Cabisbaixo, mãos nos bolsos, blasfemando contra o burrico que, ajoujado sob os taleigos, pedia licença a uma pata para mover a outra, o ti Luís assomou-se ao povoado, antes do nascer do sol.
No seu ar de homem já muito gasto pelos anos, caminhava a passo lento, cogitando com os seus botões.
A mulher tinha-lhe falado no namoro da filha mais velha – a Conceição – com um filhote da Serra, de nome Apolinário, sobrinho do freguês do ‘Casal’, ti José Lourinho, que era também tutor do rapaz, já órfão de pai e mãe.
Dormiu umas noites sobre o caso e ali estava ele, disposto a falar com o tio do rapaz, sobre um dos assuntos mais sérios da sua vida – o casamento de uma das filhas.
Tinha de estar prevenido, pois o rapaz já fizera saber que em breve iria lá a casa pedir a Conceição.
Chegado à porta da igreja, junto da casa do ti José Lourinho, prendeu o burro à argola da parede, contra o seu hábito, e bateu à porta.
Veio o ti José Lourinho, em pessoa, e após uma breve salvação mútua, travaram o diálogo que, sem mais delongas e comentários, passo a transcrever:
Ti José Lourinho, conhecemo-nos há muitos anos e nunca nada de tão sério me trouxe à sua porta.
Com sua licença passo ao caso: tem o Ti José Lourinho, tal como eu, o empenho de querer para os nossos, o melhor.
Tenho duas filhas e um rapazote, todos ainda solteiros. Sem desconsideração, gente pobre, mas honrada e trabalhadora.
Vem tudo isto ao caso de que o seu sobrinho Apolinário parece que anda a namorar a minha Conceição. Não sei se é do seu conhecimento?!...
Passou-se-me qualquer coisa pelos ouvidos; mas como achei tão natural e normal, não fiz disso qualquer enredo.
Mas há-de compreender que eu sou pai e um pai sempre há-de querer o melhor para os seus. Trata-se da minha mais velha!...
Com certeza, Ti Luís, são bem feitas as suas observações e bem próprios os seus incómodos. Sempre se trata de uma filha.
É que ouvi dizer que o rapaz anda lá pela Guarda Republicana e que talvez pense levar-me a cachopa para a cidade. Compreenderá que isto incomoda qualquer um!...
Tem razão, Ti Luís, mas se for esse o bem deles, que havemos nós de fazer?
A vida somos nós que a traçamos e sempre custa ver assim partir uma filha, com quem ainda nem ao menos conhecemos. Sabe-se lá!..
O que pode saber, Ti Luís, é que o meu sobrinho, não desfazendo, é farinha do melhor saco; e disso percebe vomecê!...
Não haverá uma só voz contra o rapaz; teve a infelicidade de ficar sem mãe e sem pai, junto com os irmãos e essa será a sua maior desgraça.
De resto, trabalhador como os melhores, até ir para a tropa.
Uma vez lá, gostaram tanto dele que o apanharam para a Guarda. E aí está ele, a ajudar os irmãos e a família; Deus o abençoe!...
É que, Ti José Lourinho, rapazes na cidade, com tantas “anegaças”, não é de fiar-se a gente.
E sempre se trata da nossa filha, não é?..
Ti Luís, nesse aspecto nada sei sobre o meu sobrinho; agora que é homem direito, honrado e trabalhador, a quem nenhuma boca pode atirar nada de mau, é bastante para merecer a sua filha; estão um para o outro, com a graça de Deus e a nossa.
Mas seja sincero, Ti José Lourinho, acha mesmo que a minha Conceição vai bem servida?!
Acho isso e parece-me que isto merece um copo; vamos entrando compadre.
Parece-me que posso tratá-lo assim, não é verdade?!...
Nem sabe quanto me aliviou, compadre José Lourinho.
Deus há-de pôr-lhes a bênção e até vamos esperar que tudo lhes corra da melhor forma possível.
O diálogo mostrava, nesta altura, ares de voltar quase ao princípio.
O Ti Luís voltava a enumerar as justificações de se tratar de uma filha, de termos obrigação de querer o melhor para os nossos, etc.
A outra parte, o Ti José Lourinho, lá deitou mais um copito e conseguiu terminar o diálogo, dizendo ao compadre:
Agora que vai estar metido em despesas, é de fazer-se à vida. Mas olhe que a maquia dos taleigos não pode ser acrescentada...
O Ti Luís reagiu bem à graça e, voltando-se para o compadre, como que a recomeçar a conversa, rematou:
Olhe que já hoje me deu uma boa alegria...
Nem todos os dias se casa uma filha, compadre!...
Até mais ver!...
Até mais ver, compadre!...
Vá com Deus!...