segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Don Pepe & Doña Maria

Igreja de Santa Clara - Alcaravela 
A festa de Alcaravela, que, em cada ano, tinha lugar num fim-de-semana de Agosto, era um dos pontos altos na vida da aldeia, sobretudo entre os mais jovens, que ali começavam, ou continuavam, os seus derriços.


De cariz, genuinamente, popular, tinha início no sábado, com os encontros entre familiares e amigos. Continuava, com uma forte "alvorada", de foguetes e morteiros, ao pôr-do-sol e, depois, à chegada do conjunto musical que, se revezava com o acordeonista, começava o baile.

No domingo, durante a manhã, percorriam-se as ruas, ao som da Filarmónica de Sardoal, fazendo o peditório, para a igreja. Seguia-se, a missa, na igreja matriz, de Santa Clara, apinhada de gente.

Terminada a procissão, que se seguia à missa, fazia-se o leilão das fogaças e comiam-se as merendas, levadas por cada grupo de romeiros.

Da Serra ia sempre uma grande comitiva: uns com destino à missa e procissão, outros para encontrar familiares e amigos, beberem uns copos e falarem de negócios. Os mais jovens esperavam, com impaciência, a animação e o baile.

Os rapazes compravam os bilhetes para as séries de três danças, tomavam lugar junto ao estrado e logo que se iniciava a música convidavam, por sinais, ou de viva voz, as raparigas que mais lhes interessavam. Quando se notava insistência na escolha de um par, os outros afastavam-se, discretamente.

Nas mesas, à volta do "dancing", as mães, tias, mirones e raparigas não convidadas, nessa dança, seguiam, atentamente, tudo o que se passava e iam coscuvilhando. Os homens bebiam cervejas e copos de vinho, enquanto conversavam com os amigos.

Alta madrugada, organizavam-se os grupos, de regresso às aldeias: os "moços soltos", os "casalinhos apalavrados" e os que aproveitavam a calada da noite para "pedidos de namoro".

Num dos regressos das festas de Alcaravela, um par de namorados – a Maria do Cimo da Eira e o Zé, da Tojeira –, afastaram-se do grupo, para irem à vontade. Queriam começar naquela noite uma fuga de vinte e cinco anos.

No Vale das Onegas, os rapazes deram pela falta do “casalinho”, mas não ligaram ao assunto; a terra havia de dá-los. À chegada à Serra, não apareceram.

De manhã, espalhou-se a notícia: a Maria do Cimo da Eira não voltara para casa. Vieram, mais tarde, notícias da Tojeira que confirmavam a falta do Zé. 

Ao fim de uma semana, o padrasto da rapariga comunicou na GNR o desaparecimento da enteada, que tinha sido vista, pela última vez, no regresso das festas de Alcaravela, na companhia do namorado, um rapaz da Tojeira, que também estava desaparecido. Passaram anos sem sinais dos desaparecidos. Acabaram por cair no esquecimento.

Vinte e cinco anos depois, apareceu, na festa de Alcaravela, um casal de meia-idade, num imponente automóvel de matrícula estrangeira e sinais ostensivos de luxo: anéis, pulseiras, relógios, cordões, brincos e correntes de ouro.

Todos olhavam, deslumbrados e interrogavam-se: Quem serão? De onde virão? O que os traz até aqui?

Por entre a agitação e falatório, um irmão da Maria do Cimo da Eira olhou a estrangeira de frente e exclamou: Por onde tens andado, Maria?!... Afinal, és tu e estás viva!... Dá cá um abraço, mulher!... 

Espalhou-se a notícia, juntou-se o povo e todos afirmavam ter já desconfiado que se tratava do Zé da Tojeira e da Maria do Cimo da Eira - os desaparecidos de há vinte e cinco anos. 

Os forasteiros, entre beijos e abraços, explicaram que acabavam de chegar, da Argentina, onde estavam há mais de vinte e três anos. Lá, no outro lado do Mundo, Don Pepe & Doña Maria – como eram conhecidos –, tinham mais terra que toda a freguesia de Alcaravela, mais de três mil cabeças de gado e uma "finca" nos arredores de Córdoba, no centro do país. Nunca tiveram filhos e resolveram vir agora a Portugal, agradecer a Santa Clara e ao Senhor dos Aflitos, da Serra, as ajudas nas horas difíceis.

