domingo, 21 de dezembro de 2014

Era uma vez.... Um NATAL na aldeia.


BOAS FESTAS PARA TODOS
...sem excepção.


Nos meados do séc. XX, começou a debandada das terras do interior para a cidade de Lisboa – normalmente o homem, ou homens da casa deixavam as mulheres a tratar as terras e a cuidar dos filhos e procuravam, na capital, um trabalho na construção civil ou um emprego na Carris, nos Telefones, nas Polícias ou nos Ministérios. 

Tudo dependia dos conhecimentos.

Nas tardes de domingo, quando não se faziam umas horas extraordinárias, juntavam-se aos magotes nas praças e jardins de Lisboa e arredores, grupos de trabalhadores de cada região. 

Depois da missa e do almoço convergiam em grupos para junto dos conhecidos, para saber notícias da Terra, para procurarem novos trabalhos, para conviver e até, muitas vezes, para vestir roupa lavada e fazer uma ou outra extravagância, no café e na taberna.

O Ti’Alberto Carpinteiro, trabalhava, como mestre de cofragens, nas obras dos prédios que, como cogumelos, cresciam, às dúzias, no meio das oliveiras do local onde viria a ser o futuro Bairro dos Olivais. 

Pernoitava na barraca da obra, onde, junto com os colegas, faziam as refeições. 

Aos domingos à tarde, saía em grupo, a corta mato, por Chelas e Areeiro até ao Campo Pequeno, para onde puxava a rapaziada da Carregueira, Aboboreira e Alcaravela. 

Estes grupos passaram, mais tarde, a organizar excursões que saíam de Lisboa, depois do trabalho de sábado e regressavam na noite de domingo. 

Dava para ir levar a roupa suja, trazer alguma coisa para comer e ver mulher e filhos.

O Ti’Alberto, carpinteiro de apelido e de profissão, não era homem de grandes jogatanas nem sociedades de copos. 

Andava por ali, vendo montras, tirando ideias e pensando na vida. 

Não puxava para grandes falas, mas não queria andar por fora das novidades e umas vezes ficava lá pelo Campo Pequeno, outras ia até ao Terreiro do Trigo, ao Jardim da Parada, ao Príncipe Real, ao Rossio, etc. 

Tinha muitos conhecimentos na arte e não eram raros os pedidos que recebia dos que procuravam trabalho, porque queriam mudar, porque tinham sido dispensados, ou porque acabavam de chegar da Terra.

Um domingo de Novembro, depois de estar a ver uma partida de sueca, numa mesa do Jardim da Parada, resolveu dar uma vota pelas redondezas para aquecer os pés e ver as montras. 

Em frente duma loja, pensou, de repente, em levar ao neto, uma coisa que nunca tinha tido: um brinquedo para pôr no sapato do Joãozito, na noite de Natal. 

Havia ali de tudo: bonecos articulados, piões, coisas para fazer barulho, camionetas de carga, de bombeiros, etc.. 

Andavam pelos dez escudos…

Mas havia coisas muito bonitas e bem-feitas!..

Terá ficado ali a mirar a montra, mais de meia hora. 

Até que um colega se chegou a ele e perguntou: o amigo está a sentir-se bem? 

É que está aqui há tanto tempo, que já estávamos em cuidados!...

Nada, nada!... 

São cá coisas minhas. Nunca tive brinquedos assim e lembrei-me que o meu netito, havia de gostar de ter uma camioneta daquelas… mas a loja está fechada e durante a semana não posso vir cá buscá-la…além de que nove mil réis é quase meio dia de trabalho!..

Ora, ora, Ti’Alberto, o dinheiro é para se gastar. Vir cá buscá-la é que custa quase outro tanto. 

Mas, sempre se ouviu dizer que o mestre é um grande artista na madeira… 

Com uma perna às costas, tire aí uns desenhos e faça uma coisa melhor que a que estamos a ver. 

Até o seu neto irá gostar mais, se souber que o avô é que fez a camioneta de madeira. Pense nisso!...

Já nessa noite o Ti’Alberto teve dificuldade em adormecer. 

Madeira arranjava com facilidade. Ferramenta e tudo o resto, também. Habilidade, não havia nada como tentar e nas três semanas seguintes juntou tudo o que precisava, serrou, limou, lixou, furou e quando tinha tudo pronto pediu ajuda a um pintor e os dois acabaram a pintura e montagem da camioneta. 

Tinha marca, matrícula, volante e até uns pneus de borracha. Uma verdadeira obra-prima, disseram todos os que a viram. 

Até diziam que, se quisesse, podia ganhar dinheiro a fazer coisas daquelas, pois eram muito melhores que as das fábricas. 

Media a camioneta 40cm de comprimento pelo que não havia, lá pela obra, uma caixa para meter a peça. 

Até que um vendedor de ladrilhos lhe trouxe uma caixa de cartão, sem quaisquer nomes nem desenhos, para guardar o brinquedo. 

O último trabalho foi, pois, pintar e embrulhar a caixa. 

Mas, antes de fechar o embrulho, lembrou-se de dois pequenos chocolates que lhe tinham saído numa rifa e que ele guardava, ciosamente, para dar ao neto, como prenda de Natal. 

Embrulhou, cuidadosamente, os doces e colou-os na caixa de carga da camioneta. 

Era o primeiro transporte que ela fazia….

