quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Chuva de prata

Toda a garotada da aldeia gostava de ouvir as histórias do velho Vicente Pisco, que morava num casebre, ao fundo da cabana onde o Ti’ Zé Coroado fazia cestos de verga.

Na nossa linguagem não havia números para dizer a idade do velhote; era velho e mais nada.

Naquele ano, à volta de mil novecentos e cinquenta, não havia escola no Posto da Serra e a garotada distribuiu-se pelas aldeias mais próximas; eu tinha a sorte de ter avós na Queixoperra e fui para lá, fazer a segunda classe.

Pouco mais me lembro, para além de que aquele ano foi muito bonito: gostei muito da Professora, dos colegas e, sobretudo, de ver muitas coisas que não havia na minha terra. Havia muitas peras, muitas casas com juntas de bois, muitos caçadores e duas coisas que, de tal modo me cativaram as papilas gustativas, que ainda consigo lembrar-lhes o sabor, na íntegra: os queijos da minha avó e as passas de figos brancos, da figueira da Amarela.

No Pito Cerro tínhamos laranjas muito doces, na horta do Ribeiro, cenouras – coisa que nunca tinha visto na Serra –, na Matagosa, água muito fresquinha e no Ougueiro, ao fundo do Pito de Horta, alhos, cebolas e alfaces e uma nora.

Uma coisa me incomodava: dado o elevado número de caçadores, havia muitos cães e eu tinha medo deles. Era um consolo subir e descer a azinhaga da Bica, quando ia a recados à loja do Ti’ Zé Maia, ou do Ti’ Silvestre: subia e descia sem encontrar um único cão.

Morava no casal, junto das casas da gente mais velha da terra e, da varandita do meu avô, via entrar e sair o Ti’ Vicente Pisco.

Diga-se que Vicente era um nome vulgar na Queixoperra e não havia nenhum na Serra. Aqui está mais uma novidade, para mim, entre muitas outras que me enriquecerem, de tal modo, que ainda hoje guardo um carinho especial pelos usos e costumes da terra e pelas suas gentes.

Ouvi, com outros miúdos, muitas histórias do velhote. Retenho-as, na sua grande maioria, na memória. Há, porém, uma que várias vezes se adianta e sobrepõe às outras: a do dia da chuva de prata.

Contava, sentado no degrau da sua porta, o Ti’Vicente Pisco: Há dias para tudo; uns melhores, outros piores e muitos nem bons nem maus.

Há dias que só vêm uma vez: só temos um dia para nascer e só outro para morrer. Um dos meus segredos é saber quais são esses dias: para nascer é o primeiro e para morrer é o último, da vida de cada um.

E olhem que já tem vindo aqui à minha porta o dia de morrer, mas eu, nesse dia, vou-me embora para longe, para as Fontainhas, ou para a Lameira Cimeira. É por isso que sou o mais velho da aldeia.

Há dias que nos ficam na lembrança e outros que teimam em não nos sair dela, embora gostássemos de os esquecer.

Há dias bons e dias maus – vocês conhecem o Ti’Manel Dias, das Barreirinhas? E que vos parece?
É claro, é mau. Assobia aos cães quando vocês lhe passam à porta!...

Nós, lá íamos abanando a cabeça, até que o João do Ribeiro, ou o Heitor – outro nome que também não havia na Serra –, lançavam o desafio: Oh Ti’Vicente, e é verdade que há um dia que chove prata?!...

Completamente verdade. Foi-me dito pelo meu avô e olhem que era homem que nunca mentia!...

Ele andou toda a vida para encontrar esse dia e parece-me que calhou numa altura em que tinha ido a alguma feira, ou quando andou na tropa. Acabou por não o descobrir.

Eu, aqui há uns anos, acordei com o chão coberto de branco. Vesti as calças, a correr, e fui à tapada para apanhar a prata, mas ainda não era o dia de chover prata; era, apenas, uma das poucas vezes que caiu neve cá na terra.

Palavra de Vicente Pisco: podem estar descansados que quando estiver para chegar o dia da chuva de prata, eu mando avisar todos – não quero que ninguém fique sem poder guardar um bem tão raro –.

Olhámos uns para os outros, muito crédulos, e fomos embora!...