Nos dois meses de férias, que repartiram entre as aldeias da sua naturalidade e diversos passeios pelo país, fizeram bem a muita gente. Regressaram à Argentina sem falar no seu desaparecimento. Levaram dois sobrinhos que iriam preparar para lhes suceder na administração da firma de Import & Export, Pepe & Maria , S.A., nos arredores de Córdoba, na Argentina.

Antes de partir, deram meios e instruções ao irmão da Maria do Cimo da Eira para que mandasse construir uma imponente vivenda, na Serra, onde pensavam voltar para passar o resto dos seus dias. 

Muitos anos mais tarde, foi encontrado, nas ruínas da casa, um caderno de duas linhas, com uma série impressionante de nomes de localidades, de diversos países, contas de transportes e até uma caixa, de lata, com um rolo de notas de dólares e pesos argentinos, que havia ali ficado por esquecimento.

Os apontamentos acabaram por desaparecer e as notas extraviaram-se, pois, um pedreiro, que trabalhava em Lisboa, levou-as para tentar cambiá-las no Banco de Portugal e não deu mais conta delas. Exibiu um recibo, dizendo que se tratava de notas sem curso legal e já sem qualquer valor.

Ninguém mais se interessou pelo caso, não passando, hoje, de uma história que todos vão esquecendo.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Zézito e os passaritos


Não havia na Terra, nem nas redondezas mais próximas, quem melhor pusesse o laço a um melro – por mais amarelo que tivesse o bico – ou melhor disfarçasse uma azeitona, na boíz, colocada no meio das estevas e para enganar o finório tordo.


Cosido com os cômoros das levadas, camuflado no meio de uma touça de moitas, ou disfarçado por uma carqueja, o Zézito observava, atentamente, como os pássaros se moviam, de onde vinham, para onde iam, quanto tempo demoravam no voo.

Sabia que um melro que saísse da sombra das parreiras da sua horta, tomaria, invariavelmente cinco destinos, consoante a altura e inclinação do levantar do voo, a posição do sol, a direcção dos ventos, a presença de pessoas nas hortas vizinhas, ou de outras aves na zona. 

A própria hora do dia interferia no voo dos pássaros. 

Sem que disso se apercebesse, passava horas a recolher e trabalhar toda esta informação. 

Distraía-se, muitas vezes, das leituras dos “clássicos” e, não raras vezes, se esquecia do livro que levara, de casa, para ler. 

Mas o gozo destes laços, que a Natureza lhe estendia, era superior a tudo o que as mais belas literaturas lhe poderiam ensinar.

Os cantares das aves têm timbres diferentes, exprimem estados de calma, chamam os filhos, avisam as outras aves do bando da presença de predadores, mas também reconhecem um amigo e convidam um dedicado admirador a ouvir uns trinados harmoniosos, ou uns acordes em nada inferiores aos das maiores obras musicais.

Na altura dos ninhos, sabia de todos os do seu raio de acção – da Ribeira, por alturas da ponte, à Renda, junto da azenha, passando o Lavadouro, Brejos e Vale das Lousas, até à Portela da Casinha –.
Mesmo os das carriças – os mais difíceis de localizar –, tão bem camuflados nas paredes da ribeira, ou no meio do musgo das árvores, não lhe escapavam. 

O passarito, que é o mais pequeno daqueles sítios – pesará entre os 8 e os 10 gramas –, solta, invariavelmente, um trinado prolongado e inconfundível, sempre que sai da porta da sua casa. 

Depois, é só procurar com paciência a abertura do ninho, ou aguardar o regresso do inquilino.

Muita confusão lhe causava o cuco que parecendo brincar, ia anunciando “cucu”...”cucu”... cantando, ora à direita, ora à esquerda; umas vezes no alto da Lomba, outras nos Brejinhos.

Havia que esperar, verificar se não seriam dois pássaros diferentes, um de cada lado da ribeira.

