sábado, 23 de março de 2013

O porquinho doente


Todos os anos, pela mesma altura, passavam, na aldeia, os porqueiros. 

Traziam quinze ou vinte leitõezitos, que mostravam no terreiro entre as tabernas, mantendo-os todos juntos, com umas mãos-cheias de grãos de milho, que lhes iam atirando. 

Os compradores iam chegando e ficavam-se a observar os animais: se eram mais ou menos mexidos, se tinham orelha caída ou arrebitada, focinho agudo ou não, qual a cor, tipo de pêlo, desenho das patas, comprimento, altura, lançamento, etc. 

Depois de feita a escolha, se alguma coisa agradava, faziam sinal ao porqueiro e discutiam o preço – ao tempo, anos cinquenta, cada bacorinho rondava a nota e meia, duas notas, ou seja, cento e cinquenta, duzentos mil réis -. 

Pago o combinado e selado o negócio na taberna, era pegar nos porquitos e conduzi-los à sua nova e última morada; da pocilga onde se tinha posto mato e palha nova, sairiam para a matança, daí a menos de um ano. 

Nessa altura, se o masseirão tivesse sido bem fornecido, as doenças não atacassem e o bicho fosse de qualidade, cada um teria entre as oito e as dez arrobas de carne, que iria constituir o sustento da família, durante o ano. 

Mas um dos maiores segredos estava na escolha dos leitõezitos: os brancos e os pretos, têm as carnes mais secas, têm mais madeira, são menos atreitos e mais resistentes a doenças – como dizia o meu pai. 

Talvez por isso, não me recordo de ter visto porcos vermelhos, na pocilga lá de casa. 

A capação e a vacina contra a febre suína africana eram factos decisivos na vida dos bichos, bem como alguns cuidados a ter com o chiqueiro que não devia ser foçado e remexido para que os animais não ingerissem o que não deviam – um arganel a tempo e horas, era fundamental para fazer um bom chambaril, na matança, por alturas dos finais de ano. 

Um dia, apareceu lá em casa, a parente Maria Valenta, perguntando se os nossos porcos estavam bons, pois o seu – que era irmão deles –, estava amodorrado, não puxava para a comida, deitava-se amiúde e estava em ânsias. 

Já tinha ido à tia Maria Capaceta a benzê-lo, contra o mau-olhado; a tia Carolina já o tratara de quebranto, o Barbeiro afiançava que podia ser caso de espinhela caída e ela até já tinha pensado num gatito que morrera lá em casa, com esgana, há menos de um mês. 

Já lhe tinha dado azeite quente, mas o animal não estava bem e só piorara, nos dois últimos dias. 

Para chamar o Veterinário iria gastar mais que o valor do porco, uma vez que não tinha avença, naquele ano. 

O meu pai, lá foi dizendo que lhe parecia que o senhor doutor veterinário é que devia vir ver o animal; mas que até talvez não valesse a pena, pois o bicho estava inchado, deformado e com sinais de aflição fatal. 

O melhor seria preparar as notas para comprar outro, pois que aquele não iria durar muito. 

No caminho para casa, meu pai segredou-me: reparei no porquito, na manada; só comia, se os outros se afastavam, tinha ar macilento e mortiço, o porqueiro fazia menos cinquenta mil réis por ele e foi por isso que ela o comprou. 

Pode ter sido apertado no transporte, ou esmagado ao nascer; não vai durar muito. 

Três dias depois morreu o bacorito e veio a nossa parente pedir ao meu pai que o abrisse para tentar ver se havia alguma coisa de anormal. 

Assim se fez e logo se viu que junto das tripas, do bicho, havia uma bola, com mau aspecto e cheiro esquisito. 

Meu pai disse, de imediato: não precisa ir mais longe para saber que não é caso de mau-olhado, nem espinhela caída, ou esgana de gato. 

Trata-se, pura e simplesmente, como se pode ver, de uma nascida – um tumor -. Vamos queimar o animal, imediatamente, para não contaminar outros, nem a terra. 

Não adianta combater as crenças e o obscurantismo com teorias e ciências. 

Os exemplos, as provas e a demonstração das coisas, são o melhor combate que podemos fazer, contra a ignorância. 

Era como dizia o meu pai: quando estão para comprar querem o mais barato possível, esquecendo que o barato sai, normalmente, caro e também não se lembram de perguntar alguma coisa; depois, quando elas acontecem, torcem a orelha, mas já é tarde demais. 

