quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O Ti´Jorge dos cabelos brancos



Quando saiu do mar, trabalhou em escritórios e chegou a Oficial de Justiça, em vários tribunais, terminando a carreira em Aveiro. 

Foram vinte anos numa cidade – a mais linda das portuguesas, como referiu várias vezes nas suas memórias, escritas e contadas oralmente – onde escreveu, 

Fez de tudo e sempre foi arranjando tempo para estudar. Depois do serviço militar, alistou-se na Marinha Mercante e foi correr mundo, até aos trinta anos.

pintou, viveu e sóEm pequeno, o Jorge do Outeiro passou cinco anos no Gavião e em Portalegre a estudar para Padre.

Depois resolveu dar uma volta à vida e começou-a, fugindo do Seminário.

Sem coragem de rumar a casa, onde receava o castigo do padrasto, andou por Lisboa e “Santa-Maria-de-Todo-o-Mundo”, sem dar sinais de vida à família, durante uma dúzia de anos.

lhe faltou casar e ter filhos. Até que, reformado, acabou por regressar à aldeia, onde só primos restavam da sua família. 

Nos mais de trinta anos que esteve ausente cortou tudo o que recebera da Terra; tudo não será bem o termo, pois as raízes estiveram sempre vivas, como gostava de lembrar, quando alguém, mais curioso, lhe perguntava por onde tinha andado. 

Um dia, animado por um parente, foi à aldeia e, diante da casa em que nascera e lhe pertencia, desde a morte da mãe, pediu para ficar um tempo sozinho. 

Lá pelo pôr-do-sol mandou chamar o primo e reunidos com uns ex-pedreiros que lhe serviram de amparo nos primeiros tempos de Lisboa, combinou-se a restauração da casa, prontificando-se o primo a recebê-lo em casa durante as obras.

Na aldeia não havia escola; as primeiras letras e as contas passaram a ser ensinadas pelo Ti’Jorge, ao tempo Cabo de Ordens, barbeiro nas horas vagas, agricultor de vez em quando e Mestre-escola, na casa do Ti´Calça Larga, que durante o ano estava desocupada, pois só sentia azáfama na altura das vindimas.

O sr. Jorge Mendes Pires, conhecido pelo Ti´Jorge – como gostava que lhe chamassem -, foi encarregado de dar escola na aldeia, depois de ter sido entrevistado pelo Delegado Escolar do Concelho a quem mostrou competência e conhecimentos suficientes para ministrar o ensino às primeiras classes, ou seja até à 4ª classe, e receber todas as garantias de apoio da Escola Oficial. 

Daria aulas de dia e à noite e seria acompanhado e orientado pelo Senhor Professor que se deslocaria à aldeia, numa viatura da Câmara, pelo menos uma vez por mês. Passou a ter categoria de Regente Escolar e uma remuneração de duzentos mil réis por mês. Nunca quis que lhe chamassem Professor e estabeleceu que seria, para todos, o Ti´Jorge. 

Dezenas de rapazes e algumas raparigas, aprenderam ali o suficiente para fazerem exames de 1º e 2º grau (3ª e 4ª classe) e muitas vezes os alunos do Ti´Jorge foram “Aprovados com Distinção”, não mostrando quaisquer desmerecimentos nos exames feitos na Escola do Concelho.

Dizia-me o meu Padrinho, que, com ele, quando garoto, fez exame da 4ª classe, em Mação, que os meninos e rapazes da Serra eram barras em problemas, raramente davam erros nos ditados, faziam redacções lindas e em geografia sabiam tudo, porque o Ti´Jorge conhecia o mundo, sabia falar com muita desenvoltura – consequências dos estudos no Seminário – e era um verdadeiro artista. 

