quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Noite e Dia


 
Quando releio as "histórias de gente simples" fico com a sensação que, por trás delas, ficaram outras histórias por escrever, que correm o risco de acabar por ficar inéditas.

E, num primeiro impulso, acho incompleto o meu trabalho.

Nessa frustração - a palavra é forte de mais - as histórias continuam a apelar à imaginação, a espicaçar a memória e a dar largas às ideias emergentes do turbilhão de negaças, que rodopia no imaginário e na vida das personagens.

Eu sou o primeiro, senhora professora; sou "Feliz" e até nem discordo do nome que me puseram; e não percebo porque se há-de começar com o "Varisto".

Ele deve ser dos últimos, antes dos Xicos e dos Zés, que, aparecem Franciscos e Josés!

Não és o primeiro, não senhor; antes de ti será o Evaristo. É este o nome do teu colega, ainda que muito poucas pessoas da aldeia o reconheçam pelo seu verdadeiro nome.

Assim como o teu; devia ser Félix, mas acabaste por ser registado como Feliz, por engano do senhor Mário, do posto de Registo Civil.

Esta troca de palavras recorda-me uma cena, na sala da escola da aldeia, na minha quarta classe.

A senhora professora chamou para o quadro preto o Evaristo.

Ergue-se, de rompante, o Feliz, que, altivo, se arrogava o direito de precedência dada a ordem alfabética dos nomes próprios.

Não sei porque me terei lembrado disto...

No fim são as recordações, meio apatetadas, que amainam a vertigem do carrossel das dendrites e dão folga aos neurónios, baixando o ritmo das "histórias de gente simples”, que contemplam e dão alma a essas personagens que, como os transístores, ou os chips, de um qualquer aparelho electrónico, desconhecem o seu real valor, mas acabam por ser fundamentais, em sofisticados mecanismos.

As cenas da vida calma e pacata, da gente simples, serão como as cores dum quadro; só criam depois de perderem a sua identidade e interagirem entre si.

É então que a imaginação faz o resto: sublima e dá corpo ao criativo e artístico.

Também nas histórias, cada um pode, depois, ver, sentir e fazer o que quiser. Os padrões, a sensibilidade e os desejos são os de cada um, tal como o direito de gostar ou detestar, aplaudir ou reprovar, conhecer ou ignorar.

Ah! Se os poetas tivessem o privilégio e a oportunidade para explicar todos os enganos, exageros e erros que alguém (críticos, declamadores e simples intérpretes) acabou conectando com as suas palavras!

Ou se os heróis assistissem ao filme dos seus próprios feitos, alcançassem a dimensão e percebessem as análises hiperbólicas dos actos realizados para satisfação das motivações básicas, visando, tão só, a preservação da espécie!

É que há a imaginação que acaba por condicionar todos os tipos de análise; há os entrechos, mesmo nos filmes, que é difícil refazer - não é de ânimo leve que se cenografa o peso da escuridão, a bruma do denso nevoeiro, o barulho da cacimba, o silvar do vento!

Ou, antes de tudo se recolher, o crepitar da lareira. O bruxulear da luz baça da candeia e o pio da coruja na torre da capela.

A força do silêncio é entrecortada pelos mais pequenos ruídos, e mais além, no virtual e intemporal, pelo ladrar dos cães e o miar dos gatos. 

É difícil e complicado recorrer aos efeitos especiais, baseados e construídos a partir das palavras.

As gentes das aldeias não tinham direito a luzes, nem sons, para além dos que a Natureza dispõe; mas também não tinham medo do silêncio; adoravam-no e respeitavam-no.

E esperavam, avidamente, o alvor de cada novo dia, de cada nova manifestação de vida renascida. 

Rejubilavam quando viam que a ordem do mundo não se alterara com a paragem da vida, que as fontes e os ribeiros continuavam a correr, os pássaros voltavam a voar, com os mesmos trinados, e as sementes voltavam a dar vida, às terras.

Numa palavra, depois de pequenas pausas, a vida continuava, porque a ordem e o comando de tudo o que existia, rejuvenescia a cada ano, como sempre acontecera.

Naqueles meados do séc. passado, a noite e o dia nas aldeias eram duas realidades acima de tudo e de todos.

Ainda não tinha chegado a energia eléctrica e por isso, não havia rádio nem televisão.

Não chegavam lá os jornais e além dos livros da escola - quando estava a funcionar algum posto escolar - mais não era preciso.

Nas tabernas, onde se faziam os avios de mercearias e se bebiam uns copos de vinho, jogava-se às cartas, ao burro - feito de um caixote de sabão (ver ilustração), para onde se atiravam os vinténs -, e à malha. 

As conversas restringiam-se a pequenos negócios, à contratação de homens e mulheres para os trabalhos e às tradicionais histórias, lendas e aventuras que povoavam o imaginário, até se gastarem pelo uso, ou serem substituídas por outras.

