domingo, 21 de dezembro de 2014

Era uma vez.... Um NATAL na aldeia.


BOAS FESTAS PARA TODOS
...sem excepção.


Nos meados do séc. XX, começou a debandada das terras do interior para a cidade de Lisboa – normalmente o homem, ou homens da casa deixavam as mulheres a tratar as terras e a cuidar dos filhos e procuravam, na capital, um trabalho na construção civil ou um emprego na Carris, nos Telefones, nas Polícias ou nos Ministérios. 

Tudo dependia dos conhecimentos.

Nas tardes de domingo, quando não se faziam umas horas extraordinárias, juntavam-se aos magotes nas praças e jardins de Lisboa e arredores, grupos de trabalhadores de cada região. 

Depois da missa e do almoço convergiam em grupos para junto dos conhecidos, para saber notícias da Terra, para procurarem novos trabalhos, para conviver e até, muitas vezes, para vestir roupa lavada e fazer uma ou outra extravagância, no café e na taberna.

O Ti’Alberto Carpinteiro, trabalhava, como mestre de cofragens, nas obras dos prédios que, como cogumelos, cresciam, às dúzias, no meio das oliveiras do local onde viria a ser o futuro Bairro dos Olivais. 

Pernoitava na barraca da obra, onde, junto com os colegas, faziam as refeições. 

Aos domingos à tarde, saía em grupo, a corta mato, por Chelas e Areeiro até ao Campo Pequeno, para onde puxava a rapaziada da Carregueira, Aboboreira e Alcaravela. 

Estes grupos passaram, mais tarde, a organizar excursões que saíam de Lisboa, depois do trabalho de sábado e regressavam na noite de domingo. 

Dava para ir levar a roupa suja, trazer alguma coisa para comer e ver mulher e filhos.

O Ti’Alberto, carpinteiro de apelido e de profissão, não era homem de grandes jogatanas nem sociedades de copos. 

Andava por ali, vendo montras, tirando ideias e pensando na vida. 

Não puxava para grandes falas, mas não queria andar por fora das novidades e umas vezes ficava lá pelo Campo Pequeno, outras ia até ao Terreiro do Trigo, ao Jardim da Parada, ao Príncipe Real, ao Rossio, etc. 

Tinha muitos conhecimentos na arte e não eram raros os pedidos que recebia dos que procuravam trabalho, porque queriam mudar, porque tinham sido dispensados, ou porque acabavam de chegar da Terra.

Um domingo de Novembro, depois de estar a ver uma partida de sueca, numa mesa do Jardim da Parada, resolveu dar uma vota pelas redondezas para aquecer os pés e ver as montras. 

Em frente duma loja, pensou, de repente, em levar ao neto, uma coisa que nunca tinha tido: um brinquedo para pôr no sapato do Joãozito, na noite de Natal. 

Havia ali de tudo: bonecos articulados, piões, coisas para fazer barulho, camionetas de carga, de bombeiros, etc.. 

Andavam pelos dez escudos…

Mas havia coisas muito bonitas e bem-feitas!..

Terá ficado ali a mirar a montra, mais de meia hora. 

Até que um colega se chegou a ele e perguntou: o amigo está a sentir-se bem? 

É que está aqui há tanto tempo, que já estávamos em cuidados!...

Nada, nada!... 

São cá coisas minhas. Nunca tive brinquedos assim e lembrei-me que o meu netito, havia de gostar de ter uma camioneta daquelas… mas a loja está fechada e durante a semana não posso vir cá buscá-la…além de que nove mil réis é quase meio dia de trabalho!..

Ora, ora, Ti’Alberto, o dinheiro é para se gastar. Vir cá buscá-la é que custa quase outro tanto. 

Mas, sempre se ouviu dizer que o mestre é um grande artista na madeira… 

Com uma perna às costas, tire aí uns desenhos e faça uma coisa melhor que a que estamos a ver. 

Até o seu neto irá gostar mais, se souber que o avô é que fez a camioneta de madeira. Pense nisso!...

Já nessa noite o Ti’Alberto teve dificuldade em adormecer. 

Madeira arranjava com facilidade. Ferramenta e tudo o resto, também. Habilidade, não havia nada como tentar e nas três semanas seguintes juntou tudo o que precisava, serrou, limou, lixou, furou e quando tinha tudo pronto pediu ajuda a um pintor e os dois acabaram a pintura e montagem da camioneta. 

Tinha marca, matrícula, volante e até uns pneus de borracha. Uma verdadeira obra-prima, disseram todos os que a viram. 

Até diziam que, se quisesse, podia ganhar dinheiro a fazer coisas daquelas, pois eram muito melhores que as das fábricas. 

Media a camioneta 40cm de comprimento pelo que não havia, lá pela obra, uma caixa para meter a peça. 

Até que um vendedor de ladrilhos lhe trouxe uma caixa de cartão, sem quaisquer nomes nem desenhos, para guardar o brinquedo. 

O último trabalho foi, pois, pintar e embrulhar a caixa. 

Mas, antes de fechar o embrulho, lembrou-se de dois pequenos chocolates que lhe tinham saído numa rifa e que ele guardava, ciosamente, para dar ao neto, como prenda de Natal. 

Embrulhou, cuidadosamente, os doces e colou-os na caixa de carga da camioneta. 

Era o primeiro transporte que ela fazia….

Nas últimas semanas antes do Natal, na viagem à Terra, conversou muito com o neto, levando a conversa para brinquedos, para camionetas, carrinhos…para ver quais as reacções do pequenito, ao tempo nos seus nove anitos. 

Soube que era muito bom aluno, lá na escola, que tinha escrito uma carta ao Menino Jesus a pedir que lembrasse o Pai Natal que não se esquecesse dele… 

Então e o que pediste de prenda, João?

O Ti’Alberto ficou atónito quando o neto lhe disse: uma camioneta grande, para poder levar e trazer mercadorias e poder ganhar dinheiro suficiente para o avô e o meu pai não precisarem de sair da Terra. 

Mas devem ser tantos os meninos a pedir assim coisas importantes que, certamente, como nos outros anos, só vou receber algumas meias, ou alguma coisa que precise para a escola. 

Ouvi dizer que uma camioneta como eu gostava custa muito dinheiro e também pensei se depois não era preciso tirar a carta antes de poder trabalhar com ela. 

Logo se vê, avô, mas olhe, se não for, paciência…

Dali em diante não sabia o Ti’Alberto qual dos “meninos” andava mais ansioso pela chegada do Natal: se o neto, se o avô!... 

Tinha dificuldade em adormecer, imaginava como devia ser a cena da chegada do embrulho ao sapato do neto, como havia de disfarçar os chocolates, se devia ou não pôr alguma marca, etc…Ah! e uma buzina como a das bicicletas!...

Até que chegou o dia da consoada e quando chegou a camioneta da excursão com os homens de Lisboa, um dos que os aguardavam era, nem mais nem menos que o João Carpinteiro. 