E, nas suas memórias, havia sempre algo para revelar: Foi com ele que aprendi as primeiras coisas sobre balanças e já mal via e estava quase mouco, quando eu fiz a primeira balança romana, que ele comentou, com um sorriso:

-Embora não tenha ainda formas muito trabalhadas e talvez não seja muito agradável à vista, fiz-lhe testes e posso-te garantir que em termos de rigor é uma obra perfeita. Leva-a ao senhor Aferidor da Câmara e verás que confirma o que te garanto quanto à qualidade da tua balança. Parece-me que deves saber se alguém te pode ajudar a registar a patente. Pergunta lá na Câmara.

Nunca poderei esquecer isso: estávamos a chegar aos anos quarenta, e ele recomendou-me que eu devia aperfeiçoar as balanças, pois a Guerra não podia durar para sempre e, quando ela acabasse, haveria muito desenvolvimento industrial. 

Foi a conversa de despedida do Ti´Jorge. Acho que nenhum dos rapazes do meu tempo alguma vez poderá esquecer aquele homem: gratuitamente e ainda comprando algum material, ensinou quem quis aprender, da terra e de fora.

Depois acrescentava-me o velho Mestre Abílio, que, até que os olhos lhe permitiram, dava cartas no lançamento de uma obra com as plantas e desenhos na mão. E o seu maior trofeu foram as escadas que tiveram de ser emendadas, pelo Ti´Jorge, depois de lançadas por Encarregados de Obra e até de Engenheiros.

Mas não se esqueça, Senhor Professor: o Ti´Jorge nunca castigou ninguém, por não saber. Todos os que lá andavam eram voluntários e ele também. Assim, meus amigos, quem não quiser vir não vem, mas se vier, é para ser alguém. 

Daqui a uns anos, talvez quando eu já cá não estiver, poderei ver-vos, sem ser visto, a agradecerem ao velho Ti´Jorge o que ele vos ensinou. Se quiserem, mesmo sem Professor, podem ser os melhores. 

E querem saber como e porquê? Simplesmente porque querem!...

Alguns alunos iam de dia. Ou porque ainda eram novos demais para trabalhar, ou aprender um ofício, ou porque os pais os dispensavam para estar mais tempo na “escola”. O Ti´Jorge fazia sempre uma reunião depois da ceia, aos sábados, para falar com os pais, sem que os filhos estivessem presentes.

E voltava o meu Padrinho: eu, por exemplo, tinha três irmãos, mais velhos. O meu pai já trabalhava na ferrugem e todos nós estávamos destinados a passar a vida a malhar ferro. E assim foi, mas dentro da forja, cada um seguiu o seu caminho: e eu, que era o mais dispensado para as aulas do Ti’Jorge, quer durante o dia, quer á noite, aprendi lá a gostar de saber. 

Gostava muito de contas, problemas, medições, desenhos de peças, etc.. Também não era mau nas redacções e no ditado, mas gostava mais da Matemática – como dizia o Ti´Jorge. 

Parece que estou a ver o sorriso dele, quando já mais pelo tacto, que com os olhos, apreciou o primeiro exemplo de balança que lhe mostrei. Devo-lhe a mancha de clientes de norte a sul do país e a honra de ter sido louvado pelos serviços de Aferição do Concelho. 

Num discurso do Chefe dos Serviços foi dito que as minhas balanças, produzidas sem o primor de uma grande fábrica, tinham o rigor suficiente para dispensarem, praticamente, os serviços de aferição.

E, com uma nostalgia bem visível nos olhos, rematava: sabes afilhado, homens como o Ti´Jorge mereciam mais as estátuas do que aqueles que por aí as têm. Mas tenho a certeza que a sua humildade não desejava isso e espero que aquilo que me parece que não encontrou no Seminário, lhe foi dado pela vida. Sempre foi o retrato vivo de um homem bom, justo e exemplar.

Foi isso que vi espelhado nos seus olhos, quando, serenamente, se lhe fecharam. O retrato da verdadeira paz! A imagem da autêntica serenidade de uma alma simples. 

