sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O “calhordas”

O “Calhordas”, foi-o, desde que aos vinte e dois anos, na sala de audiências do 1º andar do edifício da Câmara Municipal de Mação, afirmou, sob juramento, como testemunha num julgamento por pequeno furto, que não sabia quem era o ladrão, mas o Ti’Manel da Eira não era, porque esse conhecia-o ele bem e tinha a certeza que o vulto que viu não era o dele.

Era passarão mais alto, mais entroncado e andava em cabelo, como nunca tinha visto o Ti’Manel, que é homem mais baixo e mais fracote.

Embora fosse de noite dava para ver bem as diferenças, afirmou a testemunha Francisco Terras, quando foi mandada levantar pelo senhor juiz, todo vestido de preto, atrás duma grande mesa.

Acabou por ser absolvido o réu Manuel Martins, que todos conheciam como Manel da Eira, por falta de provas e nunca foi condenado ninguém pelo furto da meia dúzia de abóboras, roubadas da horta do Ti’João Lopes.

O queixoso é que nunca ficou convencido da inocência do larápio;

Todavia ante as ameaças do Ti’ Manel da Eira, limitou-se a dizer, na taberna, para descargo de consciência, que depois daquele “calhordas”dizer ao juiz o que disse, não havia outra possibilidade senão absolver o Ti’Manel da Eira.

Por causa do “calhordas”, que nunca será mais que isso, ficamos por aqui e não se fala mais nisso.

E assim foi: o Chico, do Zé Terras, ficou “O Calhordas” para o resto dos seus dias.

O garoto nasceu ao princípio duma noite chuvosa e gélida de finais de Outubro.

Acabou por não dar grande trabalho à “comadre Luísa” que o aparou e lavou na bacia de água quente, num dos quartos dos fundos da casa do Terras que, minutos depois, já na tasca de baixo, mandava vir uma rodada para os presentes, em honra do seu primeiro rebento.

Com alguma emoção, diria, depois de emborcar o copito, que chegou a temer a sorte do gaiato, a avaliar pela mulher que quase não tomou barriga e havia dias que nem sentia a criança.

Graças a Deus estava enganado e o garoto parece que vem esganado com fome; não faz outra coisa que não seja berrar.

Mas, se a “comadre Luísa” diz que está tudo bem e amanhã já parecerá outro, fico descansado.

Deite lá mais uns copos à saúde do Chico, que assim se irá chamar se o meu futuro compadre se não opuser.

Depressa correu a notícia que a Florinda do Terras já tinha tido gente nova e que o menino, embora franzino, fazia pela vida, e tinha boas goelas para berrar.

Cresceu, fez a escola e ajudou os pais nos trabalhos de casa.

Aos dezasseis anos foi aprender a arte de carpinteiro e chegada a altura foi para o serviço militar, assentando praça em Elvas.

Passados dois anos e pouco, voltou à aldeia e continuou a ser o Chico do Terras, até que, depois daquela audiência no tribunal de Mação, todos lhe passaram a chamar “o calhordas”, como foi rebaptizado pelo Ti’João Lopes.

A alcunha, que não incomodava minimamente o Chico, nem alguma vez rejeitou, embora não soubesse o que queria dizer semelhante palavra, era, afinal, mais uma.

Só a Senhora Professora, O Senhor Juiz e os Senhores lá da tropa o chamaram pelo seu verdadeiro nome – Francisco –.

Todos os outros – os pategos lá da terra –, sempre lhe chamaram Chico e isso nunca o incomodou.

Vinha mais uma alcunha, ditada por outro ignorante e não havia de ser isso que o ia incomodar.

Assim, como assim, dizia ele, galhofando, sobretudo quando já estava animado, junto do balcão da taberna:

O meu padrinho, que Deus tem, nunca passou de Chico Figueira e até Cabo de Ordens chegou a ser; O meu avô, que também já lá está, sempre foi o Chico Cabreiro e nunca deixou de ser homem por isso.

Porque haveria eu de ser diferente deles e… se um dia vier a ter um filho e me quiserem fazer a vontade, há-de ser mais um Chico na família.

De facto, quando, anos mais tarde, foi a vez de ir registar o filho e se dirigiu a Penhascoso, onde o senhor Mário Serras era o encarregado do Posto de Registo Civil, teve lugar uma bela história protagonizada pelo “Calhordas”:

O senhor é o pai. Então diga-me: a criança é masculino ou feminina?

O “Calhordas”, empertigou-se, incharam-lhe as veias do pescoço e, com os olhos arregalados, exclamou: espere lá, senhor Mário Serras, não quero nada disso para o meu filho!...

Qual Marcolino, qual Firmino…Será Francisco, como o pai!...

E depois, já mais calmo e a pouco mais de meia voz:

É claro, que os ignorantes da aldeia vão sempre chamar-lhe Chico e muitos acrescentarão Chico do Calhordas, mas isso não será desonra nenhuma para ele uma vez que para mim também nunca o foi.