Agarrou-se ao avô e mirou-o, de alto a baixo, estranhando um saco, maior que o normal, que o avô trazia às costas. 

E dirigiam-se para casa, quando o Ti’Alberto disse: João, ali o Ti’Manel do Ribeiro tem estado doente e não pôde vir. Pediu-me que lhe trouxesse aqui umas coisas para a Tia Amélia. Vai andando para casa que eu vou por lá deixar o recado e já te apanho em casa. 

E separaram-se.

O Ti’Alberto foi a um palheiro esconder a encomenda e depois dirigiu-se para casa. 

Como quando chegou o volume do saco era mais pequeno e a mulher lhe perguntou se o compadre Manel estava melhor, tudo passou despercebido e ainda que agora mais ansioso que o próprio neto, foi até à taberna e depois de conversas de ocasião, meteu a mão ao bolso e vendo as horas, despediu-se, pois ainda tinha umas coisas que ultimar, porque no dia seguinte era dia de consoada. 

Estava inquieto…

Foi, por cima do telhado, até à chaminé. Tirou o novelo de guita do bolso e atou-lhe uma pedra na ponta. Meteu o cordel por uma das aberturas e deixou cair até chegar à lareira. Fixou o cordel pelo lado de fora da chaminé e entrou em casa, dirigindo-se à lareira. 

Escondeu a ponta do cordel dentro da chaminé, por cima das varas dos enchidos e pronto, não se falou mais no assunto. 

Cearam, fizeram-se as filhós, e foram todos para a cama.

Nessa noite o Ti’Alberto não se conteve e, como se fosse ele que estivesse para receber um presente muito desejado que nunca tinha tido, contou à mulher todo o enredo da prenda que preparara para o Joãozito e do que tinha planeado para o dia seguinte:

Depois da ceia o João ia buscar uma das suas botas e punha-a, na lareira para que o Pai Natal, mandado pelo Menino Jesus, viesse trazer-lhe alguma prenda e ia para a cama. 

Algum tempo depois ele prendia a caixa que tinha no palheiro à ponta da guita e içava-a para dentro da chaminé de modo que não se visse de dentro da cozinha. 

Nessa altura a avó ia chamar o João, dizendo que estava à lareira mais o avô e ouviram uma restolhada na chaminé, pelo que o avô foi lá fora ver o que se passava. 

E ela também tinha ouvido qualquer coisa dentro da chaminé, pelo que deviam ir ver o que se passava.

A cena seguinte é indescritível: 

A caixa de cartão, descendo lentamente na direcção da bota e finalmente pousando sobre ela, depois o fio caindo e finalmente ouviu-se a voz do avô, gritando:

Ouça, senhor Pai Natal, venha cá, não fuja que não lhe quero fazer mal. Só queria que o meu neto lhe agradecesse e que dê um grande abraço ao Menino Jesus que o mandou. 

Adeus, até para o ano!….

E, ainda o João não tinha tido coragem para começar a abrir a caixa de cartão, já o avô chegava para contar o que se tinha passado. 

Mas, atalhou o neto: foram as nossas conversas avô. 

Eu comecei a acreditar que era possível e fiz muita força. E conseguimos avô!...

E abraçou-se aos avós e aos pais, entretanto também chegados, pois ouviram o avô aos gritos em cima do telhado e vieram ver o que se passava.

Patético!... 

O João não sabia por que ponta havia de começar. Quando abriu a caixa e viu a camioneta, nem queria tocar-lhe…iria sujá-la!... 

Seria verdadeira? Estava acordado? Seria aquilo um sonho? 

Depois deitou-se no chão da cozinha, olhou a camioneta de todos os ângulos, apalpou os pneus... verdadeiros! 

Torceu o volante…rodava!... 

Não, Não podia ser verdade… Até que adormeceu…

O Ti’Alberto apenas disse: 

Recebi, hoje, com mais de cinquenta anos , o melhor da minha vida!...

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O penedo das Taliscas


O penedo das Taliscas, ou penedo rachado, tinha fama de tudo e não tinha nada de concreto. 

Dominava o alto da Ladeira do Brejo e era formado por um aglomerado de grandes pedras que, se um dia tivessem sido objecto de estudo aprofundado, teriam, pela certa, sido sepultura de remotos antepassados.

E, com um pouco mais de boa vontade, ter-se-iam feito escavações para descobrir os fundamentos de um castro, encimando o vale exuberante e pródigo de verduras e águas potáveis… 

Mas o que era, de facto, era um covil de lobos e raposas, no tempo em que uns e outras habitaram a região. 

Depois, com as desarborizações, as queimas e o retirar de pedras, nem coelhos ou lebres por lá andariam. 

Coisas dos tempos!...

Uns cem metros abaixo do penedo, já perto da ribeira, passava a rodeira, diariamente seguida pelo moleiro, quando se dirigia para a azenha do Vale do Corisco e, em sentido oposto, quando, já sobre a manhã, com os taleigos cheios de farinha, em vez de grão, subia, de regresso ao povoado, até às casas dos fregueses.

Na azenha não se acabava a aguardente, na cabaça, que levava um pouco mais de litro e meio e era comprada como tal, na voz do taberneiro que deixava sempre uma boca, cada vez maior, segunda queixa do moleiro. 

Depois, de golo em golo, em menos de uma semana, ia-se a aguardente da cabaça e lá voltava o Ti’Manel a trazê-la, para fazer a recarga e voltar com ela para a azenha. 

Não raras vezes, o excesso de pinga, trazia ideias brilhantes ao cérebro do Ti’Manel. 

Iluminações essas que depois divulgava, na taberna, quando outras fontes, à base de vinho, espevitavam a criatividade e soltavam a língua do moleiro. 

A maior parte já nem ligava ao que ele ia contando.

Então, contava ele, que ainda há uns dias, aquilo, lá em riba, no penedo das Taliscas, foi o diabo: havia lume por todo o lado, berros e gritarias, pedras a rolar umas sobre as outras e, certamente, o Demónio que comandava toda aquela algazarra, largava pachouvadas pela boca fora, de fazer corar o menos santo dos ouvintes.

Até o macho, ajoujado sob a carga, parou, para presenciar aquelas cenas, enquanto o dono aproveitava uma barreirita do caminho, para se aliviar, lançando fora, uma espécie de revolta que lhe ia no estômago. 

De repente acalmou-se tudo e só já deu pelo carriço a comer qualquer coisa aos seus pés. 

Encolheu os ombros, deu uma cacheirada no macho e arrancou.

Aí, entrou o Ti’Diogo, que havia muitos anos, passava com regularidade na Terra, esmolando e chegando mesmo a dar umas jornas a quem lhe pedisse, antes de seguir o seu caminho para a aldeia seguinte. 

Atrás dum copo, atirou ao moleiro, com ar de desafio:

Mas olhe cá, oh! Ti’Manel, não teria bebido umas goladas a mais, para esvaziar a cabacita e trazê-la para encher? 