O ti´Jorge era conhecido, fora da terra, pelo Professor da Serra. Tinha uns bonitos cabelos; tão farta cabeleira como a dos seus verdes anos. Só que, em vez de castanhos, eram totalmente brancos. Sempre bem tratados e aparados por ele próprio, eram a sua maior preocupação quanto ao seu visual. 

Numa das poucas vezes que se referiu ao seu aspecto, justificou a cor dos cabelos como a obrigação de ser justo, honrado e respeitador. E lavava, invariavelmente, uma vez por semana os seus cabelos; assim como uma espécie de confissão e exame de consciência… 

Uma inconfidência, com que o meu padrinho definia a maneira como o Ti’Jorge dos cabelos brancos gostava de se ver ao espelho.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

FESTIVAL DOS PÁSSAROS (conclusão)


(conclusão)

O pisco Nicolau, cujo nome disse ser vulgar nas suas terras de origem, lá nos confins do nordeste da Europa, foi levado a duas oliveiras onde pôde saciar o seu desejo de azeitonas pretas, e depois foi conduzido ao local de pernoita. 

Foram-lhe ainda dadas as instruções de defesa e segurança que deveria respeitar, escrupulosamente, na zona do melro Augusto e, até que não tivesse outro enquadramento ficaria no grupo dos convidados e adidos.

No dia seguinte o pisco Nicolau foi provar as águas da ribeira, banhou-se nelas, gabando uma tão agradável temperatura, e apresentou-se, com o melro que fora destacado para lhe servir de guia, guardá-lo e protegê-lo, ao melro Augusto para uma primeira conversa e a definição do programa de preparação e treino a que iria ser submetido.

Foi apresentado a alguns piscos que tinham chegado nos últimos tempos e já estavam enquadrados na estrutura e organização do melro Augusto e, por enquanto, ficaria perto do chefe, pois a qualquer altura podia ser chamado por ele. 

Nada faria sem a companhia do seu tutor – melro Anacleto – e em circunstância alguma sairia da área restrita, ou falaria com quem quer que fosse, sem a presença do acompanhante.

Ainda nessa tarde, teve a primeira conversa formal, e sobre a vida e viagem o pisco Nicolau, respondeu ao melro Augusto:

Nasci e cresci lá em terras frias e com pouco alimento. Desde cedo, com um numeroso grupo de companheiros de raça e outros pássaros, fui mentalizado que teria de partir para terras mais ocidentais e mais ao sul, onde o clima era mais quente e havia mais abundância de comida. 

Descreveu, depois, o esquema que vigorava lá na sua terra, onde tudo era estabelecido pelo governo e cada um era mandado para onde era opinião dos chefes e fazendo o que lhe estabeleciam como tarefa. 

Tinham o que precisavam: poiso, alimentação, preparação e saúde, fornecido pelo governo e não podiam deslocar-se sem autorização das autoridades. 

Acrescentou que manteria, sempre, o desejo e a esperança de voltar à região natal. Seria esse o meu destino e poderia mesmo perder a vida nessas longas, cansativas e arriscadas viagens. 

Até então, apesar de muitas dificuldades e sacrifícios – que descreveu ao melro Augusto -, tinha superado tudo e ali estava, pronto para tudo e com desejo de pertencer a tão belas terras.

Andou, depois de partir, sobre terras muito iguais e a certa altura foi preciso contornar altas montanhas e escapar à caça de aves de rapina, que se alimentaram de muitos irmãos seus. 

Nessa altura a sua plumagem era menos colorida e pôde passar despercebido aos que o procuravam para se alimentar. 

Estava preparado para tudo, resistiu sempre e nunca perdeu a esperança de chegar ao paraíso de que lhe tinham falado alguns irmãos mais velhos. 

Mas valeu a pena, pois, finalmente pôde chegar até junto de uma comunidade exemplar que estava disposto a servir, como lhe fosse determinado.