Os factos e ocorrências do quotidiano não abundavam.

Havia, pois, campo aberto para a proliferação do imaginário, do hiperbólico, do distante e do misterioso.

Em casa, depois de terminados os trabalhos, a família, em volta da mesa, ou à roda da lareira, comia, do barranhão de barro vidrado, as couves com batatas e feijões, o pão de milho, um bocado de sardinha ou um punhado de azeitonas curtidas.

Aos domingos, depois da missa, lá se chegava ao grão-de-bico, com toucinho da salgadeira e algum enchido, normalmente guardado para dias de festa.

O arroz e a massa completavam a dieta frugal desta gente que, embora a pobreza dessa alimentação, aplicava bastantes recursos físicos nos duros trabalhos agrícolas.

Durante os longos serões de inverno, enquanto no caldeirão fervia a vianda dos porcos, ia-se atiçando a fogueira, fiando uma roca de linho, dando uns pontos nas roupas e contando histórias, ou rezando.

Rezava-se antes de começar a comer, depois de comer, pelo serão adiante... É que rezando acabava por se poupar a vista, passar o tempo e alcançar mais algumas indulgências.

Efectivamente a ligação à igreja, das gentes daquelas terras, naqueles tempos, era muito grande. Seria impensável que alguém faltasse à missa, aos domingos, sem uma razão muito forte.

Não vamos tecer muitas considerações sobre a forma como eram doseados os castigos, nos actos do culto, nem referir-nos ao peso e responsabilidade que os padres colocavam sobre as pessoas. 

Todos nos recordamos das "práticas" infindas em que se espalhava o terror, sobre os pecadores e os não cumpridores escrupulosos dos preceitos da igreja.

Os quadros pintados pelos pregadores que no meio do sermão já tinham uma grande parte da assembleia, em lágrimas. E continuavam a proclamar os princípios e as leis da igreja, usando uma linguagem que a maior parte nem compreendia, mas sentia e aceitava.

Pela dramatização do padre, adivinhava-se mais algum castigo de Deus e, como tal, havia que aceitar e obedecer.

Paralelamente, cultivava-se o sentimento dos prémios e dos castigos, como se fosse possível algo mais penalizador do que a vida daquelas gentes.

Mas, os condenados enchiam as crenças do povo: as almas penadas, que não alcançavam a luz e erravam nas longas noites, nestas aldeias onde não havia exposição do Senhor, nem sacrário nas igrejas.

Era o diabo, os espíritos malignos menores e almas do outro mundo que enchiam a mente daquela sociedade rural, condicionada, controlada e dominada pela igreja.

Porém, chegou, um dia a energia eléctrica, abriu-se a estrada, aumentou a emigração externa e sobretudo a interna. Vieram os rádios, abriu a escola, mandaram-se várias crianças para os colégios e seminários. Apareceram as primeiras televisões... 

Lembro-me do primeiro rádio, que funcionava com uma bateria de automóvel e só se ligava para ouvir as cerimónias da Senhora de Fátima, no 13 de Maio.

Era lá em casa do Ti'Soldador, que se juntavam, nesse dia, cantando e rezando, a maior parte das mulheres da terra e alguns homens.

Os tempos mudaram muito. Não só nas aldeias, mas em toda a parte, houve maiores mudanças nas décadas de sessenta, setenta e oitenta, que nos últimos cinco séculos de História.

Ficaram alguns usos e costumes, hábitos e preceitos, que recordamos com respeito e consideramos de vital importância para que possamos hoje perceber que tempos foram aqueles. 

Comparadas com as adversidades daquela longa noite, as piores condições que hoje ainda pesam sobre os extractos mais desfavorecidos da nossa sociedade são, se não paraísos, pelo menos cenários humanos e luxos sociais.

As grandes directivas sociais que presidiam e condicionavam a vida das gentes daqueles tempos: fome, ignorância e medo, que se manifestavam pela subserviência, resignação, respeito e um ror de outros atributos, roçando o indigno e desumano, foram erradicados e deram lugar a um novo sentimento, até aí desconhecido, ou, completamente fora do alcance – LIBERDADE. 

Qualquer homem é, hoje, livre e responsável. Pelo menos à luz dos princípios básicos da Lei suprema do nosso País. Ainda que a realidade...

Porém a memória é curta: e muitos dos que podem certificar a análise que deixamos, quer porque viveram nesses tempos, quer porque isso lhes foi contado, já esqueceram o que lhes interessou e arvoram-se em arautos das conquistas que se fizeram, enquanto se refugiaram no primeiro buraco que encontraram para não se comprometerem. 

