quinta-feira, 21 de maio de 2009

Os “travancas”

O “Ti Manel Balejo” descia da aldeia até às azenhas do Vale do Corisco a qualquer hora do dia, ou da noite, durante todo o ano.

Medo era palavra que nunca conhecera, segunda a sua própria expressão.

Pouco mais fazia do que moer o pão da aldeia e beber copos de vinho, nas tabernas.

Não tinha, nem nunca procurara, fregueses de fora da terra, e ainda repartia o serviço com três moleiros que vinham buscar os taleigos dos fregueses; farinha mais fina, para uns bolos, ou uns caldos, para as filhós no Natal, ou para um casamento ou baptizado, não saía das mós das azenhas dele.

A alcunha vinha-lhe dos antepassados e aplicava-se só a três dos oito irmãos – nunca conseguimos apurar nada relacionado com tal designação -.

O sobrenome e apelido, verdadeiros, eram Marques Morcego.

Pela quantidade de vezes que dizia para o macho: anda lá, alma do diabo!... era conhecido pelo... alma do diabo!...

O animal, que transportava os taleigos, era, nas palavras do dono, mais manso e menos bruto que ele.

As raparigas, e muitas mulheres casadas, não passavam, junto do moleiro, sem uma chalaça: cortaste o cabelo para ficares mais bonita?!... “Atão” porque não ficaste?!... Tens dois filhos?!... “Atão” o teu “home” não é capaz de te fazer mais?!... E assim por diante, neste género de prosas, muitas vezes bastante inconvenientes.

Até já tinha experimentado, no focinho, as costas de muitas mãos, como comentavam as mulheres mais ousadas, na fonte, ou na lavagem da roupa.

Um dia, na taberna da terra, juntou-se com um caldeireiro que passava muitas vezes pela aldeia e, no meio de uns copos, entraram de chalaça.

Na conversa, o moleiro atirou ao Manel da Rosa: Olha lá, não passaste ali na ladeira das taliscas, a caminho de Alcaravela, na noite de anteontem?!...

Eu não, Ti Manel Balejo, não sou como os morcegos, nem como os moleiros; a essas horas estou na malhada, com a minha Rosa, a fazer o que não encomendo aos outros.

Pois olha que passaram, bem na minha frente, uns “travancas” que faziam uma restolhada dos diabos, cheiravam mal que tresandavam, ladravam como cães e iam com uma pressa maior que a que levam os condenados para o Inferno. Depois desapareceram, para os lados de Alcaravela e, lembrei-me de ti!....

Olhe, Ti Manel, sempre ouvi dizer que essas almas penadas são, normalmente de alguém que tem de prestar contas pelo que tirou aos fregueses; uns têm que amassar o pão ao Diabo, outros, têm de visitar sete vilas acasteladas, por noite, e outros, encarnam bichos malcheirosos e muito mal recebidos pelos cães das aldeias. Mas pode crer que nunca vi nada dessas coisas, nem acredito nelas.

Fazes bem, homem. Olha que se o meu macho falasse, poderia dizer que não é homem, nem animal manso, que aceita um diabo daqueles no corpo; aquilo é coisa do outro mundo, que nos deixa sem pinga de sangue, desaparece, tal como apareceu, e pronto!...

Olhe, Ti Manel. Os cães do Luís Matos e os do seu sobrinho, Joaquim, apareceram, ontem, junto de casa, logo pela manhã, todos mordidos e arranhados?!...

E o Augusto Macedo ao chegar à horta do Valdeira, deparou-se com um cenário dos diabos: o milho todo arrasado, a terra toda remexida e a própria represa furada!...

Não lhe foi muito difícil verificar que havia muitas pegadas de javardos e de cães e que ali houve luta da grossa. Pelas pegadas e estado das plantas, via-se, perfeitamente, que os estragos já datavam de algumas horas atrás!...

Aquilo, Ti Manel, era um tropel de cães, javardos e crias, que andavam todos engalfinhados e o lume que deixavam no ar, mais não era que o luzir dos olhos em plena escuridão.

Certamente o seu macho teve menos medo que “vomecê” e, também estava menos bêbedo, o que o terá ajudado a compreender que a luta não era dele.

A si, na altura, só lhe cheirou mal; ao macho foi o fedor que o ajudou a perceber o que se passava.

Bem, desta vez és capaz de ter razão.

Mas olha que uma noite, entraram-me pela porta da azenha, numa restolhada medonha: havia mesmo gritos e ais, no meio de grande alarido.

Pouco depois era lume por todo o lado e até conseguiram travar as pedras e pararem os engenhos, ao mesmo tempo que faziam desaparecer todo o cereal da maceira.

Coisa dos demónios; como tal nunca tinha visto e, de repente, tudo ficou calmo e voltou ao normal.