Aqui trabalha-se, em liberdade, mas temos respeito, defesa e utilidade. Quero participar naquilo que me ordenar e sentir orgulho de pertencer a uma organização exemplar de entreajuda, defesa e protecção de todos os elementos do nosso grupo. Coisas que nunca tive desde que me conheço.

A viagem demorou para cima de catorze sois, voando alguns dias, quase sem descansar, de manhã à noite, sempre fugindo de perigos que nunca me tinham sido revelados e dos quais escapei por verdadeiro milagre.

Passei por zonas quase sem abrigo e comida e também por terras melhores e com algumas sementes para saciar a fome. Mas segurança em terra e no ar, nunca senti. A qualquer momento poderia surgir o inesperado e era o fim.

Só quando comecei a ouvir falar nas terras do melro Augusto, me invadiu o desejo de chegar ao fim da viagem, disposto a fazer tudo o que me for mandado para aqui ficar até que o meu destino se cumpra. 

A partir de agora, segundo a vossa vontade e desejo, peço que me inclua na sua comunidade.

Que sabe fazer, pisco Nicolau? Quer continuar com o nome e ficar aqui nas nossas estevas? São terras pobres, onde há liberdade e respeito. Pode ficar.

A primeira coisa que deve fazer é aprender os nossos usos e costumes e a nossa língua, para nos entendermos sem ser por gestos. O seu tutor será o melro Anacleto, a quem obedecerá sem pestanejar e passará a pertencer ao grupo especial dos meus ajudantes, pois a sua longa viagem deu-lhe conhecimentos que precisamos e queremos saber.

Senhor melro Augusto, além de voar, sei fazer muito poucas coisas; apenas distinguir umas quantas sementes que não devemos comer e executar certos movimentos de voo que nos ajudam a fugir a perseguições e podem salvar-nos a vida. 

Lá na minha terra dei instrução de voo livre e acrobacia, bem como técnicas de auto-defesa. Fui louvado pelo meu trabalho.

Atravessei muitas terras e diversas organizações, mas como não estava destinado a ficar, não me enquadrei em nenhum grupo, não me preocupei em aprender nada de lá e nem parava, pois alguma coisa me empurrava para o meu destino. 

Parece-me que, finalmente, encontrei um nome – que aceito, com todo o gosto – e uma família que me recebe bem. A Vossa organização, que ainda não conheço bem, parece-me exemplar e aceito a honra de ficar aqui para trabalhar para si e respeitar todas as ordens. Cumprirei, sem reservas, todas as tarefas que os meus superiores me atribuírem.

Farás a preparação para poderes pertencer à nossa organização, aprenderás o mais possível da nossa língua e costumes, receberás todos os ensinamentos de defesa e vigilância e daqui a uns trinta sois, como tu dizes, serás apresentado ao Grande Conselho, para seres considerado membro de pleno direito. 

Até lá, além de aprenderes, vais estar por perto de mim e serás instrutor de um grupo de detecção, defesa e alerta, da nossa zona. Disseste-me que tiveste muitas experiências de voo, com risco da própria vida. Pois é isso que vais ensinar. Eu próprio serei aluno desse grupo especial que vai aprender voo contigo. 

Que me dizes, estás preparado para nos ensinares o que sabes?

Estou à Vossa disposição e espero poder ser útil aos meus companheiros. Não esquecerei a honra que me é dada, ao fazer parte do grupo de treino de voo. 

Queria pedir que destacasse um dos piscos mais antigos e mais capazes para me ensinar a língua e a forma de viver na Vossa sociedade, que, de futuro, será, também a minha e não quero falhar, em nada.

Concordo com o que propõe e espero vir a ser um dos melhores, pois tenho vontade, sei o que custa a vida e vou trabalhar com afinco. Foi convincente no que acabou de dizer-me. Fico ansioso por começar e aguardo ordens.

E com breves palavas, como era seu hábito, o Melro Augusto, rematou: Bem-vindo à passarada do Vale da Ribeira da Serra. Agora vai, que o teu tutor espera-te. E tem uma surpresa para ti.