Cuidam que são mais espertos que os outros…

quarta-feira, 13 de março de 2013

O “herodes”


O “Tó Ruço” herdou, da mãe, um talho, no mercado da vila. 

Nunca foi grande artista, a cortar carnes, mas nisso era bem servido pelo “Manel Garrano”, que trabalhava, para a casa, havia mais de trinta anos. 

O talho da Mariana, o melhor da vila, primava pela qualidade do que fornecia.

Mestre na "renova" do pinhal, o “Tó” afiava o ferro como ninguém e conhecia todas as estremas. 

“Tirava” duas “voltas” e não constava que alguma vez tivesse renovado um pinheiro a mais, ou a menos. 

A vida de resineiro, completava a de marchante, que exercia, para abastecer o talho.

Levantava-se ao romper da manhã e saía, para o campo, ainda a acabar de comer a bucha. 

Voltava a casa para almoçar e, depois do jantar, à volta das duas horas solares, dormia a sesta, todos os dias. 

“Ferrava o galho”, como é costume dizer-se, de hora e meia a duas horas.

O resto do dia era gasto de quinta em quinta, ou de aldeia em aldeia, visitando os currais, na procura do que o “Manel Garrano” lhe pedia, para o consumo normal do talho, ou para encomendas especiais.

A importância de bodas, baptizados e festas, media-se pelo número de reses a que se tirava a samarra.

Nestas actividades era acompanhado pelo fiel “serra da estrela”, que, de seu nome “herodes” e grande como um burro, trazia ao pescoço uma coleira de ferro, com picos afiados, do tamanho dos dedos do dono e dentes de lobos que matara, em anteriores refregas.

Naquele dia dos finais de Maio, chegou recado do “Manel Garrano”, pedindo quatro reses – dois borregos e duas cabritas – para uma festa de uns clientes muito especiais. 

E, como pedidos do “Garrano” eram ordens e interesses a respeitar, o “Tó Ruço” preparou-se para sair: foi ao curral, assobiou ao “herodes” e saíu de casa, com a garrucha de junco na mão e a jaqueta pendurada no ombro. 

Dois ou três passos adiante, já o “herodes” ia, na frente. 

Na ribeira, levantou os olhos e reparou nas nuvens negras que se levantavam para os lados do pôr-do-sol; aqueles castelos tanto podiam provocar alguma trabuzana, como não dar em coisa nenhuma, mas tinha muito respeito pelas trovoadas de Maio. 

As poldras saíam da água menos de um palmo e a força da corrente era considerável; apercebeu-se que a ribeira estava a engrossar; encolheu os ombros e fez-se à vida...

Antes do sol-posto estava na “Quintazinha”, onde o “Tonho” tinha o redil de um pequeno rebanho. 

Assobiou, assinalando a sua presença e, como que num eco, veio a resposta do pastor, que se acercava do povoado.

Na passagem do gado, lançou a mão a duas borregas e outras tantas cabritas e separou as quatro cabeças para um cortelho, ali ao lado. 

É disto que preciso, amigo; quantas notas hei-de dar-lhe pelas quatro reses?

Os dedos do marchante agarravam as reses pelo lombo, um pouco à frente dos quadris, junto da alcatra e tanto bastava para verificar a gordura, o peso e até a qualidade do que apalpavam.

O pastor levou a mão à boina, coçou a cabeça e disse, resolutamente: você não é parvo nenhum; acertou no melhor que tenho em casa e não quero crer que haja igual na freguesia. 

Menos de quarenta notas ficam onde estão e olhe que uma dessas já foi rogada, ontem, à noite, e ouviu bom dinheiro. 

Isso é gado desenxovalhado, fazenda de primeira.

O “Tó Ruço” levantou os olhos e encarou o “Tonho”, bem de frente. 

Oh! homem, então você pensa que ando a roubar, ou quê? 

Já pensou a quanto tinha de vender cada quilo para arranjar dinheiro, só para lhe pagar? 

Vá, vamos lá fazer negócio!

O “Tonho”, com o olhar vagamente fixo, disse: trinta e seis notas e não se fala mais nisso; sempre tenho negociado com a vossa casa e o que de cá têm levado, nunca vos deixou ficar mal.

Trinta e duas notas e é negócio arrumado – atirou o marchante – e, metendo a mão no bolso da jaqueta, tirou um maço de notas e começou a contá-las. 