Oh! Ti Manel Balejo, sou caldeireiro e também me engrosso, às vezes. Mas olhe que nunca me esqueci de encher a maceira da azenha de grão, porque não tenho azenha, nem tenho grão.

Porém, não é o seu caso, Ti Manel.

Nessa noite, bebeu uns golitos a mais da pinga do cantil; encostou-se, no catre, sem encher a maceira de grão e acordou estremunhado, com as pedras a roçarem uma na outra, sem grão de permeio, a alta velocidade e faiscando, por todos os cantos e lados... teve sorte em não se lhe ter incendiado a manta com que se cobre.... Os “travancas”, estão, há muitos anos na sua cabeça; vêm das histórias da sua infância.

Já agora, o Ti Manel pague lá mais um copito e tenha cuidado quando descer hoje a ladeira das taliscas; choveu e o barro apegadiço está muito escorregadio, pelo que deve ter cuidado com o macho, não o carregando muito.

Passe pelas brasas, antes de se fazer ao caminho, pois se já tiver a coisa curtida, não vai encontrar travancas, nem bruxas, nem lobisomens, ou almas do outro mundo.

Faça o caminho, assobiando, acompanhado pelo seu Jeremias, que nada mais quer que caçar um ou outro coelho, mais desprevenido, ou alguma ratazana, lá nos contornos da azenha.

No outro dia, procurou o caldeireiro, para lhe agradecer os sonhos que tinha tido, no catre e dizer-lhe que os copitos do dia anterior foram bem empregados.

Mas o caldeireiro já partira, errando, de aldeia, em aldeia e bebendo aqui com uns, além com outros!...

Seguindo a vida!...

terça-feira, 5 de maio de 2009

A tabuleta dos 35 padres

O Jerónimo nasceu nas barbas da Serra, e ali se criou, entre barrocos e giestas, até que, aos onze anos, depois de fazer, com distinção, o exame do 2º grau, foi para o Seminário.

Isso não o desgostou, todavia jamais perceberia bem, porquê.

Levava nos pés o par de botas que calçara, pela primeira vez, no dia do exame.

No enxoval, que o acompanhava, iam algumas peças de roupa nova e muitas outras, feitas com aproveitamentos das fatiotas dos irmãos mais velhos.

Deixava para trás o que nunca esqueceria: a guarda do gado, a apanha das batatas e das castanhas e os outros servicitos, com que ajudava a mãe, Narcisa do Vale, mulher piedosa e temente a Deus, que conseguia gerir, como ninguém, os parcos proventos, resultantes da venda dos ovos de meia dúzia de galinhas.

Dali tirava os tostões com que mercava, na “venda”, os quilitos de mercearia, as barras de sabão macaco, para a barrela da roupa, e uns metros de cotim ou de chita, com que fazia calças para os homens e saias, ou blusas, para ela.

O pai, homem de poucas palavras, trabalhava no campo, dando jornais às casas mais remediadas e cuidava de uma pequena leira, junto da ribeira, de onde vinham as batatas e os mimos da casa.

Tinha duas ou três cabeças de gado e uma vaquita que iam dando leite, para fazer uns queijos.

O irmão mais velho, já servente de pedreiro, andava a iniciar-se na arte e o outro, com mais dois anos que o Jerónimo, malhava ferro, no ferreiro da aldeia, que era exímio a calçar uma ferramenta, ou a tratar os cascos e ferrar uma besta.

Viria a ser o ferrador da terra; ofício com que ganharia bem, a vida.

No Seminário teve, desde o primeiro dia - que recordou sempre com muita saudade, como fazia questão de repetir -, um comportamento exemplar.

Estabeleceu três metas, em planos diferentes: educação, instrução e formação.

Estava disposto a ir o mais longe possível em cada um destes objectivos.

Bebeu, com a maior avidez, todos os princípios e boas-maneiras que caracterizam um homem de sociedade; estudou e aprendeu quanto pôde e as suas notas eram das melhores: “barra” em Matemática e Latim, muito interessado em História e Geografia e com alguma dificuldade na Língua Materna e Retórica.

No plano da formação pode dizer-se que, ao fim de cinco anos de Seminário, estava um homem – compenetrado das suas obrigações e dedicado a todos os que o contactavam.

Em férias, na aldeia, era respeitado e acarinhado por todos, que diziam estar ali um futuro padre; não como muitos que nem sempre põem os interesses dos semelhantes acima dos seus, mas o verdadeiro exemplo de pessoa bem formada e talhada para aquilo que se propunha.

Não passou despercebido à Maria Luísa, moçoila um ano mais velha, que desde os bancos da escola o olhava de maneira especial e diferente das outras colegas.

Lembrava o rosto cândido e sereno, que mostrava sinais de barba, embora mantivesse muita serenidade e paz de espírito.

Mas não via nele um padre...

Nunca se soube bem porquê, nem por que forças, encontraram-se, num dia de verão, à tardinha, junto à fonte.

