sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O machacaz

Desde que me conheço que ajudo mulheres a parir, gritava a ti’Maria Rita lá do quarto dos fundos, mas esta está a dar-me água pela barba.

Tragam-me mais uma panela de água quente e umas toalhas para ver se a criança dá a volta completa e se se põe a jeito de vir cá para fora.

Enquanto berrava para as ajudantes que, atarantadas e tolhidas de medo, viam a velhota dar palmadas nas “nalgas” da Dionísia que se debatia com o nascimento do seu primeiro filho, a comadre ia aconchegando o ventre da parturiente, atenta a todos os movimentos da criança que parecia estar a orientar-se para a chegada a este mundo.

Abram o raio dessa janela que nos falta o ar aqui dentro.

E tu mulher, enche-te de coragem e morde, com quanta força puderes, essa toalha que tens na boca.

Vai custar mais um bocado, mas nunca nenhum me ficou lá dentro e vais ver a prenda que já começou a mostrar-me a cabeça.

São mais uns dez minutos; vais ver que mais ou menos ao meio-dia vai berrar aí que nem um desalmado; já que pela configuração e tamanho do que já posso ver me arrisco a dizer que é macho.

E assim foi: ainda o relógio não acabara de bater as doze badaladas e já um rapagão berrava com todas as forças, nas mãos da velhota que começava a limpá-lo e se preparava para tratar-lhe do cordão e colocá-lo, na cama, ao lado da mãe.

Parabéns rapariga, tens aqui um belo rapaz.

Mas olha que o machacaz deu-nos bem que fazer: a ti e a mim, que desde que me recordo foi dos mais difíceis. Estava lá bem, o finório. Não lhe faltava nada e sair de lá não parecia agradar-lhe, mas já acabou.

Chico cresceu, avantajado de corpo, meio desajeitado e, aos sete anos, quando entrou na escola, as carteiras da frente, destinadas aos da primeira classe, eram-lhe pequenas.

A Professora mandou sentá-lo na terceira fila e, mesmo assim, ainda era escasso o espaço para as pernas do rapaz.

Com os ombros largos, os braços passando-lhe um pouco abaixo dos joelhos, umas mãos grandes e a cabeça, meio disforme, mas grande e bem coberta de cabelos pretos, o Chico conseguiu fazer o exame da terceira classe, a custo.

Depois começou a guardar as cabras e ovelhas e a ajudar os pais nas lides do campo.

As tentativas de aprender as artes de carpinteiro e pedreiro, não resultaram.

Homem de poucas falas e olhar esquivo, tinha aversão às botas e raramente apertava todos os botões de calças e camisas.

Apurado de instintos, cuidava do que era seu e com a fisga nas mãos, armando costelas e boízes, no tempo delas, ou mesmo à unha, nunca se lhe acabava, em casa, caça, peixes e outros petiscos.

Saía sozinho, a todas as horas do dia e da noite, nunca mostrara medo, fosse do que fosse, e era encontrado onde menos se esperava.

Tinha um tratamento muito familiar com toda a bicharada e se pressentia alguém, no seu caminho, desviava-se para evitar encontros e conversas de que era pouco amigo.

Alguém reparou na expressão da comadre Maria Rita, ao dizer para a Dionísia que o “machacaz” lhes deu bem que fazer e, como nada cai em saco roto, foi-se generalizando a alcunha e quando o rapaz foi às sortes era, para todos, o “Machacaz”.

Ficou livre do serviço.

Um corpanzil daqueles, podia e devia alombar a servir a pátria. Mas, assim não acharam os entendidos e o Chico nada se incomodou, como se não incomodaria se o mandassem ir para algum lado.

Até aí catrapiscava a garota do ti’Cambado, do mesmo ano que ele, magricela, de poucas cores e olhitos azulados, herdados da mãe, que não resistiu ao parto e deixou órfã e viúvo lá na casa da ladeira, onde sempre viveram, só os dois.

A dispensa da tropa veio apressar as coisas e notaram, os mais observadores, que o Machacaz, à medida que se aproximava o casamento, ia mais pela taberna, chegava-se mais às conversas e tomava muita atenção a tudo o que dissesse respeito a relações entre homens e mulheres.

Começou a frequentar mais a missa dos domingos, tratou de tudo e ajudou na construção da casa nova, ao lado dos cómodos da ladeira.

A boda foi discreta e muito farta e, apesar do espírito reservado do Machacaz, todos ficaram admirados com a maneira como tratou todos os convidados e a forma como parecia outro homem.

Vieram três filhos, nos três primeiros anos e, depois, voltou a ser o mesmo Machacaz de sempre; sorumbático, esquivo e isolado.

