domingo, 30 de março de 2014

A maior “galga”


Já no fim do serão, quando as mentes já estavam menos lúcidas, costumava atacar o Augusto Brotas, que se resguardava enquanto os outros bebiam e tinha fama de sabedor.

Junto do balcão da taberna resistiam ainda os quatro da ordem: Chico Galhoso, Abílio da Chica, Bento e Tó da Marreca.

Vem de lá o Brotas e desafia cada um a contar a maior galga que já tivesse ouvido. 

O campeão ficava livre do pagamento de rodada e ele, Brotas, como juiz, também não pagava, naquela noite.

Começa o Tó da Marreca a dizer que já tinha estado numa herdade onde havia um poço tão fundo, tão fundo, que, só para chegar à água, foram precisos quinze rolos de corda, com cento e vinte metros cada rolo. 

E, depois, ainda outro tanto para se alcançar o fundo.

Quase em uníssono, exclamaram todos: aldra!... 

Porém, sem se desmanchar, o Tó acrescentou que o poço foi todo feito em areia e terra, sem se encontrar uma única pedra e a água era salgada, porque vinha direitinha do mar.

O Galhoso atirou, de repente: 

Andei a ceifar debaixo de um castanheiro, tão grande, tão grande, que num ano, carregou de castanhas um comboio, tão grande, tão grande, que o primeiro vagão estava a sair quando chegou o rancho da azeitona e o último ainda estava a carregar quando, ao fim de mês e meio, o rancho veio embora.

Parece-me que não viram grandes proezas, disse o Bento:

Estive, há dias, ao pé duma abóbora, tão grande, tão grande, que para conseguir vê-la toda, era preciso andar em roda dela. 

Chegou para fazer vianda para todos os porcos que nunca se lavaram no poço do Tó, porque a água era salgada, nem os que também o não fizeram para não deixar de carregar o comboio das castanhas. 

E para pesar a abóbora foram precisas mais de uma dúzia de balanças e quatro homens gastaram à roda de um mês, só para parti-la.

O Abílio da Chica falou, por último, para contar a última viagem que fez:

Vi um mar, tão grande, tão grande, que nem todos os peixes do mundo a beber dele, foram capazes de lhe baixar o nível, quanto mais secá-lo!...

Salta de lá o Brotas, sisudo e muito convencido, com a sentença: 

Temos aqui mentirosos de alta qualidade e todos muito sérios nas suas informações. 

O poço do Tó, o castanheiro do Galhoso e a abóbora do Bento, merecem respeito. 

Mas o mar do Abílio é soberbo!... Atão tantos peixes, a beber, desde que o mundo é mundo, e ainda o não secaram!?... 

Olha se se lembram de ir todos beber, no mesmo sítio e à mesma hora?!…

Aí o caso seria muito sério! Desconfio que a água chegasse para todos.

Parece-me que concordam que ganhou o Abílio e, venha de lá a rodada, antes que se acabe primeiro a água do mar do Abílio, que a zurrapa que o Ti’Manel nos deita nos copos. 

Mas antes, enquanto bebemos, oiçam lá esta, que vale a pena e é de borla:

Para a próxima, escusam de ir tão longe: Atão não temos aqui uma serra tão grande, tão grande, que até o sol lhe passa sempre à roda, com medo de lhe passar por cima? 

Atão, nunca tinham pensado porque puseram o nome de Serra aqui à nossa terra?...

Olharam uns para os outros, com cara de parvos e foram à deita que se fazia tarde. Mas não deixaram de pensar com os seus botões: 

O Brotas enrolou-nos bem e ainda vai ficar a rir-se, mas não há-de perder pela demora.

quarta-feira, 19 de março de 2014

A buraca do Tó





Depois de deixar as Pedrinhas Negras e antes da Passada, estendem-se os alqueives num e noutro lado da Cova do Pereiro.

Em anos bons, como dizia o Ti’João Abelha, crescia ali pastagem para sustentar meio cento de cabeças de gado, mas acrescentava, com alguma ironia: eu, com quase setenta anos, nunca vi um desses anos bons, lá naquele vale de cães. 

Terra do demónio que nem tem água boa para beber – se temos sede temos de ir ao outro lado, à represa do Cabeço Seixo.

O meu avô andou por lá a cavar e, se bem que a pedra não fosse muito dura de roer, nunca encontrou o que procurava – água. 