Quando chegou junto do melro Anacleto viu-o rodeado por uns quinze ou vinte piscos que foram chamados para um primeiro contacto com o pisco Nicolau e receberem algumas tarefas de ajuda a este novo companheiro. 

Um ficou encarregado de lhe ensinar a língua, outro de lhe explicar as regras de segurança, outro de o acompanhar para traduzir os ensinamentos do tutor Anacleto e mais dois que o ensinariam a procurar alimentos e a banhar-se na ribeira. Tinha ainda um pisco mais velho, de nome Gregório, que nos últimos anos não fora à sua terra, por ter dificuldade em aguentar a viagem, que seria o seu conselheiro e nunca se afastaria muito dele.

Ao terceiro dia depois da chegada, cada vez com o tempo mais frio, teve início a primeira sessão de treino de voo. Foram colocados obstáculos fixos e móveis no canal de voo e cada instruendo, voando à máxima velocidade que pudesse teria de contornar os obstáculos e fazer imediatamente flexão para um dos lado e embrenhar-se em abrigos que não conhecia, pois tinham sido colocados mesmo antes dos treinos.

O melro Anacleto, traduzindo o que proclamou o pisco Nicolau, disse: Os nossos treinos serão reais, os obstáculos podem surgir a qualquer momento e em qualquer parte do campo de voo e depois de cada obstáculo irá, mais tarde, ser colocado um predador. 

Primeiro vamos aperfeiçoar o voo e as manobras de diversão e procura dos abrigos após os obstáculos, depois virão os inimigos. 

Imaginem que em pleno voo vêem um milhafre picando sobre vós; ou são capazes de lhe fugir, fintando-o no último instante, ou morrem. 

Aqui, em princípio ninguém morrerá, mas pode aleijar-se e para isso teremos protecção de colegas especializados que irão receber treino especial. 

O segredo, meus amigos está na atenção máxima, na força que o treino vai dar-lhes e numa coisa que se chama instinto de conservação da vida. O nosso trabalho irá aperfeiçoar essas três capacidades. 

Daqui a sessenta sois, ou dias como cá se diz, teremos umas dezenas de especialistas nestas artes de voo e defesa preparados para interceptar qualquer intruso que penetre no nosso espaço com intenções agressivas. 

Para esses teremos defesa e os nossos irmãos sentir-se-ão protegidos.

O nosso Chefe máximo, aqui presente, dá-nos a honra de fazer parte do primeiro grupo de especialistas a formar na comunidade. 

Os restantes elementos começarão a ser seleccionados amanhã, entre os voluntários que se inscreverem. Este grupo especial terá apenas voluntários e, em qualquer altura cada especialista é livre de pedir dispensa das suas funções. 

Como calculam este grupo e os outros idênticos que se formarem, terão os seus chefes, mas dependerão directamente do nosso Coordenador-Geral que aplicará a disciplina. 

A única coisa que se pede aos especialistas é o cumprimento rigoroso e absoluto das ordens dos chefes, o aperfeiçoamento constante das suas capacidades e o desempenho das missões que lhe forem distribuídas. 

Os especialistas ficarão dispensados de quaisquer outras tarefas, ou serviços comunitários, pois estarão sempre em alerta e prontidão total, mesmo quando em repouso de operações executadas. E, peço autorização, para terminar, por hoje, esta primeira sessão. 

Recomeçamos amanhã ao nascer do sol, preparando o local de instrução e treino, onde os auxiliares, escolhidos pelo melro Anacleto, se apresentarão. Peço ao melro Augusto que encerre os trabalhos. 

No dia seguinte, lá estava o melro Anacleto, com largas dezenas de pássaros de todos os tamanhos e tipos, para que fossem estipulados os trabalhos de definição dos campos de treino e preparação, marcadas as árvores limite, espalhados os sinais de direcção de voo, colocados os locais de protecção em caso de acidentes e muitos outros pormenores que encantaram o melro Augusto, pois tudo era previsto e à partida nada podia falhar. 