Algum tempo depois começou a frequentar assiduamente a taberna, a beber até cair e a falar consigo próprio.

Os mais chegados metiam-se com ele. Porém, além de reagir mal, começou a mostrar sinais de agressividade e falta de tolerância, nas brincadeiras.

Um dia, ao ouvir as prosas do Longueiras, saiu abruptamente da taberna, dirigindo-se a casa, com passada aberta e rápida e, entrando no quarto, sorrateiramente, viu, nos fundos da cama, por baixo da coberta, os vultos de quatro pés.

Saiu, caminhou rapidamente até à taberna, onde bebeu, de enfiada, dois ou três copos de vinho.

De repente e inopinadamente, enfrentou os presentes e exclamou:
Estão lá quatro pés, sim senhor, mas dois são do Machacaz!...

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

O “Jerolminho”

A calma e quietude do Monte dos Ciprestes foram agitadas por um burburinho e estranho corrupio das três, ou quatro, mulheres que, nessa meia tarde, por ali estavam.

Quando viram o ganhão, que cuidava dos porcos, sair do celeiro, com qualquer coisa embrulhada numa saca, chamando pelo Ti’Chico, em altos gritos, e entrando na casa do capataz Manel Canhoto, gerou-se uma autêntica roda-viva.

As mulheres não pararam mais e, cada uma por seu lado, haviam de dar fé de tudo o que se passasse.

E foi assim que todos presenciaram o estranho achado do porqueiro.

A chorar, a bons pulmões, estava ali, nuzinho como nascera pouco tempo antes, um menino, abrindo a boquita e movendo a cabeça, procurando teta para mamar.

Olharam uns para os outros e foi a Zefa que saíu em passo apertado, na direcção da casa do maioral, chamando pela Amélia que tinha uma criança de leite e podia, por isso, valer ao anjinho que dava sinais de fome e frio.

Veio também a Ti’Rita Ramalheta, comadre de serviço nos partos lá do Monte.

Tratou da criança, lavando-a, verificando o aperto do baraço que apertava o cordão do umbigo e vestindo-lhe o casaquito que a Amélia acabava de trazer. Embrulhou o anjinho no xaile, que trazia nos ombros e deu-o à Amélia para que lhe desse o peito.

Veio, finalmente, o sossego; logo interrompido pelas perguntas do Ti’Manel Canhoto que, olhando em redor, encarou o ganhão dos porcos e quis saber as circunstâncias de tão estranho achado.

Muito simples, Ti’Manel; ouvi chorar lá para os fundos do celeiro e quando cheguei ao pé do monte das sacas de fava, vi esta encomendinha e trouxe-a.

Ainda olhei à volta, espreitei para todos os lados, escutei, perguntei se estava alguém e, nada.

E, algum dos presentes conhece o dono, ou dona, destes trapos que embrulham a criança? Perguntou, ainda, o Ti’Manel.

Porém, ninguém se acusou e, já na presença da mulher, Ti’Florinda, foram todos mandados para o que estavam a fazer, ficando a criança aos cuidados do capataz e da Amélia, que lhe daria mama.

Pelo fim da tarde, veio o senhor feitor, que se deslocara à vila, tratar de negócios.

Ao ser posto ao corrente do sucedido, chamou a sua casa o capataz e o ganhão e perguntou se sabiam quem poderia ser o pai, ou mãe da criança, ou se faziam alguma ideia por onde haviam de tentar descobrir.

Os dois disseram não saber de nada.

O feitor mandou-os em paz e recomendou ao ganhão que dissesse à sua Florinda que tratasse bem do achado. Quanto à criança, depois de consultar as autoridades, havia de se lhe dar um destino. Queria tudo bem legal e havia, primeiro, que descobrir quem abandonava assim um inocentezinho.

O Feitor deu voltas à cabeça e não chegou a qualquer conclusão.

Fez perguntas a todos e, inclusivamente, ofereceu e mandou oferecer, uma choruda recompensa a quem fosse capaz de indicar pai, ou mãe, que tivessem abandonado o infeliz.

Deu garantias de perdão a quem se acusasse e confessasse o seu acto, mas, nada.

Por sua conta, o feitor seguiu várias pistas: Os ciganos que por ali acamparam, uns pares de semanas, desapareceram naquela manhã. Porém nenhuma cigana foi vista de barriga e as feições do menino não apontavam nesse sentido.

A notícia da recompensa prometida pelo feitor, foi espalhada pelos ciganos e nunca ninguém foi reclamar nada.

Uma mulher, desconhecida nas redondezas, com uma barriga suspeita, mas não aparentando gravidez, foi vista perto do Monte e desapareceu, dois dias antes.

Veio notícia de outro Monte próximo que essa mulher, procurou trabalho e foi aceite lá.