Não terá sido no dia da trovoada que esteve brava ali para os lados de Alcaravela e os relâmpagos, por trás do penedo, pareciam incendiar tudo?

Não terá mandado parar o macho, para se aliviar e lançar fora? 

E o carriço, com a barriga a dar horas, não terá aproveitado o que o dono deitou fora, para comer qualquer coisa? 

E, até podia esconder-se, lá no penedo alguma raposa, ou gato bravo que, no contra luar lançassem brilho dos olhos e lhe dessem, a vomeçê, visões?

Eh! Diabos!...

O Ti’Diogo é capaz de ter toda a razão, disse o moleiro!... 

Pensando bem, só vejo essas coisas nos dias em que me distraio e abuso da cabacita!... 

É capaz de estar certo, homem de Deus, mas olhe que nunca ninguém me tinha explicado essas coisas, com tanta clareza. 

E, fazia-me espécie por que raio o macho e o cão paravam sempre ali naquele sítio. 

Era, afinal, onde eu mandava, para fazermos um pequeno descanso e retomar forças para o resto do caminho.

Oh! Manel, deita lá mais uns copos, que o raio do homem bem os merece. 

Foi, até hoje, a única pessoa capaz de me abrir os olhos e explicar-me tudo. 

E, não se esqueça, Ti’Diogo, de passar lá pela azenha, quando andar por aquelas bandas. 

Poderemos subir lá a riba, ao penedo e, pela certa, junto a algum covil de coelhos, encontraremos as caganitas e pouco mais.

Apareça, homem!... 

Lá o espero!.....

sábado, 25 de outubro de 2014

O pobre da cabaça


Passava todos os meses, com o alforge ao ombro, um pau na mão direita e uma cabaça atada, com um nastro muito surrado, ao cordão que lhe servia de cinto e acertava as calças à cintura, muito subida. 

Não me lembro de vê-lo calçado e as calças, curtas, deixavam os pés, tornozelos e parte das canelas a descoberto. 

A jaqueta, desabotoada, destapava a camisa, bastante mais asseada que a da maioria dos pedintes que transitavam pela terra. 

Juntando este asseio, acima da média dos mendigos, ao cabelo curto e lavado e à barba, semanalmente cortada, estávamos na presença de alguém que destoava no seu meio.

As aldeias mais a poente do concelho de Mação, todo o norte das terras de Alcaravela e o termo de Vila de Rei, até ao Codes, eram percorridos, pelo Ti’Tonho, chamado, nos locais em que esmolava, por pobre da cabaça. 

Era estimado por uns e ignorado por outros; porém o seu modo de pedir esmola não deixava ninguém indiferente. 

Falava mansamente e sabia pôr sentimento no que dizia: invocava, invariavelmente, “as alminhas que lá tem”, “para desconto dos seus e nossos pecados”, e a terminar, um “pai nosso”… 

Com estes processos, repetidos anos a fio, era, de certeza, quem arrecadava as melhores esmolas, não se ficando pelo naco de pão, mão cheia de batatas, bocadito de toucinho, ou peça de fruta e passas de figo; recebia alguns enchidos, umas pingas de azeite, para a cabaça, e alguns cobres – desde um a cinco tostões. 

Comia, todos os dias, almoço, jantar e ceia, das panelas de determinadas casas, junto das malhadas onde pernoitava.

No alforge, estraçalhado sobre o ombro direito, guardava os víveres que ia recebendo. Como não cozinhava, quase tudo o que juntava era reduzido a dinheiro, nas tabernas das terras. 

Ao lado do bornal, numa pequena carteira de pele preta, muito polida, guardava um ou dois livros e uns papéis, que relia regularmente e de cuja leitura nada referia, mau grado os sinais, evidentes, de satisfação.

Corriam histórias, ditas em surdina, de boca em boca, sobre o pobre da cabaça, a sua vida afectiva, suas origens, percurso social e tudo acabava no conteúdo, desconhecido, dos papéis que guardava no bornal. 

Desde professor, caído em desgraça devido à paixão por uma aluna, a juiz expulso por erro grave num julgamento, passando por foragido e refractário ao serviço militar e ex-membro da legião estrangeira, nas guerras de Espanha, tudo era ligado à personagem.

Porém, uma coisa era certa: não havia quem lhe passasse o pé no jogo do pau. Todos os que se lhe tinham oposto acabaram cobertos de bordoadas e não voltaram a desafiá-lo.

Apareceu, um dia, outro pedinte, na taberna do Casal Velho, que, ao encarar o pobre da cabaça, ficou como que fulminado. 

Olharam-se os dois e, contrastando com a calma e serenidade do Ti’Tonho, o desconhecido entrou em transe e tremia, como varas verdes, segundo a expressão de quem assistiu. 

Após alguns momentos em silêncio o pobre da cabaça continuou sereno, fitando o homem que tinha na frente; em contrapartida, o outro pedinte parecia querer dizer qualquer coisa sem poder, sucediam-se-lhe, cada vez com mais frequência, os nós na garganta e as convulsões sacudiam-lhe todo o corpo. 

Pouco tempo depois, caiu de joelhos e ficou prostrado no sobrado da taberna; estava morto.

Disse ainda quem viu, que o pobre da cabaça, sereno, fleumático e calmo, ajoelhou junto do cadáver, fechou-lhe os olhos convulsionados e esbugalhados, levantou os olhos ao céu e, sem dizer palavra, pareceu fazer uma oração fúnebre, findo o que se retirou para a malhada, despedindo-se dos presentes, com as seguintes palavras: a justiça e misericórdia de Deus são implacáveis e insondáveis –  grande Juiz aquele que, para castigar, não precisa pau, nem pedra. E não há modo de fugir-lhe. 

Questionado por populares, autoridades e outros pedintes, o pobre da cabaça não acrescentou nada. 

Apenas se remeteu ao silêncio sobre aquele estranho caso. 

Informou que eram conhecidos, da vida que ambos levavam, e havia muito que se não viam.

Todos afirmaram que ninguém tocou no homem, ou lhe disse qualquer coisa. 

O cadáver, considerado desconhecido, foi mandado enterrar pela Junta de Freguesia, no cemitério de Alcaravela. 

E o mistério… virou lenda.

domingo, 12 de outubro de 2014

O Tonho Rosa


Amante da água, minava-se por chapinhar nas levadas das regas, no Verão, e nas valetas dos caminhos, no tempo das chuvas. 

Sempre descalço, as calças pelo meio da barriga das pernas e amarradas na cintura por um cordel, tapava o tronco com o que restava de uma camisa e por cima farrapos de um velho casaco de serrobeco amarelado. 

Na cabeça, a carapuça de sempre; melhor dizendo, os restos de um barrete preto que apanhou algures e não mais lhe tiraram. 