Este “passarão”, que além de grande, assim poderá ser classificado por ser pouco escrupuloso, deita fora dos ninhos os ovos que encontra, colocando em seu lugar os seus próprios ovos, transformando, assim, as bem intencionadas avezinhas em amas dos filhos alheios.

Na época dos taralhões, entre os meados de Agosto e de Outubro, o Zézito saía, ao romper do dia, com o molho das costelas e espalhava-as, de árvore em árvore, nos sítios mais frequentadas pela passarada que, daí a pouco, despertaria, com o sol. 

As maresias daqueles finais de Verão e começos de Outono, davam mais brilho aos primeiros raios do sol e faziam luzir as asas das formigas - agúdias – que atraíam os passaritos para as costelas, mal sabendo que seria o último bichito que já nem chegariam a comer.

Estariam, isso sim, na argola de arame, pendurados pelos biquitos, como troféus de caça, exibidos, com todo o orgulho, aos primeiros agricultores que começavam a chegar às hortas, para fazer as regas, ou apanhar as hortaliças.

Na sementeira do milho, pelos fins de Abril, depois de ceifado o ferrejo e levado para fora da horta, onde ia secar, para poder ser guardado no palheiro, fazia-se a lavoura da terra. 

Os torrões e as leivas, de barriga para cima, para arejar e curar as terras, permitiam a uma infinidade de pequenos vermes, formigas, ratitos e doninhas, apanharem um pouco de sol o que para muitos era o fim, acabando na moela das arvéolas, dos melros, das megengras e das toutinegras, além de muitos outros passaritos, atraídos, das redondezas, pelo cheiro de terra húmida, ou pelos avisos dos habitantes. 

Dava gosto ver aquela passarada a fazer pela vida.

Depois de dessorada a terra, gradava-se e fazia-se a sementeira do milho, por duas ou três pessoas; uma coveando, outra semeando e uma terceira tapando as covas e alisando a terra. 

Pela tarde, depois do jantar – a refeição do meio-dia tem este nome, nesta região – e respeitada a sesta, tudo ficava calmo. 

A terra semeada, tomava o aspecto de seca e um ou outro bago de milho, escapado na sementeira, brilhava ao sol e, visto pelas rolas, logo as atraía ao repasto.

Lá estava, novamente o Zézito, estudando-lhes os movimentos, vendo os trejeitos do voo, a direcção do arrulhar e a inclinação do sol. 

Depois espalhava pela horta uma meia dúzia de costelas grandes, onde aplicara um bago de milho furado, bem polido para brilhar ao sol.

Sentava-se, a alguma distância, debaixo da copa duma árvore, que, além da sombra, lhe servia de camuflagem, e esperava... agora sim, lendo mais algumas páginas do livro que levava, ou, olhando, indefinidamente, em redor, ouvindo o marulhar das águas na ribeira, ou saboreando simplesmente a calma e serenidade dos campos, agora que a azáfama dos trabalhos abrandara.

Pelo pôr-do-sol chegava a casa com uma ou duas rolas penduradas na argola de arame, onde pendurava os troféus de caça.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O “minhoto”



Tinha altura abaixo de mediana, cabelos muito pretos e fartos, ombros anormalmente largos e rosto comprido, de que sobressaía o nariz, muito afiado. 

Os olhos, muito negros e de expressão mais melancólica que triste, brilhavam por cima de uma barba negra e farta, mal cuidada e confundindo-se com a cabeleira. 

O mais notório, todavia, era o tamanho dos pés – grandes e largos, com sinais de há muito não conhecerem calçado e encardidos pela sujidade acumulada –.

Caminhava com passo curto e apressado e não se misturava com os outros pedintes. 

Vinha à aldeia todos os meses, visitando todas as casas como esmolante e, com algum laconismo, apelava à caridade alheia.

Terminada a volta, sentava-se na taberna e ia descarregando, da esmoleira para cima da balança, os nacos de pão, as batatas e cebolas, uma ou outra peça de fruta e uns pedaços de toucinho. 

O azeite era pago à parte e, se aparecia algum enchido, diferente de farinheira, era retirado do conjunto da venda.