Anos mais tarde, a Maria Luísa viria a confidenciar que se fazia encontrada, mas tinha sempre a sensação que o Jerónimo não estava para aí virado, nem entendia os seus propósitos.

Cruzaram olhares, trocaram duas ou três palavras de circunstância e separaram-se, em silêncio; mas ficaram, ambos, com uma mesma certeza: nem a moçoila ficaria solteira, nem o seminarista havia de ser padre.

Como dois vulcões, plenos de erupção, separaram-se no final das férias, indo o rapaz para o quinto ano, no Seminário, e a menina para a Escola do Magistério.

Passado um ano, de grandes e penosas lutas interiores, o Jerónimo completava o quinto ano e anunciava ao Vice-reitor que não transitaria para o Seminário Maior, pois, já acordara
com o seu director espiritual, não seria ordenado padre.

A Maria Luísa ia para o segundo ano e concluiria o curso no final do ano.

Embora nada de concreto se tivesse passado, ou sido acertado entre ambos, queriam os dois o mesmo.

Nunca o manifestaram, sendo, com alguma surpresa, que a menina veio a saber, que o Jerónimo decidira abandonar o Seminário.

Quase a completar dezoito anos, o Jerónimo trabalhou na cidade, como marçano e ajudante de cartório, colaborando, activamente em todos os serviços da paróquia, quer acolitando o vigário, quer organizando cerimónias, mas sempre fiel ao rumo que traçara, antes de tomar a decisão, não muito bem aceite pelos pais, de abandonar a carreira eclesiástica e que consistia em fazer exames de equivalência para transição para o ensino oficial e matricular-se na Escola do Magistério.

Nas férias da Maria Luísa, dado que o Jerónimo já não tinha férias, apenas por duas ou três vezes se encontraram, lá na aldeia.

Num desses fortuitos encontros o rapaz manifestou os seus intentos de que se conjugassem para que fizessem projectos de vida. Propunha o namoro que os levasse, quando fosse altura disso, ao altar.

A menina agradeceu, ternamente, a primeira prenda do namorado, dizendo apenas que acabava de receber a maior alegria da sua vida. Não disse mais que uma frase: sempre te amei e iremos ser muito felizes, disso tenho a certeza; conta comigo!...

A vida ia correndo, de feição; durante o ano seguinte, o rapaz arranjou emprego na biblioteca pública e teve aulas, dadas, graciosamente, por um professor do liceu, com quem costumava trocar impressões e a quem fez seu confidente.

Candidatou-se, no ano seguinte, aos exames do segundo e quinto anos e, sem surpresa, viria a obter dispensa das provas orais, em ambos. Fez exame de admissão ao Magistério, vindo a ser, dois anos depois, professor.

A noiva já trabalhara, numa aldeia não distante da cidade, como professora agregada e começou a fazer parte dos planos a aproximação do futuro casal, mas o serviço militar reclamava a presença do Jerónimo.

Esteve em Tavira durante seis longos meses, onde teve a instrução de base e foi promovido a cabo miliciano, transitando em seguida para a sua cidade, onde cumpriria mais dois anos de serviço.

Liberto de obrigações militares, combinou-se o casamento, que viria a consistir numa cerimónia muito íntima e simples, na igreja da aldeia.

No Outubro seguinte eram ambos nomeados para escolas da terra, masculina e feminina, onde, ao abrigo da lei dos cônjuges, seriam colocados como efectivos.

Durante os oito anos seguintes, tiveram cinco rapazes e uma menina que era o desvelo de pais e irmãos; a Maria da Graça, que vinte e cinco anos mais tarde cursaria medicina e viria a ser uma distinta pediatra.

Três dos cinco irmãos foram padres, sem grande interferência do pai, como fazia questão de salientar o velho professor Jerónimo.

E acrescentava, com muito orgulho: são vinte e sete ex-alunos, só de minha parte, já que da Maria Luisa foram mais oito, que se ordenaram padres – missão cumprida!...

Ao longo de quarenta e cinco anos, de serviço efectivo, o casal de professores iniciaram a vida e a carreira de centenas de vultos das letras e da sociedade do País.

Para além dos trinta e cinco padres, que, salvo duas justificadas excepções, estiveram nas cerimónias fúnebres dos mestres, deixaram magistrados, médicos e professores, entre uma plêiade de gente grata, espalhada por quase todos os continentes.

Em sua memória numa pequena lápide, colocada junto da fonte, lá na aldeia, o povo escreveu: Homenagem aos Professores Jerónimo e Maria Luísa, que nasceram e viveram nesta terra, onde faleceram em 1968.

PS.: A lápide foi posteriormente completada, pelo desvelo e douto engenho de um Presidente da Junta de Freguesia: ...onde faleceram em 1968… “e foram pais de nada menos de trinta e cinco padres”.

É claro que o povo lhe passou a chamar a “tabuleta dos 35 padres”.