sábado, 13 de dezembro de 2008

O padre Abreu

O Abreu fazia dezanove anos e fora, recentemente, às “sortes”, a Mação, tendo ficado “apurado para todo o serviço militar”, como então se dizia.

Andava muito triste, o que, na voz do povo, se devia à morte prematura da mãe, com doença não determinada, ou, pelo menos, não revelada, ao comum das pessoas. Mas a tristeza era outra.

Acompanhava os irmãos mais velhos, João e Benjamim, na missa dos domingos, na freguesia.

Ia, também, o mais novito, o “António”, com dez anos, esperto e ladino, filho do pai e da madrasta.

Pela cabeça do Abreu passava um turbilhão de ideias. Também era notória uma postura meditativa, uma marcada auto-análise e introspecção, invulgares em rapazes daqueles meios, daquelas idades e com a sua instrução – fizera a 4ª classe, sendo aprovado, com distinção –.

Um dia, o padre João Pereira, filhote do lugarejo e pároco numa pequena freguesia para os lados de Porto de Mós, veio à aldeia e cruzou-se com o rapazote, de que alguém lhe tinha já falado.

O Abreu, recentemente apurado, nas sortes, ia, dentro de dias, partir para a ceifa, na companha do Ti Chico “Manajeiro”, da Serra.

Na conversa que teve com o padre Pereira, o Abreu mostrou grande vontade de saber coisas sobre a vida de sacerdócio.

Nas três perguntas que fez, a primeira é uma simples diversão: gostaria de saber qual a origem do nome da aldeia Queixoperra –; a segunda e terceira versavam o casamento dos padres.

O padre Pereira, cuja sensibilidade, embora embotada por muitos anos de meio rural, era de uma perspicácia evidente, percebeu que, das três perguntas, só a resposta à última tinha importância para o Abreu.

Respondeu, evasivamente, sobre o nome da aldeia – cuja origem é incerta e nebulosa – e pouco adiantou sobre o casamento dos padres; mera questão de disciplina, instituída há séculos.

Já no que diz respeito à facilidade, ou dificuldade, de ser padre, o caso é mais complicado; talvez uma passagem dos evangelhos te ajude a compreender o que há para dizer: “aos desígnios do Senhor, nada é impossível”.

A interpretação desta afirmação contém as respostas que procuras.

Só há uma única condição: a tua vontade e o teu querer têm de ser inabaláveis; o resto, não terá importância.

Tens de ter muita confiança; tens a vida para viver.

Daí a dias, o Ti Bento e o Luís Mendes foram a casa do Abreu avisá-lo que no dia seguinte, antes do romper da manhã, estariam de partida, para se juntar, na Saramaga à companha do Ti Chico “Manajeiro”, da Serra e seguirem todos, para a estação de Abrantes, de onde seguiriam, no comboio do Leste, para a ceifa.

Iria começar mais um dos duros trabalhos que, para o Abreu, seria dos últimos.

O Ti Chico “Manajeiro” ufanava-se, anos mais tarde, de ter tido nas suas companhas da ceifa, doutores, oficiais da tropa, negociantes de fama e riqueza, brasileiros e até um padre, que de vez em quando, o ia visitar lá na Serra, onde o “manajeiro” passava os últimos dias do entardecer da vida, e, segundo as suas palavras, tinha muitos amigos, por quem pedia, à Senhora da Fátima.

E recordava o rapazote que levou, três anos, na companha: o Abreu, do compadre Francisco, da Queixoperra, que na malhada mostrava um ar de alheamento e distância e um certo quê de mistério.

Os outros camaradas, reparavam, mas não comentavam muito, pois o Abreu não incomodava ninguém e desempenhava, a contento, todas as tarefas de que era incumbido.

Era dos últimos a adormecer e nunca o fazia sem que rezasse as suas orações e se quedasse em meditações.

Nas festas e bailaricos, teve um ou outro “flirt” com raparigas, mas não passou daí.

Um dia, regressava da horta, onde estivera toda a manhã, junto com os irmãos, a arrancar as batatas e, ao passar à porta da taberna do ti Zé Maria, foi-lhe dito que já lá estavam os editais e que ele iria assentar praça em Abrantes, daí a quinze dias.

Operou-se, no rapaz, uma modificação profunda. Andava mais alegre, cantarolava, dava-se a conversas; parecia outro.

No dia três de Maio – festa da Santa Cruz –, foi, junto com os outros dois mancebos da freguesia, buscar as guias à Câmara de Mação e, no dia seguinte, foram apresentar-se em Abrantes.

Durante quase três meses fez a recruta e depois a especialidade, tendo sido escolhido para a escola de cabos.

O Capitão, comandante da Companhia, casado com uma das senhoras da família Moura Neves, precisava de um “impedido” e, saiba-se lá porquê, escolheu o cabo Abreu.

Passou a frequentar a casa do “patrão”, onde ajudava nas compras, lavava o automóvel, tratava do cavalo e ocupava-se de outros afazeres da casa.

A senhora dona Aninhas, mulher do Capitão Geraldes, gostou logo do soldado que o marido escolhera, muito prestável e solícito, muito preocupado e amigo de ajudar, muito pontual e sério nas contas. No entanto, por vezes ficava triste, pensativo, vago e distante, o que levou a Senhora a perguntar se estava ofendido com alguma coisa, ou se tinha algum problema que ela pudesse ajudar a resolver.