Uma pastora, de meia-idade, que andou metida com o Chico das cabras, parecia mais gorda nos últimos tempos que por ali andou. Despediu-se e desapareceu.

Havia uns quinze dias que ninguém dera fé dela e o próprio Chico, apertado pelo feitor, não se desmanchou e jurou que ela tinha ido com um ambulante da feira.

E, que soubesse, não estava prenha, nem nunca estivera, depois que a conhecera.

Das mulheres do Monte, nenhuma apresentava barriga que justificasse parir, ou estar de esperanças, pelo que o Feitor, senhor Jerónimo, olhando a mulher, Emília do Ó, bem nos olhos, disse-lhe, ao serão:

Parece-me que não se vai desfazer o mistério; ninguém sabe nada, ou se sabe não quere dizer, porque se alguém soubesse e quisesse, já teria vindo reclamar os quinze contos de réis que prometi a quem desfaça a meada.

Mas o infeliz, não há-de crescer sem pai e mãe e temos aqui ocasião de aceitar do Destino o que a Natureza nunca nos quis dar. Se estiveres de acordo…

Oh! Homem, mas eu não penso noutra coisa desde que foi encontrada a criança. Até já fiz promessas se não se descobrir quem abandonou o menino. É claro que será “Jerolme”, como o pai e terá a mãe Emília do Ó.

Fala às autoridades e mete o dr. Angelino a mexer já os papéis para que tudo seja legal.

Terá de ser baptizado quanto antes, não vá o diabo tecê-las.

A conselho do dr. Angelino, foi feito o registo do menino a quem foi dado o nome de Jerónimo do Ó Ventinhas Pé-Curto.

Quanto ao local e data do nascimento, bem como filiação, o feitor deixou tudo aos cuidados do Advogado e Conservador, para que o menino passasse a ser, oficialmente, seu filho e da sua mulher Emília.

E assim foi feito, em meados de Maio de trinta e dois, no Registo de Portel.

O “Jerolme” do Ó, cresceu, fez-se uma criança forte e saudável, distinguiu-se na escola como um dos melhores alunos do prof. Américo, aprendeu a andar a cavalo ainda menino e, querido de todos no Monde dos Ciprestes, já rapazote e depois estudante de Veterinária, em Lisboa, nunca deixou de passar férias no Monte.

Conhecia todos os trabalhadores e nunca deixava de salvar, quando era saudado.

Acabou por casar com a herdeira do Monte dos Ciprestes e sempre ali teve casa, mesmo depois de ter de mandar os cinco filhos, com a mãe, para Lisboa, onde podiam continuar os estudos.

Durante toda a vida, o Chico das cabras nunca deixou faltar em casa do senhor feitor, os bons cabritos, os melhores queijos e o melhor leite das redondezas, como ele não se cansava de dizer.

Várias vezes acompanhou o sr. dr. Veterinário nas vacinações do gado e seguiu, sempre, com orgulho e comoção as cavalgadas e torneios em que participava o menino Jerolminho, depois sr. doutor.

Até que um dia…chegou a notícia de que nos fundos do figueiral, nos confins da herdade de baixo, o Chico das cabras se pendurara numa corda.

O senhor feitor, sentiu um baque no coração e, já de avançada idade, pediu que o levassem ao local, pois queria ver e analisar o ocorrido, antes de avisar o dr. Jerónimo, já médico veterinário, pai dos seus netos e dono das herdades do Monte dos Ciprestes.

Mandou parar a charrete e apeou-se, junto do enforcado.

Abriu-lhe uma das mãos e retirou um papel pardo, enrolado, que meteu no bolso do colete.

Reparou que a outra mão do morto apontava para o chão, onde pôde observar os contornos de uma campa.

Baixou a cabeça, respeitosamente, e mandou que depois de seguidos os preceitos legais, uma vez que o Chico não podia ser enterrado em terra benzida, do cemitério, por ter posto fim à vida, devia ser enterrado ali, debaixo daquela figueira.

Depois, já em casa, leu o papel que alguém escreveu ao Chico das cabras:

Agradeço ao senhor “Jerolme” e sua defunta mulher, tudo o que fizeram pelo nosso menino; meu, porque o fiz e vosso porque o criaram, estimaram como filho e fizeram homem.

Peço perdão pelas juras falsas que lhe fiz quando me perguntou se sabia alguma coisa sobre a pastora dos patos – a mãe do nosso menino - que morreu ao parir e está enterrada aqui debaixo desta figueira.

O último favor é que me mande enterrar aqui junto da pastora e nunca revele ao nosso menino quem foram os pais que o geraram.

Ele, um dia há-de encontrar-nos para nos perdoar.