Recorrem a amigos, compadres e correligionários, para usarem e abusarem da coisa pública, para se furtarem aos deveres sociais, ou para se locupletarem com benesses e bens da colectividade.

A comunicação social, pouco rigorosa, dependente e asfixiada, navegando à vista e sempre com os olhos postos no mestre - que dá dinheiro, privilégios e audiências -, esqueceu já os tempos em que os editoriais dos Directores valiam o preço dos jornais. 

Hoje há, em cada publicação, dezenas, ou centenas de jornalistas; porém os cidadãos conhecem dois ou três dos mais mediáticos. E, havendo cada vez mais letrados, porque se lêem cada vez menos jornais?

Se os nossos pais e avós cá viessem, corariam de vergonha ao ouvir proclamar nas televisões, ou verem nos jornais, o nome de altos dignitários das públicas instituições, acusados de incompetência, desleixo e favorecimento, de que resultaram prejuízos de muitos recursos da sociedade, sem que nada aconteça a esses figurões.

Ficariam, sobretudo, muito admirados por não verem e ouvirem referir, louvar e homenagear, alguém que trabalhou honradamente e contribuiu para o bem de todos. 

Interrogar-se-iam se já não há respeito e consideração pelos velhos, pelos doentes, pelos que a Pátria usou, quando precisou, e logo esqueceu. 

Não entenderiam a pouca apetência pela política, nem compreenderiam, ainda, muitas outras coisas… 

Estranhariam que a trilogia aprendida na escola – Deus, Pátria, Família – seja, nos tempos que correm, enunciada com falta de respeito, embora, lamentavelmente, com alguma verdade – Adeus, Pátria e Família -. 
Mas isso será o objecto das nossas "histórias de gente simples”, aliás escritas por mero prazer e, despretensiosamente. 

Sempre, porém, dentro dos preceitos da trilogia aprendida na escola – entenda-se Posto Escolar - lá da aldeia onde fizemos a quarta classe, por sinal muito bem feita.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011



Boas Festas

Natal Feliz e Bom Ano

Para os seguidores, leitores, críticos, comentadores, apoiantes e amigos em geral

Do amigo

Prof. José Valente

domingo, 18 de dezembro de 2011

Os sons do mar




O dr. Jorge Ventinhas escolheu para tema do seu doutoramento em Veterinária, "os sons das ondas do mar". 

Talvez, vá-se lá saber ao certo, por ter visto o mar, pela primeira vez, aos onze anos e pelas muitas vezes que, antes e depois disso, passou horas a contemplar as messes ondulantes, lá no Monte onde nasceu, nos fundos do Alentejo.

Certo, certo, é que recordava, perfeitamente, a imagem daquele chão todo lisinho e azul-escuro, para lá do grande campo coberto de areia e um ror de pessoas que, talvez por falta de água em casa, ali se lavavam, entrando e saindo na água, que, por causa disso, até fazia ondas ali ao princípio.

Como nas searas lá dos Montes, andavam no ar uns passarões, maiores que os que comiam as espigas do trigo e até talvez quase como as cegonhas.

Deviam ter muito calor, pois, de vez em quando, mergulhavam na água azul e voltavam para o céu, onde se passeavam. Ah! E eram barulhentos. Mas não sabiam cantar! 

Lá mais ao fundo, onde já não alcançava bem, viu uns homens a puxar umas casinhas para dentro da água e depois saírem por lá adiante, até se sumirem da vista.

Disse-lhe a prima Adelaide que eram os pescadores que saíam para a pesca. Assim, como assim, ficou a saber o mesmo; mas o bichinho da curiosidade ficou lá e daí a uns dias quando o primo Abílio. que fazia dois dele e estava quase a ir às sortes, estava deitado no areal, chamou-o e foram lá a baixo ver os tais barcos e os pescadores. Gostou. 

Os tempos passaram, o senhor Lavrador, seu padrinho, tinha prometido ao seu pai, abegão lá do Monte: "se o moço tiver jeito e cabeça, hei-de mandá-lo educar, até onde for capaz de ir".

O moço era eu, e a cabeça, felizmente, foi capaz de ir até ao cimo; aos vinte e quatro anos, chegou um dia à estação de Santa Eulália, onde era esperado pelo pai, o senhor dr. Jorge do Carmo Ventinhas, com um canudo na bagagem, onde se conferia que tinha terminado o curso de Medicina Veterinária. 

Abraçaram-se e, depois de quebrada a curiosidade sobre as coisas e as gentes do Monte, seguiram, quase uma hora, em silêncio, ou com meias palavras de permeio, até à Herdade.

A carroça rolava por entre as searas ondulantes e a passarada levantava-se com o barulho dos guizos da mula e o estalar do chicote para apressar a marcha. 

De vez em quando, o pai olhava pelo canto do olho, em silêncio, traído pelos pensamentos que, de certeza, lhe enchiam a cabeça, a pontos de nem as palavras lhe saírem direitas.

