sábado, 15 de novembro de 2008

O Tonho das Inguias

O António Freixo, mais conhecido por Tonho das Inguias, era temente a Deus e cumpridor dos seus deveres de cristão.

Casado, pai e já avô, honrara sempre os seus compromissos e, ali onde o viam, era um caçador de se lhe tirar o chapéu. Não só pela sua boa pontaria, como pelo conhecimento dos sítios, hábitos e costumes da caça, em toda aquela faixa do cimo da Cova da Beira, já a puxar para a Guarda.

Um dia, regando um chão de batatas, na horta do Pedrógão, a caminho da Bendada, aproveitava para vigiar o vivo que tasquinhava no lameiro de cima, encostada ao baldio.

Era tempo de caça e tinha a espingarda encostada a um carvalho, à entrada da horta.

Naquele cair de tarde, tudo, em volta, era sossego e calma.

De repente, surgiu de trás de umas pedras um caçador, que depois de dar a salvação, disse ser de Quarta-Feira e ter chumbado uma perdiz, pouco depois de Dirão da Rua, na encosta da Sortelha.

Pela direcção que tomou era bem possível que tivesse vindo cair para aquelas bandas.

O Tonho gostava de chalaças, mas fazer-lhe o ninho atrás da orelha era coisa para que não estava pelos ajustes.

Era dos poucos casos em que reagia mal. Todavia, enchendo-se de calma, resolveu-se a gozar o pratinho e, o mais lentamente que pôde, disse:

Ora bem, vamos lá a ver!...

Atão vomecê diz que é de Quarta-feira e andava a caçar perto da Sortelha.

Do lado de lá, ou na encosta das Águas?...

E, sem esperar pela resposta, continuou:

E, na sua opinião, quantos chumbos e em que parte do corpo deu na avezinha?...

Não deve ter sido grave o ferimento para achar que poderia ter vindo até aqui!...

Quanto tempo demorou vomecê a chegar cá?... De duas a três horas, calculo!...

E cães não traz?... Ou cansaram-se da longa jornada e ficaram a descansar?!...

Ah!... Agora se me alembra que há aí uns três quartos de hora, pousou uma diaba além naquele barroco cimeiro e olhe que trazia tal velocidade que arrastou o pedregulho mais de cinco metros pela minha adentro.

Veja vomecê, uma coisa que está ali desde que o mundo é mundo!...

Ele sempre há coisas, amigo!...

Olhe, ou está para lá aninhada, ou morreu no embate, ou levantou outra vez e, Vale do Zêzere acima, já a estas horas passou de Valhelhas a caminho de Manteigas!...

Se arrancar já e for ligeirinho, estará lá antes de manhã!...

O caçador andou a rondar a pedra enorme que o Tonho lhe ensinara e, com nova salvação partiu dali, em direcção ao sol-posto, sem nunca mais ser visto.

O Tonho andou incomodado, pois não voltou a ver a criatura.

Como não desse por qualquer notícia de morte ou desaparecimento, acabou por ir-se desculpando, mas, na Quaresma, a consciência pesou-lhe e foi ao padre António, de Caria, confessar-se:

Estava arrependido de ter mandado para o desconhecido um caçador, que, embora mais mentiroso que ele, o obrigou a faltar à verdade.

É que, senhor padre, eu informei-o que a perdiz tinha empurrado o barroco maior, da minha do Pedrógão, uns cinco metros.

Na verdade o penedo só se deslocou um palmo, bem medido!...

O padre, fez-lhe o sinal da cruz sobre a cabeça e deu-lhe como penitência: agora, vais arranjar amigos e repor o barroco no sítio onde sempre esteve.

Se Deus o deixou ali não vamos ser nós a mudá-lo.

Se lá chegares e o barroco já estiver no lugar, descansa.