Era o filho mais novo de uma irmandade de quatro rapazes e três raparigas, e o único com fraqueza de cabeça e poucochinho, como dizia a mãe, quando lhe notava uma grande tristeza no olhar e o via ficar quieto até que o importunassem.

Desde pequeno que manifestou atrasos: custou-lhe a falar e nunca o fez perfeitamente – emitia uns sons, perceptíveis para quem estava habituado, mas indecifráveis para os estranhos –. 

Nunca aprendeu a ler nem escrever, não fazia com a perfeição mínima qualquer trabalho, não dava conta de um recado e seguia sempre à frente, dos pais e irmãos, quando ia para as hortas.

Convivia bem com qualquer animal e afastava-se das pessoas: já tinha apanhado coices de bestas, mordidelas de cães, arranhadelas de gatos, socos e pontapés dos irmãos e de outros garotos e continuava sem medo de nada. 

As feridas cicatrizavam com muita facilidade e, embora deixasse cortar o cabelo, nunca ninguém foi capaz de lhe cortar as unhas das mãos, já que as dos pés andavam gastas pelas pedras e serviam de protecção natural.

A muito custo lá o levaram às sortes.

No entanto entrou primeiro que todos os outros e foi logo dispensado; era evidente a sua indisponibilidade para o serviço militar, na opinião do médico que o viu e mandou em paz e isento de taxa militar. 

Era um incapacitado por deficiência mental evidente.

Assim vivia lá na Terra; esperando, sentado na beira das hortas, enquanto irmãos e pais trabalhavam, até que chegasse a hora das refeições. 

Comia sempre com as mãos e era muito amigo de pão e fruta, de toda a espécie, que tanto colhia nas árvores das hortas da família, como nas que estivessem mais à mão. Gostava de queijo e mamava nas cabras, à mistura com os cabritos.

Tinha boa saúde, se bem que fraca compleição física. 

Aí pelos treze ou catorze anos notaram-lhe as primeiras perturbações que a mãe chamava “acidentes”

Entrava em transe, esbugalhava os olhos, espumava pela boca, rangia os dentes e contorcia-se espojado no chão. 

Sinais evidentes de epilepsia, que o acompanhou por toda a vida. 

Quando lhe davam os “acidentes”, era esperar que passassem, deixá-lo tranquilizar e descansar. 

Nada mais, como dizia a mãe, conformada com a desgraça. Quando recuperava, dava sinais de muito cansaço e adormecia.

Houve uma altura em que deram pela falta do Tonho; teria ele à volta de vinte e cinco anos. 

Procuraram por todos os recantos em volta da aldeia e nem sinais do moço. 

Chegaram mesmo a procurar em poços e nos pegos da ribeira, dada a atracção que ele sentia pela água. 

Ao fim de uma semana, foram participar o desaparecimento na Guarda Republicana do concelho, mas nem uma fotografia havia e os sinais comunicados eram comuns a muitos pedintes que ao tempo enxameavam pelas aldeias. 

Um mês passado e nem sinais de morte, ou vida, do rapaz. Num raio de muitos quilómetros todas as Terras fizeram buscas, em vão.

Quase três meses passados, sobre a madrugada, o pai do Tonho saiu à tapada para as necessidades e, encontra o moço sentado nas guardas da eira. 

Estava acordado, com a cabeça entre as mãos e olhando para o pai, cheio de medo, esperando a sova que pensava lhe iria cair em cima. 

Metia dó ver aquele homem feito, tal e qual um animalzinho indefeso, à espera de um pontapé, dizia, comovido até às lágrimas, o Ti Adriano Marques, que acrescentava: 

Chamei-o, encostei-o a mim, acarinhei-o e perguntei-lhe: onde te meteste, Tonho? Tens fome? Anda, vai para o palheiro dormir, que amanhã dizes-me tudo, está bem? 

Nunca mais vou esquecer a cara do rapaz, como um menino, quando percebeu que lhe dava carinho e não porrada, acrescentava o pobre pai.

A todas as perguntas encolheu os ombros e parecia não perceber o que lhe perguntavam, porque não mostrava lembrar-se de nada. 

Estive a dormir lá na pedra do meio dos pinheiros; não fiz mal a ninguém, não vi ninguém e andei por muito longe, dentro de uma camioneta de pinheiros. E mais não disse.

Passados muitos meses, um dia no largo da taberna, apareceu um pedinte, nunca antes visto por ali e que tinha acabado de dar a volta ao povo. 

Interrogado, por uns homens que ali estavam, sobre a sua proveniência, porque nunca por ali tinha aparecido e outros assuntos de circunstância, acabaram bebendo um copo e em conversa fiada. 

Nisto…

Chega à porta da taberna o Tonho Rosa e mal fitou o pedinte, desatou numa corrida, só parando lá em casa, escondido no palheiro onde sempre dormia.

O esmolante parecia ter visto um fantasma; fechou os olhos, abanou a cabeça, como que procurando acordar dum sonho e perguntou: conhecem aquele homem que aqui esteve há momentos? É que andou comigo e mais uns colegas meus, lá pela Isna, nas terras de Oleiros e encostas do Moradal.

Nunca pediu, acompanhava-nos, como que maravilhado, e ia comendo o que lhe dávamos. Ele tem uns ataques de vez em quando, não tem? 

Só sei que disse que se chama Tonho e que foi posto fora de casa pelos pais. 

Até que um dia, estávamos todos bêbedos, na malhada, adormecemos e, de manhã o Tonho tinha desaparecido, sem levar nada e sem deixar rasto.

Pois não restam dúvidas sobre as suas palavras; o rapaz é filhote daqui, nunca fez mal a ninguém, mas é apoucado e tem “acidentes”, de vez em quando. 

De facto, aqui há meses esteve desaparecido uns tempos e nunca conseguimos saber onde esteve, ou por onde andou. 

Não se importa que mandemos chamar a família, pois vão querer falar consigo, apenas para ficarem a saber o que tem a dizer-lhes? 

Por mim estou às ordens e tenho todo o tempo do mundo para ajudar, se puder ser útil para esclarecer qualquer coisa sobre o rapaz. Tenho muito boa ideia dele.

Veio o Ti’Adriano e acabaram por estar de prosa um bom par de horas. Depois acabou por convidar o pedinte para a ceia e para um encontro com o Tonho, mas teria que primeiro ir preparar as coisas, para o rapaz não desaparecer. 

Que ficasse ali, na taberna, que depois mandaria chamá-lo, quando tudo estivesse preparado.

Lá em casa, o Tonho, cabisbaixo e muito tímido, andava por ali, cheio de medo e, quando viu o pai chegar, percebeu que ele lhe queria falar e foi ter com ele. Cabeça no chão, chegou-se ao pai, como a pedir protecção e ali ficou quieto.

Quando o pai lhe levantou a cabeça e a olhar bem fixo para ele lhe disse que já sabia por onde ele tinha andado, com quem tinha acompanhado e ficou muito contente quando soube que sempre se tinha portado bem, não tinha roubado nada e que quando quis voltar para casa, voltou e pronto. 