No portão da entrada da Herdade, já às vistas do Monte, sentado à sombra da velha azinheira, estava o Alfredo, com os bolsos das calças cheios de bolotas que ia comendo, enquanto esperava.

Quando deu pela aproximação do carro, correu caminho adiante para ser o primeiro a ver o seu grande amigo que, como já lhe tinham dito, devia agora tratar por senhor doutor. 

Ao ver o homem a correr a besta parou e, de um salto, já o Alfredo estava ao lado do grande amigo, abraçado a ele e segredando-lhe ao ouvido: então agora tenho de tratar-te por senhor doutor, ou posso continuar a chamar-te Jorge? Jorginho, se quiseres! E afastando-se do amigo, para vê-lo melhor, foi todo o resto do caminho a procurar as diferenças que faziam um doutor. 

Quando já não estavam longe do Monte, pulou da carroça e desatou numa louca correria para ser o primeiro a anunciar a chegada do menino Jorge, seu melhor amigo e para quem era preciso dobrar a língua, a partir de então: senhor doutor Jorge! E gritou, como nunca se lhe tinha ouvido:

O senhor doutor chegou. Venham todos vê-lo! Viva o meu amigo Jorge! E, nessa altura, todos repararam que aquela figura apatetada, meio tola e apoucada, chorava de comoção, que depois justificou por nunca ter pensado vir a ter um amigo doutor... que já o tinha autorizado a continuar a chamar Jorginho. E até já lhe tinha prometido que um dia o havia de levar à cidade, para ver o sítio onde se aprende para doutor, casas muito grandes e o mar. Foram estas as coisas que lhe pedira e que o amigo já lhe tinha prometido. 

O Alfredo sempre foi aluado, meio tonto, tolo e telhudo. Numa palavra: apoucado, que um bom Alentejano chamará de poucachinho. Tudo o que se lhe dissesse não o incomodava, pois não era pessoa para se zangar com ninguém, nem consigo próprio.

Também nunca ninguém se zangava com ele; a todos acabava por conquistar, com o seu espírito prestável, a sua delicadeza e bonomia.

Não fazia mal a uma mosca e exibia, regularmente, um sorriso simples e ameno. Não era dali do Monte do Vale da Lameira, nem ninguém sabia, ao certo, onde teria nascido.

Fora deixado debaixo da azinheira grande, à entrada da Herdade, embrulhado numa trouxita, ao que se crê por uns ciganos que ali estiveram acampados e desde o dia em que deixaram a encomendinha nunca mais voltaram aqueles sítios, nem ninguém mais deu por eles, nas redondezas e feiras mais chegadas. 

Tinha uns meses a menos que o Jorge e fora recolhido pelo abegão, que ao entrar na Herdade ouviu chorar e apeando-se deu com o menino embrulhado nuns panitos brancos.

Levou-o para casa, onde a mulher ainda amamentava o filho e, com o consentimento do senhor Lavrador, foi criado lá pelo Monte.

Registado como filho de pais incógnitos, nascido em parte incerta e encontrado no Monte do Vale da Lameira, aos dezanove dias do mês de Maio de mil novecentos e quarenta e três, foi-lhe dado o nome de Alfredo Azinheira. Nas notas da Cédula constava: Sexo masculino, sem defeitos físicos e de raça cigana.

Na gíria era conhecido pelo "cigano papa-açorda", não tanto pelas qualidades já descritas, mas por um velho hábito de andar sempre de boca aberta. Aliás era por este nome que respondia, normalmente, às chamadas.

Depois de recolhido foi alimentado pela mãe do Jorge que aproveitou os últimos tempos de mama do filho e repartiu o leite com o achado do marido.

Depois, uma pastora que tinha perdido um anjinho, deu o peito ao Alfredito que, por essas razões, dizia que era muito mais rico que a maior parte dos amigos: tive três mães: a que me pariu e, não tendo que me dar, me deixou para que alguém me apanhasse; a mãe Deolinda, mulher do pai António, que me deu leite e criou, enquanto esteve entre os vivos, e a pastora Amélia que me acabou de criar, quando se acabou o leite da mãe Deolinda. E agora até tenho, como maior amigo, um senhor doutor.

Podem chamar-me de papa-açorda e podem continuar certos de que ainda está para nascer quem goste mais da gente deste Monte que o Alfredo Azinheira. Mas, enquanto por cá estiver o meu amigo doutor, não quero compromissos com ninguém; estou cá para o que ele precisar. Para ele e para o pai António!

O doutor Jorge Ventinhas concorreu ao lugar de Veterinário da Câmara de Elvas e foi lá colocado. Abriu um consultório de veterinária em Santa Eulália e arranjou uma vasta clientela entre as herdades da região.