Logo o pastor atalhou e disse que nem pensasse; era ano de bons pastos e, daí a duas ou três semanas, valeriam muito mais, etc., etc.

O “Ruço” meteu as notas no bolso e disse: então você tem palavra de rei, ou quê? 

Racha-se ao meio e pronto! 

O “Tonho” tossiu, torceu-se, voltou a coçar a cabeça e acabou por estender a mão, aceitar as trinta e quatro notas de cem mil réis e guardá-las, no bolso das calças, resmungando… 

Apertaram as mãos; o “Tó Ruço” atou as reses umas às outras e reparou que estava escuro como breu. 

Tocou o gado e a descida para o “Monte” não correu nada mal. 

No povoado, apenas um ou outro cão ladrou ao “herodes” que nem respondeu. 

Entraram na rodeira que desce dali até à ribeira, por um piso de socalcos e profundos trilhos dos rodados das carroças. 

A meio da encosta, tudo corria com normalidade até que, após um relâmpago que alumiou tudo em volta e um trovão forte e prolongado, o gado começou a enlear-se, o cão impacientou-se e fixou o olhar, no caminho, uns metros mais adiante.

O marchante lembrava, mais tarde, que, também ele, ficara sem pinga de sangue, sem saber porquê, até que viu dois lobos, especados, no caminho, de olhos muito luzidios e ar de poucos amigos. 

Segurou a corda das reses, amarrou-a a umas moitas e gritou, para o “herodes”, a senha do costume: a eles, amigo!... a eles, amigo!...

Nessa altura já cão e lobos se tinham envolvido em ataques e defesas. 

Juntou-se à “festa”, de garrucha no ar, aos gritos, e distribuiu bordoadas, tentando amedrontar as feras. 

O “herodes” agia com mestrança e cada dentada que dava fazia moça nos inimigos, até que, sentindo entre os dentes o pescoço de um dos lobos, não mais abriu a boca. 

Sacudiu, com quanta força pôde, enquanto o dono afugentava a outra fera. 

Em poucos minutos, estava ganha mais uma batalha do “herodes” – um morto e um fugitivo.

O “Tó” falando para o “amigo”, de tu para tu, como ele dizia, passou-lhe a mão pela cabeça, felicitando-o pela vitória. 

No dia seguinte eram bem visíveis as marcas que os bicos da coleira do “herodes” tinham feito nas fauces da fera morta – um corpulento lobo macho, por certo parceiro da fêmea, que fugira –

Com o lobo às costas e as reses à corda, desceu até à ribeira. 

Pelas poldras, quase cobertas de água, passou um animal de cada vez. 

O “herodes” não precisou de ajuda; foi o primeiro a fazer-se à corrente e esperou pelo dono, no outro lado, lambendo as feridas, sentado sobre as patas traseiras, ao lado do lobo morto. 

Molhado até aos ossos, o homem, olhou para trás e viu as poldras já todas cobertas de água. 

Amarrou, de novo, as reses, pegou na fera morta e uns minutos depois entrava no pátio de casa.

Gritou à Amélia e filhos para que trouxessem um candeeiro e, ali, diante de todos, estupefactos, apontou para o lobo que jazia no chão. 

Queria que fossem os primeiros a contemplar mais um troféu do “herodes” que se batera como um autêntico herói e, entretanto, já se tinha dirigido à casota, onde roera qualquer coisa e se ajeitara depois das voltas, do costume.

Chamado, saiu, ainda que contrafeito. 

Todos ficaram admirados e trataram, o melhor que puderam, as feridas deixadas pelos lobos.

Espalhou-se a notícia e, no dia seguinte, a fera foi exposta, pendurada no velho plátano do largo da igreja. 

Tinha bem o tamanho de um homem e faltavam-lhe dois dentes, tirados para a coleira do “herodes”. 

Anos mais tarde, o “herodes”, já coxo duma pata traseira, cujo presunto servira de repasto a um outro lobo, morreu atropelado.

Deixou, no seu activo, a morte de nove lobos, para além dos estragos que não chegaram a ser conhecidos, resultado de escaramuças cujos sinais trazia.

Ainda hoje, nas aldeias da região “herodes” é nome de respeito, para pastores e até, segundo crença destes, para os próprios lobos.

segunda-feira, 4 de março de 2013

Duas vidas


Pouco mais de cinquenta metros, depois de atravessar a ponte da Ribeira, deixava-se o caminho, de carro, do Sanguinhal e mal se entrava no carreiro do lagar, descia-se uns dois ou três metros e, com todo o cuidado, a escada até à levada que ligava o açude, ao Sanguinhal do Lagar e, também atravessava a ribeira, aproveitando um tapume antigo, para apanhar a levada que seguiria, margem esquerda abaixo, até à Cabeça Gorda e à Caldeirinha. 