Mas os amigos dele ficaram tristes e preocupados quando viram desaparecer o colega e fartaram-se de procurá-lo sem conseguirem encontrá-lo. 

Dizem que sempre te trataram bem; É verdade? E, quando o Tonho acenou com a cabeça que sim, o pai disse-lhe: 

É que aquele pobre que tu viste lá na taberna do Manel é um desses teus colegas, não é? Então porque fugiste? Não queres conversar com ele? Perguntar pelos outros amigos?

O Tonho, mais confiante e percebendo que afinal o pai, não lhe ia bater, sorriu, o que era raro nele, e abanou a cabeça em sinal de aprovação e contentamento.

O pai fez sinal ao irmão mais velho e disse-lhe que fosse à taberna e trouxesse o pedinte que lá estava, mandando adiantar a ceia pois o pobre cearia com eles e, se estivesse de acordo, dormiria no palheiro, ao pé dos rapazes. 

O Tonho ouviu o recado e mais uma vez riu. Estava contente!

Chegou o homem e aproximando-se do Tonho, abraçou-o e disse-lhe: Sabes que a rapaziada tem sentido muito a tua falta, lá por cima. Eu, achei que queria conhecer outras terras e estendi-me até aqui. Não estou arrependido; há aqui gente muito boa e amiga dos pobres. E a melhor surpresa: encontrei um amigo, não é verdade?!...

O Tonho ia olhando para ele, baixando os olhos, voltando a olhar e parecia estar até a gostar. Mas quando o pedinte lhe perguntou porque se tinha ido embora, agitou-se e abanou a cabeça em sinal de desagrado, balbuciando: senti que ia ter um “acidente” e fugi. 

Estive escondido numa buraca lá na serra até passarem os sinais e depois meti-me numa camioneta que estava lá e vim ali para a nossa estrada. 

Ninguém me fez mal; eu gostava muito da malta, mas agora quero ficar aqui e, olhando para o pai, calou-se. 

Ficou cabisbaixo e deixou que os outros continuassem a falar. 

Só se levantou quando viu que o colega estava a comer pouco para se chegar junto dele e fazer gestos para que comesse muito, pois não queria que ficasse com fome.

Ao outro dia o mendigo seguiu o seu caminho e o Tonho continuou no dia-a-dia de todos os dias, acompanhando os pais e irmãos para as hortas. 

O pedinte voltou a passar mais vezes e sempre ceava lá em casa e dormia no palheiro, com os rapazes.

Com o passar dos anos, a doença do Tonho foi-se agravando, os ataques vinham mais amiúde e provocavam mais incómodos, antes e depois de acontecerem. 

Quando os pressentia o Tonho ficava aflito, inquieto e com sinais de ansiedade e sofrimento, até que numa dessas vezes, desatou a fugir e foi-se esconder numa gruta do penedo da ladeira dos brejos. 

Quando foram no seu encalço, eram já abundantes os sinais de sangue na entrada da caverna e, lá dentro, estava deformado e com aspecto de grande sofrimento, depois de lutar contra a morte, o cadáver do Tonho Rosa.

O pedinte dos lados lá de cima, como ficou conhecido na terra, continuou a passar e a cear na casa dos pais do Tonho, indo de seguida dormir no palheiro. 

Porém, nunca saía de ao pé da mesa sem pedir um Padre-nosso, pela alma daquele inocente que, segundo as suas próprias palavras, Deus já Lá tinha….


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O Ti´Jorge dos cabelos brancos



Quando saiu do mar, trabalhou em escritórios e chegou a Oficial de Justiça, em vários tribunais, terminando a carreira em Aveiro. 

Foram vinte anos numa cidade – a mais linda das portuguesas, como referiu várias vezes nas suas memórias, escritas e contadas oralmente – onde escreveu, 

Fez de tudo e sempre foi arranjando tempo para estudar. Depois do serviço militar, alistou-se na Marinha Mercante e foi correr mundo, até aos trinta anos.

pintou, viveu e sóEm pequeno, o Jorge do Outeiro passou cinco anos no Gavião e em Portalegre a estudar para Padre.

Depois resolveu dar uma volta à vida e começou-a, fugindo do Seminário.

Sem coragem de rumar a casa, onde receava o castigo do padrasto, andou por Lisboa e “Santa-Maria-de-Todo-o-Mundo”, sem dar sinais de vida à família, durante uma dúzia de anos.

lhe faltou casar e ter filhos. Até que, reformado, acabou por regressar à aldeia, onde só primos restavam da sua família. 

Nos mais de trinta anos que esteve ausente cortou tudo o que recebera da Terra; tudo não será bem o termo, pois as raízes estiveram sempre vivas, como gostava de lembrar, quando alguém, mais curioso, lhe perguntava por onde tinha andado. 

Um dia, animado por um parente, foi à aldeia e, diante da casa em que nascera e lhe pertencia, desde a morte da mãe, pediu para ficar um tempo sozinho. 

Lá pelo pôr-do-sol mandou chamar o primo e reunidos com uns ex-pedreiros que lhe serviram de amparo nos primeiros tempos de Lisboa, combinou-se a restauração da casa, prontificando-se o primo a recebê-lo em casa durante as obras.

Na aldeia não havia escola; as primeiras letras e as contas passaram a ser ensinadas pelo Ti’Jorge, ao tempo Cabo de Ordens, barbeiro nas horas vagas, agricultor de vez em quando e Mestre-escola, na casa do Ti´Calça Larga, que durante o ano estava desocupada, pois só sentia azáfama na altura das vindimas.

O sr. Jorge Mendes Pires, conhecido pelo Ti´Jorge – como gostava que lhe chamassem -, foi encarregado de dar escola na aldeia, depois de ter sido entrevistado pelo Delegado Escolar do Concelho a quem mostrou competência e conhecimentos suficientes para ministrar o ensino às primeiras classes, ou seja até à 4ª classe, e receber todas as garantias de apoio da Escola Oficial. 

Daria aulas de dia e à noite e seria acompanhado e orientado pelo Senhor Professor que se deslocaria à aldeia, numa viatura da Câmara, pelo menos uma vez por mês. Passou a ter categoria de Regente Escolar e uma remuneração de duzentos mil réis por mês. Nunca quis que lhe chamassem Professor e estabeleceu que seria, para todos, o Ti´Jorge. 

Dezenas de rapazes e algumas raparigas, aprenderam ali o suficiente para fazerem exames de 1º e 2º grau (3ª e 4ª classe) e muitas vezes os alunos do Ti´Jorge foram “Aprovados com Distinção”, não mostrando quaisquer desmerecimentos nos exames feitos na Escola do Concelho.

Dizia-me o meu Padrinho, que, com ele, quando garoto, fez exame da 4ª classe, em Mação, que os meninos e rapazes da Serra eram barras em problemas, raramente davam erros nos ditados, faziam redacções lindas e em geografia sabiam tudo, porque o Ti´Jorge conhecia o mundo, sabia falar com muita desenvoltura – consequências dos estudos no Seminário – e era um verdadeiro artista. 

