O Ti’Cavaco saía alta madrugada, montado no macho, estrada de Almodôvar a baixo e, antes de entrar na vila, desviava à direita, embrenhando-se no Caldeirão.
Passava entre as barragens de Monte dos Clérigos e Boavista, até às nascentes do rio Mira.
Entre as aldeias de Cansados e Felizes, circundava, pelo norte, as alturas da serra, onde está o talefe dos 577 metros, e tomava o caminho para S. Barnabé, onde chegava por volta do meio-dia.
Ia direito a casa do Ti’Chico da Azenha, em procura da melhor medronheira que alguma vez lhe passou pelo estreito.
Era dessa pomada que dispensava aos clientes amigos e especiais. Passados quase quarenta anos tenho ainda na minha casa umas duas garrafas desse néctar, adquirido a cinco escudos o litro, ou vinte e dois escudos e cinquenta centavos os cinco litros.
O Ti’Chico colhia o medronho quando já pendia, muito bem maduro. Tinha duas talhas de uns dez almudes cada, onde preparava as infusões. A água era cuidadosamente apanhada, de manhã cedo, numa mina distante de tudo e certamente conhecida de muito poucos. As raízes das torgas, arrancadas no fim do inverno e secas, à sombra, nos cómodos da burra, eram o combustível ideal para manter constante o calor que aquecia a caldeira do velho alambique de cobre.
O engenho, era formado, além da caldeira, calafetada em pedras e cal, sobre uma fornalha com acesso por uma pequena porta, onde ardia a fogueira que fazia ferver a infusão, pelo capelo, o banho onde estava mergulhado o cano, em serpentina, e o tubo onde corria a aguardente, para um cântaro, de barro, de uns vinte litros. Cada caldeira dava uns dois cântaros, da boa, e mais um, da mais fraca.
O Ti´Chico descrevia, com detalhe, a forma de trabalhar, mas… os segredos da colheita dos frutos, a recolha da água, o tempo de infusão, a apanha e tratamento das cepas das torgas e a temperatura a que pertencia guardar o néctar de príncipes e reis, como lhe chamava, só uma vez seriam revelados – cada pai passava o segredo ao filho mais velho, num ritual que envolvia a entrega de um tubo de cana grossa, fechado com uma rolha de cortiça e selado com sangue.
Contava o velhote:
Um dia, há centos de anos, andando à caça, pelos altos da Serra, o Senhor Rei D. Duarte – aquele que tinha um irmão para lá de Lagos –, matou um enorme javali e, tão contente ficou, que decretou que aquele lugar se passasse a chamar Felizes.
Levada, por caminhos difíceis, a imponente presa, de tão pesada que era, deixava exaustos todos os serviçais, cujo chefe pediu uma pausa a sua majestade. O senhor D. Duarte autorizou a paragem e ordenou que ao local se passasse a chamar Cansados.
Seguindo dali, por um dos mais belos vales do Caldeirão, deu a comitiva com uma azenha, onde apenas vivia um velho moleiro ermitão que, ao ver tão importante figura, lhe ofereceu uma pichorra de medronheira, preparada por ele próprio.
El-Rei D. Duarte, sentado ali, naquele banquinho de azinho, encostado ao alambique, aproveitou o calorzinho das brasas de Torga e provou a nossa medronheira, que nunca mais deixou que faltasse nas festas da sua corte.
Era dia de S. Barnabé e, também, esse o nome do meu antepassado que recebeu Sua Majestade, que, ali mesmo, mandou que o lugar se chamasse, para sempre, S. Barnabé