Alguns anos depois, já passados os trinta, casou com a filha do senhor Lavrador, e única herdeira da Herdade da Azinheira e passou a ter além do trabalho na Câmara e no consultório, a gestão de uma grande casa agrícola, cuja cabeça era a Herdade e o Monte do Vale da Lameira. 

Tinha casa nos arredores de Lisboa e no Algarve, junto da praia do Alvor. Nunca deixou uma vida cheia de trabalho, no Alentejo, embora a mulher e os três filhos, residissem, normalmente em Lisboa, onde os filhos estudavam. 

O Pai António, abegão até aos últimos dias de vida, tinha já partido, o sogro, senhor Lavrador, vivia numa moradia na linha de Cascais, o doutor, sempre que podia ia dormir ao Monte.

Porém, estivesse onde estivesse, sempre teria, por perto, o seu motorista privativo, como que secretário particular e homem de confiança, senhor Alfredo Azinheira, que desde aquele dia em que recebeu o senhor doutor, lá no caminho de Santa Eulália e foi a correr ao Monte anunciar a sua chegada, poucos dias terá o sol alumiado a terra sem que o Alfredo não estivesse por perto do amigo, quase irmão e, mais que isso, seu grande mestre, pela vida fora.

O Alfredo nunca casou; era impossível tirar algum minuto ao seu patrão para assuntos pessoais. Aprendeu a arte de boas maneiras, teve lições não só de cultura geral, mas de administração de negócios, elementos de contabilidade, ajuda nas actividades profissionais do senhor doutor veterinário, compras e vendas de maquinarias, sementes e bens da terra, produzidos nas propriedades da casa agrícola. 

Aprendeu a cavalgar, conhecia os rudimentos das principais maleitas dos gados, as febres mais vulgares, mas, principalmente, banhava-se, barbeava-se e vestia roupa lavada todos os dias. Tanto entrava numa tasca como num casino, acompanhando o patrão. Tratava de assuntos com gerentes bancários, comprava e vendia, dispondo a seu belo prazer. Porém, num ponto, nunca cedeu:

Caro amigo, doutor, irmão, ou lá o que quiser: a mim ninguém me quis, salvo o Pai António e a Mãe Deolinda. Eu também nunca quis mais família e um ponto fica assente, entre nós: não quero ter nada de meu. Quero ter tudo o que tenho, quando precisar e mais nada.

Não há ordenados; nunca, até aos vinte e cinco anos, quando andaste a estudar os tive, nem precisei deles. Depois disso muito menos. Espero morrer antes de ti, mas se isso não acontecer deixa as tuas ordens de forma que, quando eu não te tiver por perto, tenha o que precise e quando me for embora nada tenha que interesse seja a quem for.

Ainda viveram bastantes anos. O doutor Jorge, na sua actividade de Veterinário, deslocou-se várias vezes ao estrangeiro e ganhou muito dinheiro.

Nas casas agrícolas das suas herdades, graças aos bons negócios e administração correcta do feitor - chamemos-lhe assim - Alfredo, também se gerava bom pecúlio. 

As avultadas heranças do sogro e do pai foram boas ajudas. Tudo somado era o suficiente para que, sem qualquer exagero, fosse classificado como um rico património, mais que suficiente para a família viver faustosamente.

Porém o doutor Jorge nunca tomava grandes decisões sem consultar o conselheiro e também a esposa se habituara a passar primeiro pelo aval do senhor Alfredo quando precisava de alguma coisa para si, ou para os filhos.

O senhor doutor foi primeiro e quando o Alfredo foi perguntar à senhora quais eram as ordens, ouviu em resposta: o senhor continuará junto de nós, na minha casa e de meus filhos, com as mesmas funções que tinha em vida do senhor doutor.

Isto se não quiser ir para sua casa, no Monte do Vale da Lameira, conforme explica meu marido nas suas últimas vontades. 

E estendeu uma carta ditada pelo marido, no notário, com as suas determinações:

O Alfredo Azinheira ficará ao serviço de minha mulher e nossos filhos, como sempre esteve. 

Residirá onde achar melhor. 

Tem posse e usufruto, até à morte, do Monte do Vale da Lameira e ser-lhe-ão dados todos os meios de que necessite. 

Um abraço, irmão. Espero agradecer-te quando voltarmos a encontrar-nos.



quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Caminhos da vida


 (À guisa de introdução da II série de Histórias de gente simples)

As relações de trabalho nos anos 60 e 70 – antes do 25 de Abril -, passavam por profundas transformações, a que não eram alheias as estruturas sindicais da Farmacêutica, dos Bancários e dos Motoristas.

Destes movimentos acabara por emergir a Intersindical e sucederam-se as convenções colectivas de trabalho a um ritmo alucinante.

Era a alvorada de novos tempos.