Ai, minha Senhora, tanto e tão pouca coisa.

Corou e quase se lhe embargou a voz, mas não podia perder a oportunidade e acrescentou: sou filho e neto, de gente pobre e humilde; pobre, de bens materiais, mas temente a Deus e muito honrada.

Com fé nestes princípios, há oito ou dez anos que o meu maior desejo é ser padre.

Ser padre, Senhora Dona Aninhas, é o meu desejo.

Homem, mas isso... venha comigo.

Você, Mariana, vá tratar da lida da cozinha, que se fazem horas do almoço.

Ah! o Abreu almoça cá, connosco.

Chegados à sala, a Senhora perguntou, secamente: tem, então, a certeza que é padre que quer ser?

Certeza absoluta, minha Senhora. Só que, por mais que pense, não vejo como; até nem sei porque incomodei a Senhora com tais despropósitos.

Que me desculpe, a Senhora, que tão boa tem sido para mim.

Não, meu bom homem, bateu à porta certa; aos desígnios do Senhor...

Sem ouvir o resto da frase, fez-se luz na mente do rapaz; eram as palavras do evangelho, que o padre Pereira lhe tinha dito...

A Senhora continuou, explicando que havia fortes ligações da sua “casa” com o Seminário de Portalegre e o dos Olivais, em Lisboa.

Todos os anos tinha chegado ao fim um seminarista amigo, mas, havia três anos não se tinha ordenado ninguém da “casa”.

Daí a nove ou dez anos, se Deus quisesse, haviam de ter um padre. Assim o Abreu quisesse…

A partir daquele dia, nem a Dona Aninhas, nem o Abreu conseguiram dormir direito, de felicidade.

Uma semana depois já a Senhora anunciava, na presença do marido, que estava tudo tratado: nos meados de Setembro, o cabo Abreu seria licenciado, na qualidade de amparo de família. Na semana seguinte faria um retiro no Seminário de Portalegre e na última semana do mês, um outro retiro, no Seminário dos Olivais, em Lisboa.

A Senhora queria ouvir opiniões e saber o que melhor se ajustaria ao seu novo protegido; isto se o Abreu não visse qualquer inconveniente.

Resposta pronta e elucidativa: É o que eu quero, minha Senhora.

No início de Outubro, tudo começou no Seminário de Alcains, onde, num ano, o Abreu, fez segundo e quinto anos.

No ano seguinte, em Portalegre, completou os preparatórios e no terceiro ano, iniciava a Teologia, que o levaria, passados cinco anos, a cantar Missa Nova, por pedido da Senhora, no Seminário dos Olivais.

Numa visita à aldeia depois de estar no Seminário de Alcains e após ter passado pelos seus pais adoptivos, como sempre fez questão de dizer, encontrou-se com o padre João Pereira.

Abraçaram-se e o seminarista Abreu apenas balbuciou as palavras que escolheu para lema de toda a sua vida: “Aos desígnios do Senhor nada é impossível”.

Paroquiou uns anos em Martinchel; no termo de Abrantes – de onde podia visitar a família adoptiva e confortar, na doença, a Senhora Dona Aninhas.

Transferiu-se depois, por interferências e empenhos da Senhora, para São Facundo, freguesia também perto de Abrantes, onde o velho senhor Moura Neves, saudoso pai da Senhora, tinha a maioria das suas terras.

Lá viveu, muitos e bons anos o Padre Abreu.

De vez em quando, ia à Queixoperra, para rever as suas origens e, sobretudo, para matar saudades da sua infância.

Nessas viagens, dava um salto à Serra, para rever o velho Chico “Manajeiro”.

Morreu, em paz, quase a completar noventa anos, sem deixar quaisquer bens materiais.

Do seu espólio constam apenas dez ou doze nomes, de outros tantos padres, que, por sua iniciação e orientação, serviram, tal como ele, a Igreja.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Elogio do amor

Nas oliveiras do quintal, atrás da casa, havia grande quantidade de pintassilgos que ali faziam os ninhos, disputados pela garotada, que se considerava altamente recompensada cada vez que achava um.

Os pintassilgos eram os regulares ocupantes das gaiolas do Zézito, que nos seus treze anos, ali passava as férias.

Um dia, o rapazito ficou impressionado com o comportamento dessas aves.

Ao verem os filhotes nas gaiolas, alimentavam-nos nos primeiros tempos, estudando-lhes o desenvolvimento motor, a capacidade de se alimentar, o tamanho e cor das penas, para definirem a sua iniciação no voo.

Ao verificarem que os filhos, já na altura de voarem, não os acompanhavam, por se encontrarem presos, entravam em trinados esquisitos, mais agudos e rápidos e menos harmoniosos – semelhantes a choro – e, alguns dias depois, procuravam gramíneas venenosas que davam aos filhos, para que se libertassem, pela morte.

Este episódio, que o garoto de então não mais esqueceu, levou-o a não mais usar as gaiolas e guardou aquele exemplo como verdadeiro hino à liberdade.

Constitui, o maior elogio ao amor, e merece tratamento de artista.