O meu pai tentou fazer lá uma charca para guardar as águas da chuva, mas o terreno é tão roto que nem as águas consegue segurar – trabalho em vão. 

Eu plantei uns bons centos de “calitros” – que os doutores chamam de eucaliptos, ou lá o que seja – e não vingaram mais de meio cento, que acabaram por crescer raquíticos, bons para canas de foguetes – foi dinheiro e trabalho deitados à rua.

Terra de lacraus e cobras é o que aquilo é. 

Segundo se conta há lá “abíboras”e parece que até uma, numa ocasião, lá terá mordido um homem, que acabou por ir desta para melhor – para mim foi para pior, pois nunca ninguém cá voltou para dizer que é melhor –. 

Os coelhos e as lebres são do piorio; magros que nem cães e não deixam escarapentar uma folha verde nas hortas em redor. Segundo dizem os caçadores, mesmo chumbados vão morrer longe, com o diabo que os leve.

Parece que as pedras lá do fundo – um amontoado de lajes, já com montes de terra e árvores por cima -, foram para lá levadas para fazer uma ponte; segundo os mais idosos, uma espécie de “alcaduto” que levaria as águas desde uma represa feita nas Pedrinhas Negras até aqueles campos que, com água, poderiam dar de comer a muita gente.

E ali, perto da Terra, seria um verdadeiro maná para tantos precisados de uma horta de mimos. 

Outros dizem que aquelas pedras são os restos de um cemitério que, muitos séculos atrás, teria servido a várias aldeias em redor. 

A verdade é que nunca ninguém se quis meter com aquilo e até o caminho foi mudado para a meia encosta, de modo a passar mais afastado daquele lugar. 

Até se diz que se escondem lá coisas esquisitas; eu não acredito nisso e acho que aquilo não passa de um cóio de bicharada de todo o tipo: gatos-bravos, raposas, texugos, ouriços e toda a espécie de cobras e lagartos. 

Lobos, não me parece que consigam lá entrar, senão também lá se iriam esconder.

Por baixo das lajes de cima, há várias camadas de pedras e por muita que fosse a água das chuvas, ao chegar ali era engolida e desaparecia. Nunca ninguém soube para onde, mas o ribeiro não engrossava com ela.

Eu tenho andado muito por ali e nunca vi vivo a entrar ou sair daquelas pedras; os cães do meu sobrinho têm seguido muita caça e ali, naquelas estevas, perdem-na como por encanto, para não mais a toscarem.

Contava o meu bisavô que, um belo dia, um pastor seguiu um coelho que se foi lá esconder. 

Viu, perfeitamente o buraco por onde ele entrou e esgueirou-se, atrás dele, para apanhá-lo. 

A entrada, entre duas grandes lajes, teria, e ainda tem, é claro, pouco mais de vinte centímetros, mas torce daqui, ajeita dali, e o rapaz lá conseguiu meter a cabeça. 

Pensando no que ouvia dizer: onde passa a cabeça, passar o resto do corpo, esgadanhou um bocado mas passou e achou-se dentro de uma espécie de salita, onde caberiam, bem, meia dúzia de homens. 

Não havia muita luz, mas o chão estava pejado de caganitas e bostas de todo o tipo e o cheiro era do piorio.

Aqui o bisavô metia um aparte: devia cheirar a Tabú, do espanhol, pois comparado com o bafio normal do pastor, seria verdadeiro perfume!...

O Tó Rola, assim se chamava o pastor, olhou para todos os lados, viu luz em várias pequenas frestas, esgravatou com um tanganho que ali apanhou, depois pôs-se à coca a ver se ouvia algum sinal de vida, nalguma direcção, e nada. 

Havia buracos para baixo, mas a sua coragem tinha-se acabado ali e agora era pensar em sair e mais nada. 

Como o buraco por onde tinha entrado era o maior, dirigiu-se para lá e, com as mãos à frente, tentou meter a cabeça.

A certa altura ouviu atrás de si ruídos e pensou que algum laparoto iria a entrar ou a sair. 

Porém havia que concentrar-se no buraco por onde teria de sair e teve a sensação que a fresta era agora muito mais estreita. 

Esgravatou no chão e doeram-lhe as mãos, pois era pedra rija a da soleira do buraco. 

Voltou-se de costas para melhor ajeitar a cabeça a qualquer buraquinho que existisse, mas nada, não encontrava lugar onde fosse capaz de enfiar a cabeça. 