Nas últimas semanas antes do Natal, na viagem à Terra, conversou muito com o neto, levando a conversa para brinquedos, para camionetas, carrinhos…para ver quais as reacções do pequenito, ao tempo nos seus nove anitos. 

Soube que era muito bom aluno, lá na escola, que tinha escrito uma carta ao Menino Jesus a pedir que lembrasse o Pai Natal que não se esquecesse dele… 

Então e o que pediste de prenda, João?

O Ti’Alberto ficou atónito quando o neto lhe disse: uma camioneta grande, para poder levar e trazer mercadorias e poder ganhar dinheiro suficiente para o avô e o meu pai não precisarem de sair da Terra. 

Mas devem ser tantos os meninos a pedir assim coisas importantes que, certamente, como nos outros anos, só vou receber algumas meias, ou alguma coisa que precise para a escola. 

Ouvi dizer que uma camioneta como eu gostava custa muito dinheiro e também pensei se depois não era preciso tirar a carta antes de poder trabalhar com ela. 

Logo se vê, avô, mas olhe, se não for, paciência…

Dali em diante não sabia o Ti’Alberto qual dos “meninos” andava mais ansioso pela chegada do Natal: se o neto, se o avô!... 

Tinha dificuldade em adormecer, imaginava como devia ser a cena da chegada do embrulho ao sapato do neto, como havia de disfarçar os chocolates, se devia ou não pôr alguma marca, etc…Ah! e uma buzina como a das bicicletas!...

Até que chegou o dia da consoada e quando chegou a camioneta da excursão com os homens de Lisboa, um dos que os aguardavam era, nem mais nem menos que o João Carpinteiro. 

Agarrou-se ao avô e mirou-o, de alto a baixo, estranhando um saco, maior que o normal, que o avô trazia às costas. 

E dirigiam-se para casa, quando o Ti’Alberto disse: João, ali o Ti’Manel do Ribeiro tem estado doente e não pôde vir. Pediu-me que lhe trouxesse aqui umas coisas para a Tia Amélia. Vai andando para casa que eu vou por lá deixar o recado e já te apanho em casa. 

E separaram-se.

O Ti’Alberto foi a um palheiro esconder a encomenda e depois dirigiu-se para casa. 

Como quando chegou o volume do saco era mais pequeno e a mulher lhe perguntou se o compadre Manel estava melhor, tudo passou despercebido e ainda que agora mais ansioso que o próprio neto, foi até à taberna e depois de conversas de ocasião, meteu a mão ao bolso e vendo as horas, despediu-se, pois ainda tinha umas coisas que ultimar, porque no dia seguinte era dia de consoada. 

Estava inquieto…

Foi, por cima do telhado, até à chaminé. Tirou o novelo de guita do bolso e atou-lhe uma pedra na ponta. Meteu o cordel por uma das aberturas e deixou cair até chegar à lareira. Fixou o cordel pelo lado de fora da chaminé e entrou em casa, dirigindo-se à lareira. 

Escondeu a ponta do cordel dentro da chaminé, por cima das varas dos enchidos e pronto, não se falou mais no assunto. 

Cearam, fizeram-se as filhós, e foram todos para a cama.

Nessa noite o Ti’Alberto não se conteve e, como se fosse ele que estivesse para receber um presente muito desejado que nunca tinha tido, contou à mulher todo o enredo da prenda que preparara para o Joãozito e do que tinha planeado para o dia seguinte:

Depois da ceia o João ia buscar uma das suas botas e punha-a, na lareira para que o Pai Natal, mandado pelo Menino Jesus, viesse trazer-lhe alguma prenda e ia para a cama. 

Algum tempo depois ele prendia a caixa que tinha no palheiro à ponta da guita e içava-a para dentro da chaminé de modo que não se visse de dentro da cozinha. 

Nessa altura a avó ia chamar o João, dizendo que estava à lareira mais o avô e ouviram uma restolhada na chaminé, pelo que o avô foi lá fora ver o que se passava. 

E ela também tinha ouvido qualquer coisa dentro da chaminé, pelo que deviam ir ver o que se passava.

A cena seguinte é indescritível: 

A caixa de cartão, descendo lentamente na direcção da bota e finalmente pousando sobre ela, depois o fio caindo e finalmente ouviu-se a voz do avô, gritando:

Ouça, senhor Pai Natal, venha cá, não fuja que não lhe quero fazer mal. Só queria que o meu neto lhe agradecesse e que dê um grande abraço ao Menino Jesus que o mandou. 

Adeus, até para o ano!….

E, ainda o João não tinha tido coragem para começar a abrir a caixa de cartão, já o avô chegava para contar o que se tinha passado. 

Mas, atalhou o neto: foram as nossas conversas avô. 

Eu comecei a acreditar que era possível e fiz muita força. E conseguimos avô!...

E abraçou-se aos avós e aos pais, entretanto também chegados, pois ouviram o avô aos gritos em cima do telhado e vieram ver o que se passava.

Patético!... 

O João não sabia por que ponta havia de começar. Quando abriu a caixa e viu a camioneta, nem queria tocar-lhe…iria sujá-la!... 

Seria verdadeira? Estava acordado? Seria aquilo um sonho? 

Depois deitou-se no chão da cozinha, olhou a camioneta de todos os ângulos, apalpou os pneus... verdadeiros! 

Torceu o volante…rodava!... 

Não, Não podia ser verdade… Até que adormeceu…

O Ti’Alberto apenas disse: 

Recebi, hoje, com mais de cinquenta anos , o melhor da minha vida!...