Um professor, regressado da guerra na Guiné – são e salvo, na aparência -, acabado de casar e pai de uma menina e em vias de segundo filho, desempenhava as funções numa escola do centro de Lisboa, onde era Director, Secretário de Zona e leccionava o Ciclo Complementar – 5ª e 6ª classes.

A esposa, igualmente professora, tinha sido colocada, por nomeação ministerial, no recém inaugurado bairro social dos Olivais-Sul, onde o casal habitava uma casa atribuída num concurso de habitações, em regime de propriedade resolúvel, pela Caixa de Previdência do Ministério da Educação Nacional.

Uns tempos depois de estabelecido este enquadramento familiar e social, chegou uma carta da Legião Portuguesa a convidar o tenente-miliciano, na disponibilidade, para instrutor – aos domingos, de manhã, com uma remuneração mensal de 600 -.

Nem sequer respondeu, não porque fosse a Legião, não porque não desse muito jeito a remuneração que, ao tempo não era nada desprezível; apenas porque na sua cabeça estava implantada uma forte aversão por tudo que fossem fardas e militares. Que, aliás, se manteve pela vida fora e era de tal forma marcante que sempre se lhe afigurou como uma das marcas mais evidentes que a guerra lhe deixou.

Convém, no entanto, esclarecer, que durante os quase dois anos de guerra, por diversas circunstâncias - nos impedimentos do capitão - teve funções que exorbitavam as de um simples alferes-miliciano, assumindo o comando interino da Companhia a que pertencia.

Também, em operações, com ausência de um capitão, assumiu o comando de vários outros alferes e respectivos pelotões.

Passados quarenta anos, arrisquemos uma análise daqueles tempos, não para falar de sindromas pós traumáticos, não para lamentar a falta de apoio dado pelos sucessivos governos aos ex-combatentes que foram obrigados a ir fazer a guerra. Apenas, e tão só, para enquadrar a disposição daqueles que foram mandados fazer a guerra e tiveram, pelo menos, um privilégio: voltar.

Sempre à luz da determinação, espalhada dentro e fora da Companhia, esperando que tal disposição chegasse, mesmo, ao conhecimento do inimigo:

Era provável, seguro mesmo, que não ganharíamos a guerra… o que estava longe de significar que pensávamos que iríamos perdê-la. As populações sofreriam muito, os militares fariam enormes sacrifícios e, ao fim e ao cabo, acabaria por nascer mais um país, onde tudo iria faltar, pois eram fracos os recursos daquela parte de África e das terras com dimensão de pouco mais da terça parte de Portugal Continental, albergando mais de uma dúzia de etnias, desde politeístas a crentes em Deus, de monogâmicos a possuidores de tantas mulheres quantas o dinheiro e as vacas lhe permitissem comprar.

Nós nada tínhamos que nos meter com usos e costumes, tudo faríamos para ter as populações ao nosso lado e uma vez que não solicitáramos a nossa presença nessa guerra, não a desejáramos, nem acreditáramos nela, seguiríamos um único objectivo:

Cumpriríamos e faríamos cumprir as ordens do poder militar instituído, salvaguardando, até às últimas consequências, a integridade física dos que comandávamos e das populações que connosco colaborariam e seríamos inflexíveis no uso da força, usando todos os meios ao nosso alcance, sempre que fossemos provocados, atacados, ou molestados no desempenho das missões que nos fossem atribuídas. Seria, pois, nossa prioridade a defesa da saúde e integridade física de militares e civis que tínhamos sob o nosso comando.


E, felizmente, tudo acabou, no dia em que, já no princípio da madrugada, terminou o espólio dos militares que regressaram sob o comando do Alferes-miliciano, ao quartel da Amadora, tendo o capitão ficado em Bissau, a resolver os últimos assuntos relativos à Companhia regressada no Uige.

Em vez de pernoitarem numa caserna reservada para o efeito, foi dada a possibilidade de fazer a quitação durante a noite e nem um só dos mais de cem militares quis ficar mais uma noite na tropa.

Na companhia de familiares, amigos ou, simplesmente, em grupos, cada um foi ao seu destino, devidamente documentado e quite com as autoridades militares.

Quanto mais depressa terminasse o pesadelo, melhor. Muitas vidas esperavam e muitas esperanças geradas longe de tudo e de todos os que deixaram dois anos atrás, aguardavam aqueles homens que se iriam espalhar pelo País e seguir os seus caminhos.

E, relembrando as palavras do alferes-miliciano: quem resistiu a tudo o que nós passámos, está preparado para atacar a vida e será isso que vamos fazer!... O meu conselho é que comecemos todos por esquecer!…

Passados os vinte e poucos dias, de licença de desmobilização, o professor apresentou-se ao serviço, retomando o seu lugar na escola que deixara, para se apresentar, em Mafra, no curso de oficiais milicianos, quase três anos antes.