Já suava e estava à rasca, com vossa licença, como dizia o meu bisavô. 

Lá por fora também não se ouvia vivalma e o sol ia caminhando para o Pontão. Quando lá chegasse era noite. 

A estas horas já o Tó Rola pensava em rezar, até que ouviu barulho lá em cima, no caminho e gritou com quanta força tinha: Acudam!... Acudam-me, que morro aqui! Acabou por calar-se, pois não apareceu ninguém.

A horas de recolher o gado, não apareceu o Tó e aí o Ti’Jaime Mendes, onde ele era criado, passou palavra que o pastor não tinha vindo com o gado e que já devia ter chegado, pois andaria por perto, ali na da Cova do Pereiro. 

Assobiaram lá nas Pedrinhas Negras e apareceu o “vadio”, cão que sempre acompanhava o Tó e que andava inquieto, agitando o rabo e batendo com a pata no chão – sinal de que estava a chamar, para que o seguissem. 

Quando chegaram às vistas da Cova do Pereiro viram o gado amodorrado junto do montinho dos pinheiros e nada do Tó. 

Mas o vadio agitava-se cada vez mais e a um assobio do Galhibano, veio a resposta do Tó, assobiando também. 

Foi só seguir o cão até à boca das pedras e já com uma lanterna começaram a incentivar o moço para que se esforçasse, pois se entrou sairia.

Mas…nada. Não havia maneiras. 

Dizia-lhe, de fora, o pai: Faz força, diabo! Mas tu entraste e tens de sair, demónio! A não ser que tenhas comido aí alguma coisa que te tenha enchido a barriga. 

Respondia o Tó: tenho a barriga colada às costas, desde o meio-dia que não como nada e já abaixei as calças três vezes, desde que aqui estou.

O Tó voltou a esgueirar-se, esticava as mãos e já eram dois a puxá-lo, mas nada. 

O Galhibano que tinha sempre de arranjar uma das dele, foi-se ao ribeiro e trouxe uma vergôntea de sabugueiro, tirou-lhe toda a rama, deixando só as folhas da ponta. 

Deixou a vara escondida na parte de trás das pedras e veio à boca da fresta conferenciar com o Tó: Bem, só vejo uma maneira de te fazer sair daí, tens de conseguir escorregar. Mas, o azeite da lanterna não chega!... 

Espera lá, tenho ali no bornal uma coisa que vai servir. E foi-se para trás das pedras. Pediu que se calassem todos e, calmamente, falou para o Tó: Tenho aqui uma cobra verdugo que apanhei esta tarde e gorda como um texugo. 

Vou metê-la por um destes buracos aqui de trás e só a largo quando tu aí a agarrares. Depois bates-lhe com a cabeça aí numa pedra e untas a saída com a banha da cobra…Hás-de sair!...

Não, não!... Berrava o Tó; Uma cobra não!...Não morro apertado nas pedras, mas o coração não vai aguentar-se. Pelas tuas alminha, uma cobra não!...

O Tó suava em bica e quando sentiu as folhas da vara de sabugueiro a subir-lhe pelas pernas acima e a chegar-lhe quase entre as pernas, deu um impulso e, não se sabe como, apareceu fora do buraco. 

Estava lá o Galhibano, muito aprumado, com a vara de sabugueiro na mão, qual lança de cavaleiro, que lhe disse, dando-lhe a vara: 

Guarda o verdugo, pois, com ele, podes safar outro de qualquer enrascadela.

Quando me contaram esta história ainda o local, que ninguém sabe o que esconde e só a outra História poderá desvendar, se chamava: 

A Buraca do Tó.

segunda-feira, 10 de março de 2014

O Galamas

(Homenagem ao meu amigo A. Venâncio, a quem ouvi muitas histórias sobre o Galamas, vividas lá em Setúbal)

Num beco dum recanto da Praça do Quevedo, quase paredes-meias com a passagem de nível, do centro da cidade de Setúbal, viveu toda a vida a Ti’Guilhermina, levantando e baixando bandeiras e fechando e abrindo cancelas, à passagem dos comboios.

Por companhia certa tinha o filho; acidentalmente o Galamas pernoitava também nas modestas instalações da guarda da CP. 

Nunca se casaram mas eram, de facto, como agora se diz, um casal. 

Tinham um moço – o Carlos –.

