sexta-feira, 20 de março de 2009

O ´´Sei-que-sei``

Naquele verão, em todo o Carvalhal, não vingava couve, ou outro mimo, que se visse.

Dos eucaliptos do Cortiço ao Chão de Burro, passando pelas bordas do Vale das Lebres, todo o Marco e Várzea da Bicha, até à Passada e Portela dos Carreiros, não havia horta que não fosse visitada por coelhos e lebres.

A canícula, a falta de folhas tenras e a abundância de criação daquele ano, eram propícias à maior praga de que havia memória por aquelas bandas.

Os espantalhos, sebes e caniçadas; as armadilhas, esperas e ferros; bem como a guarda nocturna nas barracas de colmo que davam à charneca um ar de acampamento primitivo, serviam apenas para afugentar ou dizimar uma pequeníssima parte da praga devoradora.

Junto à nossa vinha, que ocupava uma courela, desde o talvegue ressequido do que no Inverno era um ribeiro, até ao pinhal do Vale das Lebres, estendia-se, pelo lado do meio dia, a vinha e hortinha do tio Adriano Pereira, da Queixoperra.

Entre as videiras e o pousio da seara, uma tira de horta, em que verdejava o feijão verde, as nabiças, couves de repolho e sete semanas e dois regos de alfaces, cenouras e cheiros.

Tudo regado, dia-sim-dia-não, pela água de um poço de uns três a quatro metros, por meio de uma velha picota, que, por ser das poucas das redondezas, servia de pouso a corvos, gralhas e outra passarada.

O Jerónimo, filho mais velho do tio Adriano, andaria, ao tempo, na casa dos quarenta anos e era apoucado, principalmente quando lhe convinha.

Tinha, todavia, hábitos e costumes estranhos ao comum dos mortais: nunca apertava os atacadores das botas, o estado normal era bêbedo, nunca se calava e proferia todo o tipo de impropérios contra tudo e contra todos.

Não faltava a feiras e mercados, especialmente de Mação, onde o alvo predilecto das suas investidas eram os elementos da Guarda Nacional Republicana, que normalmente o arrecadavam umas horas, libertando-o com o sol ainda alto, com a bebedeira quase curtida e quando ainda tinha tempo para chegar, com dia, ao Carvalhal, à barraca da horta, onde pernoitava a maior parte dos dias.

Saía do posto da GNR e atravessava a vila até à taberna do Perdiz, ou à do tio Alexandre, onde, de companhia com o sobejamente conhecido Cabo Emídio, voltava a enfeitar-se, acabando por tomar a estrada até ao Coadouro, meter pelo atalho que deixava à esquerda Penhascoso, até ao tanque do Clarinha e, depois de descer a ladeira do Cortiço, seguia pelo caminhito do tio Lameira até ao seu destino – a barraca de colmo, na horta do Carvalhal –.

Durante todo o tempo não se calava, repetindo a cada quatro ou cinco palavras a expressão ´´eu-sei-que-sei``, quer tivesse alguém a ouvi-lo, quer falasse sozinho, estivesse no centro da praça de Mação, caminhando na estrada, ou na horta do Carvalhal.

Enquanto durasse a influência da pinga nunca se lhe acabavam as histórias, nem se esgotavam os alvos das suas críticas.

Gastava horas em solilóquio, no silêncio da noite, na barraca de colmo, investindo contra tudo e contra todos, repetindo regularmente o mote: ´´eu-sei-que-sei``.

Num desses monólogos, criticava tudo e todos, insurgia-se contra a nova moda das batidas às raposas, de que tanto se orgulhavam os caçadores da sua aldeia.

Dizia que já tinham o que mereciam, uma praga de lebres, coelhos e outros animais que acabavam por derreter tudo o que havia nas hortas.

Acabava, invariavelmente, acariciando a espingarda e dizendo que aquela nunca daria um tiro em batidas.

A mãe Natureza é sábia e anda muito bem regulada: os grandes comem os mais pequenos, que por sua vez se alimentam de outros menores; mas também esses grandes encontram outros maiores.

Sempre assim foi e há-de ser e quando o bicho homem se mete, só estraga… só estraga… e repetia, até à exaustão: só estraga!...

Assim como a Guarda que leva a gente preso até a vila ficar vazia.

Depois, não nos quer lá para nada e manda-nos embora… esquece-se que ainda estão abertas as tabernas.

Não ganha nada e só arranja mais inimigos… como eu e o cabo que pagamos o que não devemos e nunca havemos de ter as contas em dia com estes malandros que melhor faziam se fossem atrás dos ladrões e dos bandidos.

Andam atrás de quem lhes diz as verdades?!...

Não ganham nada.

A verdade é que na horta do ´´sei-que-sei`` não entravam as lebres nem os coelhos e eram bem apetitosos os mimos que lá verdejavam.

segunda-feira, 2 de março de 2009

O limoeiro dos Brejos

Aquela haste de limoeiro a que ainda restavam as duas folhitas do olho e um bocado da serapilheira que envolvia restos da terra que tinha acompanhado a raiz desde que, para aí um mês antes, aquela planta saíra dos viveiros de Santa Cita, andava aos tombos, na caixa da furgoneta do Ti’André.

Meu pai chegou-se ao vendedor das plantas e apreçou o limoeiro: Então e aquele limoeiro, ou restos dele, quanto me vai custar? Mas olhe que se não vingar, depois terá que substituí-lo por outro. Fica combinado!...