Havia que seguir a lista das prioridades, entre os diversos caminhos, maduramente seleccionados, nas longas noites de vigília, sob o peso do silêncio das matas africanas e o aperto das incertezas e vicissitudes da guerra, que se avolumavam na razão inversa dos dias que faltavam para deixar tudo aquilo para trás das costas.

Todos sabíamos que aquela guerra não era nossa e o primeiro objectivo de todos era ver-lhe o fim. Era preciso saber voltar para as terras e as vidas que não viviam havia perto de dois anos, período em que muitos não saíram das matas, nunca viram uma pessoa branca, a não ser militar, e nem sempre receberam as melhores notícias da família e amigos. Era preciso ter força para encarar e seguir o melhor caminho.

De certeza que todos aqueles cérebros estavam cheios de planos de vida a curto prazo, mas localizados bem longe do que todos desejavam esquecer como pesadelo. Cada dia aumentava a ansiedade e havia que gerir, da melhor forma possível, o comportamento de grupo.

Três ou quatro ideias submergiam todas as outras: definir qual a vida que iria substituir a de mestre-escola; definir o rumo e investimento a fazer em estudos; arranjar casa e condições para casar e poder ter filhos; preparar a escola para a esposa; aumentar os proventos enquanto tivesse que continuar a leccionar.

Continuar no ensino, ainda que liceal, não foi opção; havia outras maneiras de ganhar a vida e criar rendimentos mais compatíveis com a vida de família que ambicionava e que pensava ao seu alcance.

Investir cinco ou mais anos num curso de acesso a advocacia, economia ou gestão, passando pelo então emergente curso de Psicologia Aplicada, foi também posto de lado; queria trabalhar, progredir numa carreira e ganhar dinheiro.

Bancário, oficial da GNR ou GF, nunca. Pelo menos com as marcas da guerra ainda tão verdes. Havia uma coisa que era bem remunerada e com possibilidades de progressão: Propaganda Médica e Vendedor Especializado, nas farmácias.

A aquisição de casa começou a ser tratada quando, pouco depois de retomar o lugar na Escola nº10, na Costa do Castelo, em Lisboa, soube de um concurso para 100 fogos, em casas de renda resolúvel, que a Caixa de Previdência do Ministério da Educação Nacional tinha aberto, no Bairro de Olivais-Sul.

Foi imediatamente fazer a inscrição e as probabilidades analisadas até à exaustão. A condição de solteiro era, efectivamente, um dos maiores óbices; porém se a situação se alterasse antes de resolvido o concurso, as novas condições seriam tomadas em conta. Havia, pois, em primeiro lugar que casar.

A colocação, em Lisboa, de uma professora com a idade e tempo de serviço da noiva, era difícil, mesmo atendendo à lei de cônjuges. Todavia, pelo menos o lugar de professora agregada, ao abrigo da referida lei, era viável. Mais uma razão para casar.

E foi assim que, três meses depois do regresso da guerra, se realizou o casamento, na igreja do Rochoso, de um casal de professores, que à falta de casa própria foi residir numa parte de casa, em Moscavide.

No início do novo ano lectivo, arrendaram casa em Benfica e a esposa colocada numa escola de Campolide. Esperava já, nessa altura, uma filha.

Esse facto levou à primeira diligência junto da Caixa de Previdência no sentido de alterar a composição do agregado familiar do concorrente que passou ao estado de casado e esperando o nascimento de um filho.

No início do segundo ano de actividade a esposa foi colocada por nomeação ministerial numa escola do Bairro dos Olivais e foi atribuída a casa de renda resolúvel no mesmo bairro.

Pouco tempo depois, a candidatura e selecção para um curso de preparação para Delegado de Propaganda Médica, foram passadas com êxito e, diariamente, durante vários meses, das seis às onze horas da noite, foi frequentado e concluído, com óptima classificação, o referido curso.

O promotor era o Grémio dos Industriais de Especialidades Farmacêuticas e a lista de candidatos foi distribuída a todos os Laboratórios que trabalhavam em Portugal, desde que fossem sócios do Grémio.

Um parêntese para lamentar que não se tenham repetido iniciativas desta natureza: curso de elevado grau de exigência e alto nível técnico, inteiramente custeado por uma associação industrial e que apenas visava oferecer aos associados candidatos escolhidos, preparados e capazes de desempenhar uma profissão útil aos sócios da corporação. Pelo menos, não temos conhecimento de outros casos semelhantes.

Nos meses seguintes surgiram os convites de cinco Laboratórios, três estrangeiros e dois nacionais. Opção por um dos estrangeiros, com ingresso e preparação, em Setembro de 71.