O Galamas vivia de expedientes: ia ao mar quando o chamavam, embarcava na campanha do bacalhau, fazia estiva no porto e, sem que ninguém soubesse dele, ausentava-se meses a fio, acabando por voltar, roto, faminto e bêbedo.

O moço, finório, aprendeu tudo o que as docas ensinam. 

Empurrado pela mãe, seguia os pescadores que transportavam as canastras do peixe para a lota e, com outros ganapos, disputava as "sarrdinhas" e "carrapaus" que iam caindo ao chão. 

Do que conseguiam apanhar dependia a fartura ou míngua que tinham em casa, para ir comendo.

O garoto foi crescendo ao Deus dará: criado sem pai e a mãe sempre dependente da passagem dos comboios. 

Vivia-se, por ali, em total desgoverno. 

A escola foi coisa que nunca o cativou, com bastante pena da professora: à parte uma voz fanhosa, tinha uma boa memória, escrevia com facilidade e na matemática era mesmo bom.

Ainda menino começou a fumar as beatas e a escorropichar os restos dos copos de vinho, na taberna do Ti’Ambrósio, duas ruas atrás da sua casa. 

O velho dava-lhe umas côdeas de pão, sopas de vinho, sardinhas assadas e, todos os dias, sopa fresca.

Em troca o moço fazia os recados e, sempre que podia, pedia à porta da igreja. 

Passava dias seguidos sem aparecer à mãe que nem o procurava.

Depois de uns anos desaparecido da cidade, em que entretanto morreu a Ti’Guilhermina, o Galamas, filho, apareceu, um dia, lá pelos casebres do Quevedo e por ali se foi demorando. 

Tábua aqui e acolá; mais chapa e porta remendada e, pelo menos, deixou de chover lá dentro. 

Embebedava-se todos os dias, na tasca do Ti’Ambrósio, e ouvia, os ralhetes do velhote com a maior das paciências deste mundo.

Um dia, o Ti’Ambrósio, chamou o Galamas e disse-lhe, com ar solene e como que fazendo-lhe o seu testamento: 

Olha homem, nem para ti és bom; podias ser, hoje, dono desta casa, mas nunca tiveste cabeça. Embebedas-te todos os dias e já nem te lembras que "ainda tens aqui vinte paus, no livro dos calotes".

Bem, Ti’Ambrósio, vamos lá a pôr os pontos nos is: 

O senhor tem sido, para mim, aquilo que realmente me parece que é, mas vamos esquecer isso!... 

Não é verdade que me embebedo todos os dias; como podia isso ser se nem tenho tempo de curtir a que apanhei já nem me lembro quando!... 

Quanto aos vinte paus que o senhor diz que tenho aí, esteja descansadinho que eu não me esqueci: "Quando precisar deles, venho cá buscá-los!..."

E, voltando costas, seguiu, rua abaixo, em direcção ao porto, para não mais ser visto em Setúbal. 

Até que, uns dez anos depois, morreu o velho taberneiro e corridos os trâmites legais, foi determinado o herdeiro do negócio, da casa e de outros bens móveis e imóveis do velho Ambrósio, como constava do testamento. 

Na impossibilidade de encontrar o beneficiário, foi feito um edital, afixado em Setúbal, nos lugares habituais, com o seguinte teor: 

Procura-se e convoca-se Carlos António Galamas, residente em parte incerta, perfilhado por Ambrósio de Matos Marcelino e por vontade do próprio designado seu herdeiro universal, a fim de tomar posse dos bens, que lhe foram deixados pelo pai adoptivo.







sábado, 1 de março de 2014

Vidas


Durante toda a semana, foi grande o alvoroço em casa do “Ti’Zé do Casal”. 

O pão não foi cozido à segunda-feira, como habitualmente, mas na quinta-feira e de trigo, em vez de milho.

Mataram-se algumas peças de criação: um galo e um chibito de leite. 

Lavaram-se, a preceito, dois garrafões e encheram-se do azeite da melhor talha, e, igualmente, duas garrafas de vinho abafado e outras tantas de mel, encomendado ao João Cuco, que era quem melhor e mais asseado conseguia apresentá-lo na terra.

Ao cair da noite, estava tudo arrumado em dois cestos de verga e uma pequena trouxa, com roupa. 

Restava deixar passar o tempo até chegar a hora de arrancar para Alferrarede e apanhar o comboio, com destino a Lisboa.

Mal rompia a manhã, foi o Ti’Zé pensar os animais. 