E, nas suas memórias, havia sempre algo para revelar: Foi com ele que aprendi as primeiras coisas sobre balanças e já mal via e estava quase mouco, quando eu fiz a primeira balança romana, que ele comentou, com um sorriso:

-Embora não tenha ainda formas muito trabalhadas e talvez não seja muito agradável à vista, fiz-lhe testes e posso-te garantir que em termos de rigor é uma obra perfeita. Leva-a ao senhor Aferidor da Câmara e verás que confirma o que te garanto quanto à qualidade da tua balança. Parece-me que deves saber se alguém te pode ajudar a registar a patente. Pergunta lá na Câmara.

Nunca poderei esquecer isso: estávamos a chegar aos anos quarenta, e ele recomendou-me que eu devia aperfeiçoar as balanças, pois a Guerra não podia durar para sempre e, quando ela acabasse, haveria muito desenvolvimento industrial. 

Foi a conversa de despedida do Ti´Jorge. Acho que nenhum dos rapazes do meu tempo alguma vez poderá esquecer aquele homem: gratuitamente e ainda comprando algum material, ensinou quem quis aprender, da terra e de fora.

Depois acrescentava-me o velho Mestre Abílio, que, até que os olhos lhe permitiram, dava cartas no lançamento de uma obra com as plantas e desenhos na mão. E o seu maior trofeu foram as escadas que tiveram de ser emendadas, pelo Ti´Jorge, depois de lançadas por Encarregados de Obra e até de Engenheiros.

Mas não se esqueça, Senhor Professor: o Ti´Jorge nunca castigou ninguém, por não saber. Todos os que lá andavam eram voluntários e ele também. Assim, meus amigos, quem não quiser vir não vem, mas se vier, é para ser alguém. 

Daqui a uns anos, talvez quando eu já cá não estiver, poderei ver-vos, sem ser visto, a agradecerem ao velho Ti´Jorge o que ele vos ensinou. Se quiserem, mesmo sem Professor, podem ser os melhores. 

E querem saber como e porquê? Simplesmente porque querem!...

Alguns alunos iam de dia. Ou porque ainda eram novos demais para trabalhar, ou aprender um ofício, ou porque os pais os dispensavam para estar mais tempo na “escola”. O Ti´Jorge fazia sempre uma reunião depois da ceia, aos sábados, para falar com os pais, sem que os filhos estivessem presentes.

E voltava o meu Padrinho: eu, por exemplo, tinha três irmãos, mais velhos. O meu pai já trabalhava na ferrugem e todos nós estávamos destinados a passar a vida a malhar ferro. E assim foi, mas dentro da forja, cada um seguiu o seu caminho: e eu, que era o mais dispensado para as aulas do Ti’Jorge, quer durante o dia, quer á noite, aprendi lá a gostar de saber. 

Gostava muito de contas, problemas, medições, desenhos de peças, etc.. Também não era mau nas redacções e no ditado, mas gostava mais da Matemática – como dizia o Ti´Jorge. 

Parece que estou a ver o sorriso dele, quando já mais pelo tacto, que com os olhos, apreciou o primeiro exemplo de balança que lhe mostrei. Devo-lhe a mancha de clientes de norte a sul do país e a honra de ter sido louvado pelos serviços de Aferição do Concelho. 

Num discurso do Chefe dos Serviços foi dito que as minhas balanças, produzidas sem o primor de uma grande fábrica, tinham o rigor suficiente para dispensarem, praticamente, os serviços de aferição.

E, com uma nostalgia bem visível nos olhos, rematava: sabes afilhado, homens como o Ti´Jorge mereciam mais as estátuas do que aqueles que por aí as têm. Mas tenho a certeza que a sua humildade não desejava isso e espero que aquilo que me parece que não encontrou no Seminário, lhe foi dado pela vida. Sempre foi o retrato vivo de um homem bom, justo e exemplar.

Foi isso que vi espelhado nos seus olhos, quando, serenamente, se lhe fecharam. O retrato da verdadeira paz! A imagem da autêntica serenidade de uma alma simples. 

O ti´Jorge era conhecido, fora da terra, pelo Professor da Serra. Tinha uns bonitos cabelos; tão farta cabeleira como a dos seus verdes anos. Só que, em vez de castanhos, eram totalmente brancos. Sempre bem tratados e aparados por ele próprio, eram a sua maior preocupação quanto ao seu visual. 

Numa das poucas vezes que se referiu ao seu aspecto, justificou a cor dos cabelos como a obrigação de ser justo, honrado e respeitador. E lavava, invariavelmente, uma vez por semana os seus cabelos; assim como uma espécie de confissão e exame de consciência… 

Uma inconfidência, com que o meu padrinho definia a maneira como o Ti’Jorge dos cabelos brancos gostava de se ver ao espelho.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

FESTIVAL DOS PÁSSAROS (conclusão)


(conclusão)

O pisco Nicolau, cujo nome disse ser vulgar nas suas terras de origem, lá nos confins do nordeste da Europa, foi levado a duas oliveiras onde pôde saciar o seu desejo de azeitonas pretas, e depois foi conduzido ao local de pernoita. 

Foram-lhe ainda dadas as instruções de defesa e segurança que deveria respeitar, escrupulosamente, na zona do melro Augusto e, até que não tivesse outro enquadramento ficaria no grupo dos convidados e adidos.

No dia seguinte o pisco Nicolau foi provar as águas da ribeira, banhou-se nelas, gabando uma tão agradável temperatura, e apresentou-se, com o melro que fora destacado para lhe servir de guia, guardá-lo e protegê-lo, ao melro Augusto para uma primeira conversa e a definição do programa de preparação e treino a que iria ser submetido.

Foi apresentado a alguns piscos que tinham chegado nos últimos tempos e já estavam enquadrados na estrutura e organização do melro Augusto e, por enquanto, ficaria perto do chefe, pois a qualquer altura podia ser chamado por ele. 

Nada faria sem a companhia do seu tutor – melro Anacleto – e em circunstância alguma sairia da área restrita, ou falaria com quem quer que fosse, sem a presença do acompanhante.

Ainda nessa tarde, teve a primeira conversa formal, e sobre a vida e viagem o pisco Nicolau, respondeu ao melro Augusto:

Nasci e cresci lá em terras frias e com pouco alimento. Desde cedo, com um numeroso grupo de companheiros de raça e outros pássaros, fui mentalizado que teria de partir para terras mais ocidentais e mais ao sul, onde o clima era mais quente e havia mais abundância de comida. 

Descreveu, depois, o esquema que vigorava lá na sua terra, onde tudo era estabelecido pelo governo e cada um era mandado para onde era opinião dos chefes e fazendo o que lhe estabeleciam como tarefa. 

