e malfeitores às suas ordens.

Dizia-se, também, que a casa do demo, como entre dentes lhe chamavam, estava toda coberta por uma árvore – um enorme castanheiro – que a ocultava completamente de quem dela se acercasse e permitia aos vigias, colocados nos mais altos ramos, ver quem se aproximasse e defender o local.

Dizia-se, ainda, que num dia de S. Bartolomeu – quando, segundo a voz do povo, o Diabo anda uma hora à solta, com liberdade para fazer o que quiser –, um antepassado do malvado que habitava a casa, teve o próprio Demo ali hospedado e fez com ele tratos de malfeitorias para o futuro.

Por isso se dizia que o local se chamava terreiro de S. Bartolomeu e a casa, mansão do Demónio.

Aos cumes da serra que fazia ângulo com o Cabeço Barreiro, para nascente, assomavam muitos populares de terras vizinhas e chegou mesmo a ser estabelecido um posto de vigia sobre a mansão do Demónio, para ver se afrouxavam as guardas e podiam descer e cultivar as terras soalheiras e férteis do sopé do monte.

De entre os frequentadores começou a insinuar-se um sujeito corpulento, portador de fama de bom lutador e ardiloso caçador; no jogo do pau nunca havia sido vencido e no corpo a corpo ninguém, alguma vez, lhe pusera cuspinho no nariz.

Aos poucos foi sendo empurrado para chefiar uma investida contra a casa do mal e a liquidação do poder do dono.

Era, ainda, preciso libertar os serviçais que ali viviam em regime de escravatura e tomando posse das terras, muita gente viria a lucrar.

Aos poucos o “serra” – assim se denominava, por alcunha, é claro, o chefe dos grupos – foi organizando e treinando o esquema que preparou para tomar a casa.

Estabeleceu, para o ataque, um dia quente e seco de verão e como base da acção, doze pontos em redor da casa.

Em cada um dos locais, preparou materiais e gente para, ao seu sinal, lançarem um violento incêndio, na direcção da casa.

Muitos outros, de reserva, juntaram-se com todo o tipo de varapaus e lanças, para, a coberto do fogo, irem tomando a terra queimada e, também, tratarem os que tentassem fugir da casa e seus domínios.

Ainda que o “serra” não quisesse violência gratuita apoiava todo o tipo de limpeza, para evitar surpresas.

Foram libertados muitos trabalhadores e concubinas e do velho e imponente castanheiro restaram apenas cinzas.

Uma imagem que foi posta a recato das chamas por alguns dos populares que ao verem chegar o lume se juntaram aos invasores, foi colocada no local onde viria a ser o centro do casal e da nova povoação a que, por unanimidade, deram o nome de Serra.

À imagem começaram a chamar Senhor dos Aflitos, o padroeiro da terra.

Ardeu tudo e não foi deixada pedra sobre pedra. Porém, nunca se encontrou, nem vivo nem morto, o senhor da casa.

Durante muitos anos foi procurado e nunca apareceu; diga-se que, também em vida, nunca ninguém afirmou tê-lo visto.

Os que trabalhavam na casa, ou para a casa, diziam que havia feitores, chefes de trabalhos e grupos, visitas desconhecidas, mas, senhor, senhor, nunca viram.

As concubinas eram usadas não sabendo por quem, ou de olhos vendados, ou às escuras e nenhuma reconheceu os indivíduos apanhados.

Ao local da casa foi atribuída a excomunhão e declarado baldio e local de apoio e refúgio de perseguidos.

O “serra” foi generoso com os que mais o ajudaram e aos poucos nasceu a povoação que ainda hoje tem o seu nome e continua a ser uma das aldeias mais aprazíveis da região sul da Beira Baixa.

Cremos que já ninguém espera o senhor da mansão e poucos aceitarão ser esta a origem da sua terra.

A lenda não será mais que uma história de gente simples...