O Ti Manel, taberneiro e merceeiro, pagava tudo ao mesmo preço: quase sem olhar para a balança, abria a gaveta do dinheiro e retirava duas ou três moedas, que dariam para duas ou três “metades” de vinho. 

E ia logo enchendo o copo que, ainda antes de ser lavado, havia de servir para a segunda e terceira doses. 

Aí pelas duas horas, havia sempre uma ou outra alma caridosa que vinha trazer a melhor esmola: uma malga de caldo quente. 

Depois disso “o minhoto” falava, ralhava consigo próprio, interrogava-se e acabava por cair em sonolência, até que, pouco depois do pôr-do-sol, se recolhia à “malhada”. 

No outro dia, ao romper do sol, já andava a dar a volta noutra aldeia.

Dizia-se, desta personagem enigmática, que tinha sido homem de letras, transtornado por algo, muitos anos antes. 

Teria à volta de sessenta anos – para mais – e, quando sóbrio, o que era raro, ainda acertava no que dizia e discorria, com os estudantes da terra, sobre Geografia, História e Ciências; deixava escapar conhecimentos de francês, espanhol e inglês, até que... 

Calava-se, de repente, quando se apercebia que estava a falar de mais.

Corriam mais de uma dúzia de histórias sobre a “biografia do minhoto”: que era casado e tinha filhos; que a mulher o tentara envenenar e expulsara de casa; que uma fraqueza das ideias o fizera “variar” e abandonar tudo; que era senhor de meios de fortuna, mas preferia a vida de ermitão e pedinte, etc.

A verdade, porém, é que ninguém ousava interpelá-lo, sobre a sua identidade ou vida. 

Se era apanhado pela guarda, fazia-se de parvo e apoucado e, ainda antes que conspurcasse e infestasse os calabouços, era posto em liberdade. 

Quando não reagia violentamente a uma ou outra pergunta, respondia: sou o minhoto, não tenho terra, nem família, nem sei mais nada a meu respeito... ponto final e acabou-se a conversa!...

Um dia, já com os copos, outro mendigo ameaçou-o de dizer tudo a respeito dele. 

Conheço-te, bem sabes, a ti e a tua família; não és do Minho...

Não disse mais nada, pois uma paulada bem assente, imobilizou e calou de vez o atrevido pedinte. 

Quanto ao minhoto, com o pau na mão e a tremer de medo, escapuliu-se, sem dizer ai nem ui. 

Presente ao cabo-de-ordens da aldeia, o minhoto, manso como um cordeiro, entregou o cajado e aguardou. 

Depois de passar o raspanete do costume, o ti Manel Mendes, mandou “o minhoto” em paz e avisou que não se metessem com ele, pois em mais de vinte ou trinta anos que passava pela aldeia, nunca provocara desacatos.

Daí em diante, todos os que tentassem, ou simplesmente ameaçassem, identificá-lo, eram avisados que não deveriam fazê-lo, uma vez que, a partir daí, tudo poderia acontecer-lhes... ponto final!....Não gostava que falassem da vida dele e tinha esse direito, acrescentava o cabo-de-ordens.

Correram os anos e “o minhoto” foi passando, tal como tantos outros mendigos, pela aldeia. 

Um dia, porém, chegou a notícia:

O “pobre”, a que sempre chamaram “o minhoto”, morreu, lá para os lados do Codes. O nome verdadeiro – José de Sousa – foi encontrado entre os trastes que guardava no sarrão das esmolas. 

Foi professor e viveu bem, numa aldeia dos contrafortes da Serra da Estrela. 

Esteve emigrado, na Europa e ganhou muito dinheiro na candonga e no volfrâmio. 

Foi atraiçoado pela mulher, conluiada com um sócio dele, acabando os dois por desaparecer, misteriosamente. 

Trabalhou nas minas da Panasqueira, tendo desaparecido após uma pequena derrocada numa das galerias. 

Não mais foi referenciado e, não se sabe bem porquê, não consta que tivesse sido procurado.

Serão dignos de crédito estes elementos referentes “ao minhoto”, ou continuarão a ser peças de uma existência obscura, que nunca conheceremos e que o próprio guardou, até ao fim dos seus dias?