Tinham o que precisavam: poiso, alimentação, preparação e saúde, fornecido pelo governo e não podiam deslocar-se sem autorização das autoridades. 

Acrescentou que manteria, sempre, o desejo e a esperança de voltar à região natal. Seria esse o meu destino e poderia mesmo perder a vida nessas longas, cansativas e arriscadas viagens. 

Até então, apesar de muitas dificuldades e sacrifícios – que descreveu ao melro Augusto -, tinha superado tudo e ali estava, pronto para tudo e com desejo de pertencer a tão belas terras.

Andou, depois de partir, sobre terras muito iguais e a certa altura foi preciso contornar altas montanhas e escapar à caça de aves de rapina, que se alimentaram de muitos irmãos seus. 

Nessa altura a sua plumagem era menos colorida e pôde passar despercebido aos que o procuravam para se alimentar. 

Estava preparado para tudo, resistiu sempre e nunca perdeu a esperança de chegar ao paraíso de que lhe tinham falado alguns irmãos mais velhos. 

Mas valeu a pena, pois, finalmente pôde chegar até junto de uma comunidade exemplar que estava disposto a servir, como lhe fosse determinado.

Aqui trabalha-se, em liberdade, mas temos respeito, defesa e utilidade. Quero participar naquilo que me ordenar e sentir orgulho de pertencer a uma organização exemplar de entreajuda, defesa e protecção de todos os elementos do nosso grupo. Coisas que nunca tive desde que me conheço.

A viagem demorou para cima de catorze sois, voando alguns dias, quase sem descansar, de manhã à noite, sempre fugindo de perigos que nunca me tinham sido revelados e dos quais escapei por verdadeiro milagre.

Passei por zonas quase sem abrigo e comida e também por terras melhores e com algumas sementes para saciar a fome. Mas segurança em terra e no ar, nunca senti. A qualquer momento poderia surgir o inesperado e era o fim.

Só quando comecei a ouvir falar nas terras do melro Augusto, me invadiu o desejo de chegar ao fim da viagem, disposto a fazer tudo o que me for mandado para aqui ficar até que o meu destino se cumpra. 

A partir de agora, segundo a vossa vontade e desejo, peço que me inclua na sua comunidade.

Que sabe fazer, pisco Nicolau? Quer continuar com o nome e ficar aqui nas nossas estevas? São terras pobres, onde há liberdade e respeito. Pode ficar.

A primeira coisa que deve fazer é aprender os nossos usos e costumes e a nossa língua, para nos entendermos sem ser por gestos. O seu tutor será o melro Anacleto, a quem obedecerá sem pestanejar e passará a pertencer ao grupo especial dos meus ajudantes, pois a sua longa viagem deu-lhe conhecimentos que precisamos e queremos saber.

Senhor melro Augusto, além de voar, sei fazer muito poucas coisas; apenas distinguir umas quantas sementes que não devemos comer e executar certos movimentos de voo que nos ajudam a fugir a perseguições e podem salvar-nos a vida. 

Lá na minha terra dei instrução de voo livre e acrobacia, bem como técnicas de auto-defesa. Fui louvado pelo meu trabalho.

Atravessei muitas terras e diversas organizações, mas como não estava destinado a ficar, não me enquadrei em nenhum grupo, não me preocupei em aprender nada de lá e nem parava, pois alguma coisa me empurrava para o meu destino. 

Parece-me que, finalmente, encontrei um nome – que aceito, com todo o gosto – e uma família que me recebe bem. A Vossa organização, que ainda não conheço bem, parece-me exemplar e aceito a honra de ficar aqui para trabalhar para si e respeitar todas as ordens. Cumprirei, sem reservas, todas as tarefas que os meus superiores me atribuírem.

Farás a preparação para poderes pertencer à nossa organização, aprenderás o mais possível da nossa língua e costumes, receberás todos os ensinamentos de defesa e vigilância e daqui a uns trinta sois, como tu dizes, serás apresentado ao Grande Conselho, para seres considerado membro de pleno direito. 

Até lá, além de aprenderes, vais estar por perto de mim e serás instrutor de um grupo de detecção, defesa e alerta, da nossa zona. Disseste-me que tiveste muitas experiências de voo, com risco da própria vida. Pois é isso que vais ensinar. Eu próprio serei aluno desse grupo especial que vai aprender voo contigo. 

Que me dizes, estás preparado para nos ensinares o que sabes?

Estou à Vossa disposição e espero poder ser útil aos meus companheiros. Não esquecerei a honra que me é dada, ao fazer parte do grupo de treino de voo. 

Queria pedir que destacasse um dos piscos mais antigos e mais capazes para me ensinar a língua e a forma de viver na Vossa sociedade, que, de futuro, será, também a minha e não quero falhar, em nada.

Concordo com o que propõe e espero vir a ser um dos melhores, pois tenho vontade, sei o que custa a vida e vou trabalhar com afinco. Foi convincente no que acabou de dizer-me. Fico ansioso por começar e aguardo ordens.

E com breves palavas, como era seu hábito, o Melro Augusto, rematou: Bem-vindo à passarada do Vale da Ribeira da Serra. Agora vai, que o teu tutor espera-te. E tem uma surpresa para ti.

Quando chegou junto do melro Anacleto viu-o rodeado por uns quinze ou vinte piscos que foram chamados para um primeiro contacto com o pisco Nicolau e receberem algumas tarefas de ajuda a este novo companheiro. 

Um ficou encarregado de lhe ensinar a língua, outro de lhe explicar as regras de segurança, outro de o acompanhar para traduzir os ensinamentos do tutor Anacleto e mais dois que o ensinariam a procurar alimentos e a banhar-se na ribeira. Tinha ainda um pisco mais velho, de nome Gregório, que nos últimos anos não fora à sua terra, por ter dificuldade em aguentar a viagem, que seria o seu conselheiro e nunca se afastaria muito dele.

Ao terceiro dia depois da chegada, cada vez com o tempo mais frio, teve início a primeira sessão de treino de voo. Foram colocados obstáculos fixos e móveis no canal de voo e cada instruendo, voando à máxima velocidade que pudesse teria de contornar os obstáculos e fazer imediatamente flexão para um dos lado e embrenhar-se em abrigos que não conhecia, pois tinham sido colocados mesmo antes dos treinos.

O melro Anacleto, traduzindo o que proclamou o pisco Nicolau, disse: Os nossos treinos serão reais, os obstáculos podem surgir a qualquer momento e em qualquer parte do campo de voo e depois de cada obstáculo irá, mais tarde, ser colocado um predador. 

Primeiro vamos aperfeiçoar o voo e as manobras de diversão e procura dos abrigos após os obstáculos, depois virão os inimigos. 

Imaginem que em pleno voo vêem um milhafre picando sobre vós; ou são capazes de lhe fugir, fintando-o no último instante, ou morrem. 

Aqui, em princípio ninguém morrerá, mas pode aleijar-se e para isso teremos protecção de colegas especializados que irão receber treino especial. 

