domingo, 14 de setembro de 2008

Compadres

Cabisbaixo, mãos nos bolsos, blasfemando contra o burrico que, ajoujado sob os taleigos, pedia licença a uma pata para mover a outra, o ti Luís assomou-se ao povoado, antes do nascer do sol.

No seu ar de homem já muito gasto pelos anos, caminhava a passo lento, cogitando com os seus botões.

A mulher tinha-lhe falado no namoro da filha mais velha – a Conceição – com um filhote da Serra, de nome Apolinário, sobrinho do freguês do ‘Casal’, ti José Lourinho, que era também tutor do rapaz, já órfão de pai e mãe.

Dormiu umas noites sobre o caso e ali estava ele, disposto a falar com o tio do rapaz, sobre um dos assuntos mais sérios da sua vida – o casamento de uma das filhas.

Tinha de estar prevenido, pois o rapaz já fizera saber que em breve iria lá a casa pedir a Conceição.

Chegado à porta da igreja, junto da casa do ti José Lourinho, prendeu o burro à argola da parede, contra o seu hábito, e bateu à porta.

Veio o ti José Lourinho, em pessoa, e após uma breve salvação mútua, travaram o diálogo que, sem mais delongas e comentários, passo a transcrever:

Ti José Lourinho, conhecemo-nos há muitos anos e nunca nada de tão sério me trouxe à sua porta.

Com sua licença passo ao caso: tem o Ti José Lourinho, tal como eu, o empenho de querer para os nossos, o melhor.

Tenho duas filhas e um rapazote, todos ainda solteiros. Sem desconsideração, gente pobre, mas honrada e trabalhadora.

Vem tudo isto ao caso de que o seu sobrinho Apolinário parece que anda a namorar a minha Conceição. Não sei se é do seu conhecimento?!...

Passou-se-me qualquer coisa pelos ouvidos; mas como achei tão natural e normal, não fiz disso qualquer enredo.

Mas há-de compreender que eu sou pai e um pai sempre há-de querer o melhor para os seus. Trata-se da minha mais velha!...

Com certeza, Ti Luís, são bem feitas as suas observações e bem próprios os seus incómodos. Sempre se trata de uma filha.

É que ouvi dizer que o rapaz anda lá pela Guarda Republicana e que talvez pense levar-me a cachopa para a cidade. Compreenderá que isto incomoda qualquer um!...

Tem razão, Ti Luís, mas se for esse o bem deles, que havemos nós de fazer?

A vida somos nós que a traçamos e sempre custa ver assim partir uma filha, com quem ainda nem ao menos conhecemos. Sabe-se lá!..

O que pode saber, Ti Luís, é que o meu sobrinho, não desfazendo, é farinha do melhor saco; e disso percebe vomecê!...

Não haverá uma só voz contra o rapaz; teve a infelicidade de ficar sem mãe e sem pai, junto com os irmãos e essa será a sua maior desgraça.

De resto, trabalhador como os melhores, até ir para a tropa.

Uma vez lá, gostaram tanto dele que o apanharam para a Guarda. E aí está ele, a ajudar os irmãos e a família; Deus o abençoe!...

É que, Ti José Lourinho, rapazes na cidade, com tantas “anegaças”, não é de fiar-se a gente.

E sempre se trata da nossa filha, não é?..

Ti Luís, nesse aspecto nada sei sobre o meu sobrinho; agora que é homem direito, honrado e trabalhador, a quem nenhuma boca pode atirar nada de mau, é bastante para merecer a sua filha; estão um para o outro, com a graça de Deus e a nossa.

Mas seja sincero, Ti José Lourinho, acha mesmo que a minha Conceição vai bem servida?!

Acho isso e parece-me que isto merece um copo; vamos entrando compadre.

Parece-me que posso tratá-lo assim, não é verdade?!...

Nem sabe quanto me aliviou, compadre José Lourinho.

Deus há-de pôr-lhes a bênção e até vamos esperar que tudo lhes corra da melhor forma possível.

O diálogo mostrava, nesta altura, ares de voltar quase ao princípio.

O Ti Luís voltava a enumerar as justificações de se tratar de uma filha, de termos obrigação de querer o melhor para os nossos, etc.

A outra parte, o Ti José Lourinho, lá deitou mais um copito e conseguiu terminar o diálogo, dizendo ao compadre:

Agora que vai estar metido em despesas, é de fazer-se à vida. Mas olhe que a maquia dos taleigos não pode ser acrescentada...

O Ti Luís reagiu bem à graça e, voltando-se para o compadre, como que a recomeçar a conversa, rematou:

Olhe que já hoje me deu uma boa alegria...

Nem todos os dias se casa uma filha, compadre!...

Até mais ver!...

Até mais ver, compadre!...

Vá com Deus!...