Na altura as filhas tinham dois anos e meio e um ano e meio. A esposa continuava na sua actividade de professora, no Bairro dos Olivais e o novo delegado de propaganda médica foi trabalhar nas Av. Novas, em Lisboa e no Algarve, onde se deslocava, por períodos de duas semanas, seis vezes por ano.

Porém, entre ordenado e comissões sobre vendas, no primeiro ano, os rendimentos foram mais de seis vezes os do último ano de professor.

Vários cursos de aperfeiçoamento profissional, iniciação às teorias de marketing, que na altura dava os primeiros passos, e ao terceiro ano é convidado para organizar e chefiar uma nova equipa comercial, visando a promoção e venda dos produtos comerciais do Laboratório e de outros a lançar no mercado nacional. É que o novo contrato colectivo de trabalho impedia os delegados de propaganda médica de fazerem vendas directas nas farmácias.

Nos sete anos seguintes, foi Supervisor, Chefe de Vendas e Chefe de Serviços Comerciais. Escolheu, treinou e chefiou, várias equipas de vendas, esteve ligado a lançamentos de produtos e acções de marketing e merchandising que ainda hoje, passados mais de trinta anos, se podem ver em exibição em muitas farmácias.

Viu progredir e atingir grande destaque no mercado, muitos técnicos de vendas que consigo deram os primeiros passos e orgulha-se de ter colaborado na expansão de marcas como Vick Vaporub, Clearasil, Nani, Graviteste, Nicoprive, Milton, Bledine, Nutribem, Saltratos Rodel, Myrbane e muitos outros que ajudaram a desenvolver o conceito de produtos OTC nas farmácias de Portugal.

Uma passagem pelo mercado da Grande Distribuição, durante oito anos e retorno ao mercado farmacêutico, onde acabou de fazer o resto de uma vida de 46 anos de trabalho.

Muito trabalho, muita gente ajudada a ganhar a vida e progredir nas carreiras, muitas acções de formação e reciclagem e muitos amigos espalhados por diversas áreas de actividades.
Também muitas compensações e a certeza de que não era preciso emigrar para conseguir fazer carreira e ganhar bem a vida, honesta e honradamente.

Sempre seleccionou aqueles que consigo trabalharam numa perspectiva de futuro. A todos pedia que lhe dissessem, claramente, o que desejavam da actividade que se propunham desenvolver.

Viu partir muitos para voos mais altos que os seus e sempre se sentiu honrado com isso. Despertou muitos do atavismo e imobilismo em que se tinham acomodado, ou para onde os tinham empurrado.

Tem orgulho naqueles que subiram mais alto do que ele e lamenta as injustiças que tenha cometido, quer promovendo uns, quer preterindo outros. Sempre se bateu pelos melhores e nunca gostou de gente acomodada e resignada.

Há dias, sentiu orgulho ao olhar para um relógio que um vendedor, que consigo trabalhou, ganhou, em 74, no lançamento de um produto.

Titular de uma zona difícil, com poucos recursos e menos receptiva a um produto inovador, parecia que o JB estaria condenado a apresentar-se na reunião de final de ciclo, resignado aos piores números da campanha, embora se tivesse multiplicado em esforços para inverter aquilo que parecia inevitável.

Efectivamente em números absolutos, não foi o melhor vendedor; porém, em distribuição, conseguiu colocar o produto em mais de oitenta por cento das farmácias da sua zona, do centro do País.

E, parece que estava a ver os olhos do JB ao ouvir anunciar que, independentemente dos prémio de quantidade fora criado um prémio de distribuição e que esse prémio lhe fora atribuído.

Mais um embaixador, como chamava aos que partiam para novos rumos quando deixavam as suas equipas em busca de novas oportunidades, umas vezes reais, outras, infelizmente, falaciosas.

Quem partia, continuava amigo; porém não havia retorno. Esta premissa nunca foi ocultada a ninguém.

Essas histórias de gente simples, que calcorreou as estradas deste país, desde Bragança à ilha do Corvo, não têm fim. Ao cabo de mais de 7500 dias de trabalho nessa actividade, resta a convicção de que muitos erros houve, mas por desconhecimento, incapacidade, ou impedimento de resolvê-los; nunca por prazer ou menos desejo de ajudar.

Serão mais de cento e cinquenta embaixadores, ensinados nas diversas equipas e apoiados e estimulados no desempenho das suas funções.

Podem ser também considerados a verdadeira semente e fermento, capazes de criar e alimentar inúmeras personagens que povoam as histórias de gente simples que vão nascendo e tomando forma.

É a homenagem de uma vida de trabalho aos companheiros de muitas lutas, muitas alegrias e algumas frustrações.

Uma vida cheia de compensações, não apenas materiais mas também pessoais e humanas: quando se faz o que se gosta e em proveito de quem se gosta, é-se, com certeza, feliz.