O “Rasga”entrou espavorido pela taberna dentro, deu um murro sobre o balcão e gritou: “ti Manel”, uma metade!...
O taberneiro, na sua fleuma habitual, acentuada pela arrastar da perna esquerda, assomou-se na divisória da cozinha e salvou:”vem com Deus, homem!...
Esteja com Deus, “ti Manel”!... Acrescentou o “Rasga” em tom completamente diverso do da entrada.
Parece que viste o demo!... Vem para aí o mundo atrás de ti, ou quê?!... Ainda agora é manhã e já estás nesses preparos?!...
Deixe-me cá “ti Manel”!...
Quase nem preguei olho toda a noite, a pensar naquela magana.
Ao romper da manhã, antes do Sete-estrelo, já eu ia a caminho da ribeira, com o meu “farrusco” ainda com os olhos mal abertos. Chegado ali, no ponto onde a chapada bate com a ribeira, baixei-me atrás duns carriços e esperei…
Clareou o dia; pássaros, moscas, rãs e outra bicharada da ribeira apareceram aos primeiros raios da aurora, mas, da magana nem sinal. E olhe que naquelas duas horas não desviei, nem por um minuto, os olhos daquele carreiro que vai dar ao touril, onde a gaja tem, sem exagero nenhum, uma boa cesta de caganitas.
Ainda passaram dois laparotes, saltitando e negaceando, na sua inocência.
Nem lhes liguei e não deixei que o “farrusco” se agitasse; eu queria era a magana que se regala a tosar-me as couves do canteirito e os outros mimos da horta.
Mas garanto-lhe que há-de pagá-las todas juntas…
O “Tonho da azenha” jura que já a viu umas duas ou três vezes e garante que é animal soberbo, com um metro e meio, para mais, de comprimento e não pesará menos que uma boa chiba de vinte quilos.
Já gastei, com ela, para cima de quarenta noites e, logo hoje que alguma coisa me dizia que havia de ser o dia certo, apareceu o “ti Jaquim”com a água aberta ao romper da manhã.
A magana, muito senhora do seu nariz, ou tem o dianho por ela ou é finória. Mas há-de cair!...
Ou eu não me chame “Rasga”, em memória de meus avós, que Deus haja.
Também o “Mané das cabras” costuma passar por ali, antes do sol nado com o gado e os cães e já mais de uma vez me estragou o arranjinho.
Depois, com aqueles dois cães, que até de ratos fogem… Uns verdadeiros espanta caça!... Uns lorpas, é o que são! …
Mas não há-de ser mais teimosa que eu e não há-de comer-me as couves todas… Hão-de sobrar algumas, para a acompanhar na panela!...
Começou a ser assunto de conversas a obsessão do “Rasga”pela lebre da chapada da ribeira.
Alguns já chacoteavam com ele e perguntavam-lhe quando poderiam ver o troféu.
De armadilhas, com laços, a ferros, tudo passou pela mente do “Rasga” que, no entanto, já tinha decidido que a magana havia de cair com o chumbo do seu fuzil.
E resistiu, heroicamente, a todas as provocações e gozos da rapaziada da terra.
Até que um dia, pouco depois dos Reis, o “Rasga”entrou na tasca, com um imponente lebrão de um metro de comprimento e quase quinze quilos de peso, ao ombro.
Não havia memória de um exemplar assim, nas redondezas. Veio gente de aldeias vizinhas e, em dois dias, o “Rasga” contou a história dúzias de vezes, para satisfazer os curiosos.
Dizia, orgulhosamente:
Na minha da ribeira, onde a chapada bate com o regato, meia hora antes do nascer do sol, descia a magana, lampeira, para me dar cabo das couves.
Estacou, onde a rodeira cruza a canada, levantou as orelhas que aqui vêm, e ergueu-se sobre as patas traseiras.
Nisto, acerto-me com ela e levo a arma à cara. Miro-a bem no centro dos quartos dianteiros e zás, catrapaz: puxo os dois gatilhos e lá vai chumbo, quente e grosso.
A magana, ferida de morte, deu um salto que parecia uma corça, berrou como um boi e foi cair, redonda, na minha veiguita, junto ao bueiro da entrada da levada. Levantei-a no ar e, com todo o meu respeito, descobri-me, mostrei-a ao “farrusco” e às couves que ela não voltaria a comer…
O resto é o que têm na vossa frente; e olhem que já ouviu que nunca lebre de tal tamanho terá sido caçada...
E foram caçadores afamados que o disseram...