Depois, passou pela tapada, atrás da casa e baixou-se, na horta, para as necessidades. 

Em casa, pôs os dois cestos atados com um cordel, à guisa de alforges, sobre o ombro e, com a trouxa no braço, fez-se ao caminho.

Nas três horas que demoraria até à estação, quantos pensamentos, projectos, lamentações, rezas e, vá-se lá saber que mais, passariam pela cabeça do Ti’Zé. 

O que importava era poder ver, mais uma vez, uma das duas filhas, na casa dos quinze anitos e, ia para dois, internada no hospital de Dª Estefânia, em Lisboa. 

Lá nada lhe faltava, nem sequer educação, pensava o desvelado pai, uma vez que a prima Deolinda a ia visitar, regularmente, e não deixava que nada lhe faltasse. 

Se pudesse, tinha a certeza, até a saúde lhe levaria... 

Atravessou três ou quatro povoados, onde pouco mais que os cães davam pela sua passagem – não gostava de sair atrasado – e cruzou essas aldeias ainda alta madrugada. 

Pouco subira o sol no horizonte e já chegava à estação.

Comprou bilhete e sentou-se num banco, onde ainda esteve uma boa hora. 

Com a primeira etapa vencida, apanhou o comboio e num dos bancos da terceira classe, arrumou os cabazes e a trouxa por cima, e foi olhando para os campos, em redor do rio grande, onde manadas de cavalos e gado diverso, pastavam naquela manhã, ensolarada de fins de Março.

Pela altura do sol devia ser meio-dia, quando desceu na estação do Rossio, em Lisboa. 

Voltou a pôr os cabazes a tiracolo e a trouxa ao ombro e dirigiu-se para a saída, onde não foi difícil descobrir o filho da prima – o Rui –, que já o aguardava. 

Os cumprimentos da ordem, as recomendações da família, a pergunta pela saúde da menina e lá seguiram no eléctrico do Conde Barão, para casa da prima Deolinda.

Ao chegar, a prima acabava de voltar da venda que tinha na Praça da Ribeira Nova, de onde trouxera uma imponente cabeça de pescada que seria cozida, com batatas e hortaliça para o almoço. 

Cumprimentaram-se os primos todos e quanto à saúde da pequena Conceição, não eram boas as notícias, pois não tinham sido muito bons os resultados dos medicamentos aplicados. 

E olhe que do melhor e mais moderno que há, pode o primo ter a certeza!...

Oh! Prima Deolinda, nunca nos passaria pela cabeça que assim não fosse. Sabemos que se a saúde se comprasse, não eu, que não tenho posses para tal, mas a prima que gosta tanto da nossa menina, já teria resolvido tudo!...

...Mas Deus lá tem os seus destinos e que ao menos tudo seja por desconto dos nossos pecados. O que a prima tem feito nunca lho poderemos pagar.

Deixe lá primo. A menina está bem tratada, aprende muito bem a fazer costura e renda, gostam muito dela e até vão ter pena quando lhe derem alta. 

Ainda vão tentar mais uns medicamentos novos e outras coisas, mas só Deus pode salvá-la, ao que me dizem as médicas. 

Graças a Deus não sofre muito e é muito bem tratada, disso tenho a certeza absoluta – tenho lá as minhas recomendações.

Deus há-de lembrar-se de si e de tudo o que faz por aquela infeliz, que sem a prima já estaria morta ou, sem aquela perna... e, com uma lágrima ao canto do olho, acrescentou, com embargo na voz: 

Trouxe aí uma coisita que gostaria que fosse arrumada, pois já foi morta ontem.

Vamos já tratar disso. Depois almoçamos e vamos ao hospital; ela desconfia que neste fim-de-semana tem a melhor surpresa da vida – a sua visita, primo –.

Foi um tanto pesado o tempo do almoço e a viagem até ao hospital. 

Depois foi a própria garota que revelando todos os conhecimentos e boas-maneiras que adquirira já em Lisboa, animou o pai, contando-lhe coisas, perguntando pelas pessoas da terra e se queria ir até ao Jardim Zoológico, para lhe contar tudo, pois quando saísse do hospital haveriam de passar por lá.

As quase duas horas de visita foram penosas: imaginar a menina coxa no resto da vida, sem uma perna, sempre doente, sem os cuidados a que já se habituara, tudo diferente, tudo... que martírio, ter de pensar em tudo aquilo.

Vidas!...