Tinha muitos meeiros aquele açude da ribeira, que, noutros tempos, em alturas de não regas e caudal mais abundante, movimentava o lagar de azeitona, ao tempo, em ruínas e, assim, condenando a Serra a não mais ter outro lagar, durante várias décadas. 

E, quando veio um novo engenho, a força da água da ribeira foi trocada pela de um potente motor de explosão. 

O açude era montado e melhorado todos os verões e uma das tarefas era a caça às irós, a fim de diminuir, ao mínimo possível, os danos que elas causavam na represa. 

Era um local especial para a fauna aquática, uma vez que, quando cheia, a foz da represa dava até aos lavadouros da ponte, onde não se acabavam as lavadeiras e a dispersão de restos de comida e dos detritos das lavagens. 

Na primeira hortita, logo à entrada do bueiro que abre para a levada da margem direita, os mimos do Ti’Manel Rosa mal conseguiam erguer a cabeça debaixo do pessegueiro de pêssegos amarelos, assoberbado por uma latada que se estendia até sobre a nossa figueira, situada mesmo junto da estrema das duas leiras. 

Quer uma quer outra das árvores traziam as raízes nas águas da ribeira; de lá subiam as balças e a vegetação dos freixos e trepadeiras, procurando mostrar-se, por cima daquele tecto de verdura, à luz e calor do sol. 

Afinal a vida nascia de baixo e de cima: da água e do sol. As hortas, naquele recanto de frescura, estavam, pois, entre as duas vidas. 

No espaço entre o pessegueiro e as videiras que vinham da horta do Ti’Manel Rosa e a nossa figueira de belos figos pretos, abeberados, de capa rota e bojo úbere, não havia qualquer cana de milho; estava, invariavelmente, dum e outro lado da estrema, povoado de couves-galegas, que, embora com falta de luz do sol, cresciam muito mimosas e tenras. 

Havia, por ali, sinais de coelhos que, depois de saciados com a verdura apetitosa, aproveitavam o local para fazer ali o touril. 

O local tinha duas finalidades, durante os meus tempos de férias: espaço de leitura, e lugar de descanso, nas manhãs de Agosto, quando tinha a redondeza pejada de costelas, armadas aos taralhões. 

Comi ali muitos figos, pêssegos e cachos de uma videirita do nosso lado, salvo erro, da casta “fernão pires”. 

Um conjunto de três pedras, colocadas, discretamente, pelo meu pai, e dispostas de tal forma que muito se assemelhavam a um sofá, dava mais comodidade que qualquer outro lugar na nossa casa. 

Um forro de junco fresco, cortado na ribeira, dois metros mais abaixo, e ali estava um verdadeiro trono, digno de reis e príncipes que, às vezes, para ali eram trazidos pelos enredos dos livros que ia lendo. 

Sentado, virado à ribeira, não via nem era visto por quem passava no caminho. Via, no entanto, alguns metros de levada na margem esquerda e o leito da ribeira, formado por uma mistura de tufos de junco, pedras branquinhas e água a correr, de gola em gola, sussurrando músicas tão do agrado de cardumes de peixes minúsculos que povoavam as poças da ribeira. 

Na força do calor, viam-se mais pedras bulideiras, polidas pelas águas de inverno, que charcas de águas quase paradas. 

Também, como sempre foi tão ao meu gosto, devo ter ali passado horas esquecidas, a pensar. 

Recordei muitas vezes aquele local, quando me diziam se não queria reflectir um pouco mais, ao tomar decisões que poderiam parecer precipitadas, mas eram, de facto, resultantes de muita análise e ponderação. 

Sempre fui homem de grande actividade intelectual; parecendo distraído, raramente desligo a máquina. 

Naquele tempo arquitectava os caminhos da vida. Muito diferente, isso era ponto assente e seguro, da que desfrutava ali, no paraíso. 

Teria de me convencer que lá longe, não sabia ainda onde, outros mundos me desafiavam e era preciso que aproveitasse, ao máximo, os gastos com os estudos, desenvolvendo as capacidades que sentia dentro de mim e continuando sempre, na liderança, ou próximo dela, em todas as situações que a vida me abrisse. 