Depois o pisco Nicolau pediu autorização para começar a selecionar os primeiros instruendos, uma vez que logo que estivessem reunidos os primeiros quatro grupos de seis unidades, seriam iniciados os trabalhos.

Com todos os presentes em silêncio foram ditas as regras aos futuros especialistas: idade entre os dois e os sete anos, inspecção ao corpo, especialmente asas e pernas e aspecto geral, bem como visão e audição. 

Todos os instruendos seriam voluntários e cumpririam sem reservas, mesmo com risco da própria vida todas as ordens dos chefes. 

Depois, na presença do melro Augusto, começaram a ser interrogados, pelo pisco Nicolau, um por um, todos os presentes: queres ser especialista? 

Os que respondiam afirmativamente, passavam para a direita do instrutor; os que respondiam negativamente voltavam para o seu lugar. Depois de ouvidos todos os presentes, tinham aceite a aposta, quinze candidatos que, nessa tarde foram inspecionados, sendo aceites onze. 

Juntando o melro Augusto, estavam formados os dois primeiros grupos de seis elementos. Nos dias seguintes iriam a outros locais fazer a selecção dos restantes doze candidatos, mas no dia seguinte ao romper do sol iniciava-se a instrução que duraria sete semanas.

Finda a instrução teve lugar, na presença de muitos convidados, um festival de exibição e demonstração dos grupos de defesa da Ribeira. 

Todos os instruendos ficaram aprovados e receberam distintivos. 

Depois do festival a vida voltou ao normal e graças à vigilância e intervenção dos grupos de defesa, passou-se uma época em que nenhum pássaro sofreu acidentes ou foi ferido pelos predadores e percalços que eram vulgares.

sábado, 6 de setembro de 2014

Festival dos pássaros - 1ª parte

  

(1ª parte)

Para o melro Augusto, o ano não foi mau. 

Arranjou uma boa companheira, fizeram ninho nos balceiros do lagar velho, a vistas do Sanguinhal, e criaram os três filhos. 

O Outono ia de feição - bom ano de novidades, uvas com fartura de rabisco, boas frutas e bastante água na ribeira, pelo que não faltaram hortas regadas e boa provisão de bichos para toda a passarada. 

As oliveiras já pintavam e o frio ainda não era demasiado. 

Conseguiu descobrir, a tempo, uma armadilha debaixo das videiras do chão do Moleiro, disputou com um rouxinol, nas laranjeiras do Cabecinho Agudo, as eleições para Encarregado-Geral e foi escolhido para Chefe dos Pássaros, no vale da Ribeira da Renda e brejos circundantes.

No fim de Verão demarcou, como área de repouso e abrigo, a chapada de estevas que vai do açude da Renda até às primeiras hortas do Lavadouro. 

Era uma zona soalheira, nos baixos da encosta da Lomba, ali à meia barreira, onde nem os pinheiros vingavam, tal era a densidade de estevas e tojos. 

O maior perigo vinha das raposas que tinham criado junto da represa que escorre para a azenha, mais ou menos a meio da mancha de estevas que formava o território do melro Augusto. 

Mas eram tantos os ratos que procuravam restos de grão, junto do moinho, que os bichos maiores nem precisavam procurar os pássaros para andarem gordos e saciados.

O melro Augusto pernoitava, descansava e vigiava a sua zona sobre um tufo de balças, num pinheiro anão, com as carrascas cobertas de musgo e as carumas quase inexistentes substituídas por ninhos de processionária. 

Pouco maior que as estevas, era, no entanto, o local de atalaia do Encarregado da Zona e dos seus ajudantes mais chegados. 

A sede do Governo dos pássaros.

Não longe dali, numa espécie de palanque, entre um montículo de terra e pedras - mais pedras que terra - e um pequeno penedo, com grutas e subterrâneos, como convinha, um anfiteatro natural servia de local de reuniões e recepções. 