Olhe Ti’Amorim, essa árvore foi-me encomendada na Carregueira e quando o freguês a viu, desfez tanto nela que mais me apeteceu parti-la, ou deitá-la fora. Para aí tem andado aos tombos, o que até me não importa, pois nas seis laranjeiras que lhe vendi já ficou bem pago.

Assim como assim, leve lá o limoeiro e, na primeira vez que lhe comprar os limões dele, descontamos os trinta mil réis que me havia de dar. Agora só paga um copo e, não se atrase a plantá-lo, que tem aí uma boa planta.

Dizia-me, o meu pai:

E foi assim que uma das melhores árvores dos Brejos, cá veio parar. Cumpriu-se o trato, dos trinta mil réis, menos de um ano depois de ter plantado o limoeiro e, já soma contos de réis o valor dos limões vendidos ao Ti’André, para além de gastos de casa, à farta, e serventia de três ou quatro comadres que aí vêm buscar as precisões. É uma árvore soberba; dá fruta todo o ano, sempre sumarenta, mesmo no pino do Verão. Nunca cresceu muito, mas chega o porte que tem.

Sem nada a apoquentá-lo, no centro da horta de cima, a uns três metros da levada e um pouco menos da parede de suporte, pouco ou nada se semeava debaixo dele e não faltavam as regas, sobretudo nas épocas de maior canícula.

A pedra, junto do tronco, tanto era degrau para colher os limões, como me servia de banco, nas longas horas de repouso e de leituras. Li, ali, muitos livros.

Cheguei a ter um radiozito, de pilhas, pendurado numa pernada, para me acompanhar nas leituras, ou no simples lazer e desfrute da natureza, tão pródiga, ali, naqueles tempos.

Aprendi a conhecer o canto dos pássaros, adivinhar os voos dos melros, o bulício das felosas, nas balças das represas, o trinado dos rouxinóis, escondidos nos vimeiros da horta de baixo e cheguei a sentir as toupeiras que naquela sombra sempre humedecida, dali se aproximavam, por baixo dos camalhões, caçando os vermes de que se sustentavam.

À medida que a canícula apertava, mais fresca era a sombra do limoeiro e a água do tanque de cima continuava sempre bem temperada, naturalmente fresca e saborosa. Bebia duas ou três canecas, de folhas de couve, por dia, e via chegar e partir muitos visitantes que desciam do caminho, para ali se irem dessedentar.

Pegavam no caneco da resina, que estava sempre por ali, agitavam a superfície da represa, para afastar as impurezas, enxaguavam a vasilha e serviam-se à vontade.

Quase todos davam a salvação, à chegada, e deixavam uma despedida, à abalada.

Ajudavam-me a passar o tempo e, às vezes, alimentavam uma prosa que sempre gostei muito de ter com aquela gente simples, lá da Serra, ou com alguns forasteiros que também ali saciavam a sede e, às vezes, aproveitavam para levar uma laranjita, um cacho de uvas, dois ou três figos, ou até um limão para chupar, quando não viam ninguém, por perto.

Debaixo daquele limoeiro tive horas de conversa com o meu pai; ouvi muitas histórias do Ti’João do Cerro, nas suas horas de sesta, quando ali trabalhava numa das três minas que abriu na nossa propriedade. Falei com muitas outras pessoas que nem cheguei a saber quem eram, mas que me referenciavam, perfeitamente, como o filho do Ti’Amorim, ou o neto do Ti’ José Lourinho, que andava a estudar, coisa que, ao tempo, era raro, por aquelas terras.

As mais gratas recordações eram as conversas com meu pai, às vezes acompanhado pelo meu avô, quando subiam das hortas da borda da ribeira, para o jantar.

Ali se tratavam muitas coisas da família – desde os meus dez, ou doze anos, passei a ser consultado, regularmente, quando alguma decisão de família, se aproximava –.

Os estudos dos meus irmãos, os preços da resina, as contas do que havia a receber pelas bicas, o cálculo dos juros de alguns pequenos empréstimos, outros assuntos referentes a sementeiras, surribas, tratamento de culturas. Ceifas, malhas, matança dos porcos…

Sentia-me muito orgulhoso da confiança que sempre em mim depositaram e, muitas vezes me interroguei por que me era outorgado aquele estatuto de liderança.

Durante toda a minha vida sempre me senti em frente duma escada, medindo bem os degraus e acumulando força para subi-los, a pulso, paulatina mas seguramente, aproveitando todos os espaços livres para colocar o meu pé… até chegar ao topo, de onde nunca desviei o olhar.

E, graças a eles e a mim, estive na liderança, ou perto dela, na maior parte das situações da minha vida.

A todos os que me foram mais chegados, ou comigo trabalharam, sempre motivei para olharem para cima, com empenho, vontade, lealdade e dedicação: Dizia eu, nas inúmeras sessões de formação que dirigi e orientei, que sempre procuramos quem queira subir acima do degrau onde tem os pés.

Numa dessas voltas da vida, um dia, o fogo passou por lá.

Nessa altura, ainda que muito abandonado e maltratado, já o limoeiro dos brejos e eu andávamos afastados.

Porém, ao chegar junto dele, ou do que dele restava, vi que nem todas as folhas sucumbiram às chamas e, ainda pendiam alguns limões, esperando que eu os fosse ver.

Pela minha parte, acabou, não quero voltar ao pé dele, embora tenha sido um fiel seguidor dos seus ensinamentos e me tenha aproveitado, toda a vida, dos ensinamentos que caldeei na sua sombra.

Mas tenho o meu orgulho e não quero chorar lágrimas por um limoeiro!...