Sempre pela escada ascendente, deixando a descendente para os abúlicos, os fracos e os incapazes. Sempre na luta leal, nunca baixando os braços. Sempre subindo. 

Então era o estudo; havia que estar sempre no topo. 

O segredo era, tão só, nunca perder o tino, nunca levantar os pés do chão e ler muito, quer daquilo a que fosse obrigado pelos deveres diários, quer daquilo que pudesse complementar o que se ia, obrigatoriamente, aprendendo; isso passou a ser secundário para os meus objectivos. 

E os caminhos nunca se me fecharam. 

A definição da vida sentimental pôs-se algum tempo mais tarde. 

Anos depois e já pelos meandros da vida, com um rumo definido mas ainda incerto, intrigado e sem perceber bem porquê, fiquei com a sensação, na última vez que a vi, que tinha chegado a hora. Havia que assegurar que o objectivo traçado era exequível. 

Porém, não por ali, mas perto do Lis, o convite para um encontro na semana seguinte não podia ser aceite e, depois a retoma do trabalho e a ida para férias, eram factores de desencontro. 

Depois do interregno não podiam voltar as dúvidas e um novo arrefecimento ou novas negas, que eu nunca aceitei como autênticas, podiam por fim aos meus projectos. 

Analisava a minha paciência, caldeada de teimosia, e assente em muita segurança e sorria. Nunca desisti do objectivo final; a força do que tinha que ser foi, afinal, mais forte. Estava por ali o que procurava e segui nas rotas do caminho que defini. 

Anos e anos, a fio, umas vezes mais excitado, outras mais calmo e sereno, nunca fui homem de abandonar o caminho, depois de meditado, ponderado e decidido. 

Acaba-se, com o tempo, por chegar a duvidar se algo já começou, ou se qualquer coisa irá começar. Porém não faz parte do meu feitio, nem parece enquadrar-se comigo, a desistência e o abandono do rumo traçado e da luta pelos objectivos. 

O tempo, não sendo nada de concreto, pois, na realidade, nem existe mais que o presente: a cada momento, o passado já lá vai e o futuro acaba de chegar. 

Porém é um grande mestre e, naquelas calmas e cálidas manhãs, ensinou-me a aprender a esperar, não agarrado ao passado, mas aproveitando o presente para ver o futuro. 

Sabia o que queria e na altura própria veio a recompensa. Tão simples como a confirmação de que afinal podíamos continuar os nossos projectos e era por ali que deveríamos ir. 

Era a estrada por onde duas vidas seguiriam, lado a lado. 

Num livro de Aristóteles acabei por perceber e, sobretudo interiorizar, que há muito de verdade quando se diz que a água só passa uma vez por baixo da mesma ponte. 

Associei outros dizeres de gente mais simples e, por isso, mais do meu agrado, como aquele em que o poeta Aleixo glosa o vinho que vai para vinagre sem retroceder o caminho. 

A conclusão de que, só por obra de milagre pode voltar a ser vinho, diz-nos, afinal, que não esperemos milagres, prevenindo-nos para que o vinho não chegue a ser vinagre. 

Esses pensamentos iam todos ter ao mesmo fim; caminho traçado e assumido é caminho seguido. 

E, no auge de mais um fim de serão, antes de apagar a luz, tudo se resumia à determinação e confiança que a Psicologia me ensinara: os complexos não servem para nada; a sublimação dos mesmos, pode e é, por norma, motor de força e factor de segurança, quer sejam eles, em génese, de inferioridade ou de superioridade. Acabam por caldear a força que nos move e impulsiona. 

O peso e vazio do escuro, que tão bem simbolizavam o nada, ajudaram-me a adormecer, sem perceber o que teria ganho ou perdido e, em tese, se alguma coisa haveria para ganhar, ou perder. A solução era continuar. 

Na próxima vez que nos vimos, esquecidos do vazio atravessado, rapidamente descobrimos o rumo a dois e desde então temos seguido o nosso caminho. 

Valeu a pena a definição caldeada naquelas calmas manhãs de Agosto. 

De objectivo em objectivo, sempre a pulso e sem afrouxar a corda tudo tem corrido bem e num balanço simples apenas ressalta uma conclusão: 

As duas vidas que num dia longínquo, e como que por acaso, se encontraram e pareciam paralelas, afinal não o eram. 

Desde cedo se foram aproximando e a convergência inevitável acabou por vencer. 

Valeu e continua a valer a pena.