Era ali que o melro Augusto despachava o expediente, recebia os recém-chegados e organizava a guarda avançada que se estendia pelos cimos da chapada de estevas e pelos baixos, logo a seguir à levada que ladeava as hortas, desde o açude ao Lavadouro, nuns bons trezentos metros.

No outro lado da ribeira, por toda a sua esquerda, desde os primeiros pinheiros das Barreirinhas, ao plano dos Brejinhos, espraiando-se pelos Brejos e cabeço do Lavadouro, à entrada do Vale das Lousinhas, todo um conjunto de vigilância e alerta reportava para o comando qualquer entrada estranha, ou simples tentativa de intrusão, na zona de influência daquela comunidade, sob a responsabilidade do melro Augusto.

E tudo corria tão bem que, naquele ano em que o melro fora escolhido para Encarregado-Geral, não houve nenhuma baixa na comunidade. 

Até, no tempo dos taralhões, os garotos se afastavam dos pinchos da zona, pois a passarada de lá não caía nas costelas. 

Apenas algum intruso que acidentalmente tivesse penetrado na zona, poderia ter sido vítima das armadilhas que, ocasionalmente, algum caçador por ali tivesse armado.

Nos terrenos do melro Augusto, os principiantes eram ensinados a movimentar-se nas estevas, eram adestrados na arte de fugir aos predadores que pudessem encontrar: fossem cobras e outros répteis, gatos-bravos ou não, raposas e cães. 

Também os milhanos e alguns outros perigos eram evitados e havia esconderijos preparados para emergências.

A fama do melro Augusto já se estendera por todo o vale, desde o cabeço do Manglório e o Vale Dianteiro onde tinha começo a ribeira da Serra, até para lá da Amieira Cova onde se entrava nas áreas da Saramaga e outras terras da Alcaravela. 

Por todos os vales que escorriam para o leito da ribeira também já se falava da mestria, sabedoria e eficiência do melro Augusto.

Naturalmente, gerou-se um movimento para que na próxima Assembleia de Zonas fosse proposta a candidatura do melro Augusto. 

Era um facto sem precedentes, pois os gaios, as rolas, os pica-peixes, os emplumados papa-figos e até milhanos e peneireiros, eram, segundo os costumes, os pássaros escolhidos para Encarregados de área. 

Os cucos não tinham voz, nem voto.

Agora, porém, chegava-se mesmo a avançar com a ideia de uma chefia alargada a toda a zona da ribeira da Serra e vales adjacentes, numa área de grande diversidade e importância. 

Seria um Encarregado-Geral-Principal, com assento no Grande Conselho Avícola, Membro do Conselho Supremo de Ornitologia, com o pelouro das aves migratórias. 

O melro Augusto recebeu muitos emissários e observadores. 

Foi objecto de muitas sondagens acerca da sua disponibilidade, e sempre humilde e generoso com os que o visitavam e elogiavam, nunca baixou a guarda, mandando sempre vigiar e acompanhar os que partiam e deixando no ar o seu maior desejo: servir os seus irmãos, protegendo-os e zelando pelo bem-estar colectivo e não desleixando os cuidados com todos os que espreitavam por uma oportunidade para virem ali fazer qualquer desgraça. 

Foi, pois, neste contexto que num dia de meados de Outubro, em pleno Outono, já com chuva e frio, mas ainda com sol reluzente, chegou ao esteval do melro Augusto, um pisco desgarrado, sozinho, e perguntando pelo Encarregado de quem tinha ouvido os maiores elogios, desde que cruzara os últimos grandes montes antes do mar.

Levado à presença do melro Augusto, ficou encantado com a simplicidade do Encarregado, com a forma como foi recebido e, desde logo, convidado para, nos próximos dias, se encontrar com o chefe para falarem sobre a longa viagem que fizera desde a sua terra até ali. 

E, se fosse caso disso, apresentar as suas petições de permanência, como parecia ser seu desejo.

(Continua na próxima publicação)