O segredo, meus amigos está na atenção máxima, na força que o treino vai dar-lhes e numa coisa que se chama instinto de conservação da vida. O nosso trabalho irá aperfeiçoar essas três capacidades. 

Daqui a sessenta sois, ou dias como cá se diz, teremos umas dezenas de especialistas nestas artes de voo e defesa preparados para interceptar qualquer intruso que penetre no nosso espaço com intenções agressivas. 

Para esses teremos defesa e os nossos irmãos sentir-se-ão protegidos.

O nosso Chefe máximo, aqui presente, dá-nos a honra de fazer parte do primeiro grupo de especialistas a formar na comunidade. 

Os restantes elementos começarão a ser seleccionados amanhã, entre os voluntários que se inscreverem. Este grupo especial terá apenas voluntários e, em qualquer altura cada especialista é livre de pedir dispensa das suas funções. 

Como calculam este grupo e os outros idênticos que se formarem, terão os seus chefes, mas dependerão directamente do nosso Coordenador-Geral que aplicará a disciplina. 

A única coisa que se pede aos especialistas é o cumprimento rigoroso e absoluto das ordens dos chefes, o aperfeiçoamento constante das suas capacidades e o desempenho das missões que lhe forem distribuídas. 

Os especialistas ficarão dispensados de quaisquer outras tarefas, ou serviços comunitários, pois estarão sempre em alerta e prontidão total, mesmo quando em repouso de operações executadas. E, peço autorização, para terminar, por hoje, esta primeira sessão. 

Recomeçamos amanhã ao nascer do sol, preparando o local de instrução e treino, onde os auxiliares, escolhidos pelo melro Anacleto, se apresentarão. Peço ao melro Augusto que encerre os trabalhos. 

No dia seguinte, lá estava o melro Anacleto, com largas dezenas de pássaros de todos os tamanhos e tipos, para que fossem estipulados os trabalhos de definição dos campos de treino e preparação, marcadas as árvores limite, espalhados os sinais de direcção de voo, colocados os locais de protecção em caso de acidentes e muitos outros pormenores que encantaram o melro Augusto, pois tudo era previsto e à partida nada podia falhar. 

Depois o pisco Nicolau pediu autorização para começar a selecionar os primeiros instruendos, uma vez que logo que estivessem reunidos os primeiros quatro grupos de seis unidades, seriam iniciados os trabalhos.

Com todos os presentes em silêncio foram ditas as regras aos futuros especialistas: idade entre os dois e os sete anos, inspecção ao corpo, especialmente asas e pernas e aspecto geral, bem como visão e audição. 

Todos os instruendos seriam voluntários e cumpririam sem reservas, mesmo com risco da própria vida todas as ordens dos chefes. 

Depois, na presença do melro Augusto, começaram a ser interrogados, pelo pisco Nicolau, um por um, todos os presentes: queres ser especialista? 

Os que respondiam afirmativamente, passavam para a direita do instrutor; os que respondiam negativamente voltavam para o seu lugar. Depois de ouvidos todos os presentes, tinham aceite a aposta, quinze candidatos que, nessa tarde foram inspecionados, sendo aceites onze. 

Juntando o melro Augusto, estavam formados os dois primeiros grupos de seis elementos. Nos dias seguintes iriam a outros locais fazer a selecção dos restantes doze candidatos, mas no dia seguinte ao romper do sol iniciava-se a instrução que duraria sete semanas.

Finda a instrução teve lugar, na presença de muitos convidados, um festival de exibição e demonstração dos grupos de defesa da Ribeira. 

Todos os instruendos ficaram aprovados e receberam distintivos. 

Depois do festival a vida voltou ao normal e graças à vigilância e intervenção dos grupos de defesa, passou-se uma época em que nenhum pássaro sofreu acidentes ou foi ferido pelos predadores e percalços que eram vulgares.

sábado, 6 de setembro de 2014

Festival dos pássaros - 1ª parte

  

(1ª parte)

Para o melro Augusto, o ano não foi mau. 

Arranjou uma boa companheira, fizeram ninho nos balceiros do lagar velho, a vistas do Sanguinhal, e criaram os três filhos. 

O Outono ia de feição - bom ano de novidades, uvas com fartura de rabisco, boas frutas e bastante água na ribeira, pelo que não faltaram hortas regadas e boa provisão de bichos para toda a passarada. 

As oliveiras já pintavam e o frio ainda não era demasiado. 

Conseguiu descobrir, a tempo, uma armadilha debaixo das videiras do chão do Moleiro, disputou com um rouxinol, nas laranjeiras do Cabecinho Agudo, as eleições para Encarregado-Geral e foi escolhido para Chefe dos Pássaros, no vale da Ribeira da Renda e brejos circundantes.

No fim de Verão demarcou, como área de repouso e abrigo, a chapada de estevas que vai do açude da Renda até às primeiras hortas do Lavadouro. 

Era uma zona soalheira, nos baixos da encosta da Lomba, ali à meia barreira, onde nem os pinheiros vingavam, tal era a densidade de estevas e tojos. 

O maior perigo vinha das raposas que tinham criado junto da represa que escorre para a azenha, mais ou menos a meio da mancha de estevas que formava o território do melro Augusto. 

Mas eram tantos os ratos que procuravam restos de grão, junto do moinho, que os bichos maiores nem precisavam procurar os pássaros para andarem gordos e saciados.

O melro Augusto pernoitava, descansava e vigiava a sua zona sobre um tufo de balças, num pinheiro anão, com as carrascas cobertas de musgo e as carumas quase inexistentes substituídas por ninhos de processionária. 

Pouco maior que as estevas, era, no entanto, o local de atalaia do Encarregado da Zona e dos seus ajudantes mais chegados. 

A sede do Governo dos pássaros.

Não longe dali, numa espécie de palanque, entre um montículo de terra e pedras - mais pedras que terra - e um pequeno penedo, com grutas e subterrâneos, como convinha, um anfiteatro natural servia de local de reuniões e recepções. 

Era ali que o melro Augusto despachava o expediente, recebia os recém-chegados e organizava a guarda avançada que se estendia pelos cimos da chapada de estevas e pelos baixos, logo a seguir à levada que ladeava as hortas, desde o açude ao Lavadouro, nuns bons trezentos metros.

No outro lado da ribeira, por toda a sua esquerda, desde os primeiros pinheiros das Barreirinhas, ao plano dos Brejinhos, espraiando-se pelos Brejos e cabeço do Lavadouro, à entrada do Vale das Lousinhas, todo um conjunto de vigilância e alerta reportava para o comando qualquer entrada estranha, ou simples tentativa de intrusão, na zona de influência daquela comunidade, sob a responsabilidade do melro Augusto.

E tudo corria tão bem que, naquele ano em que o melro fora escolhido para Encarregado-Geral, não houve nenhuma baixa na comunidade. 

Até, no tempo dos taralhões, os garotos se afastavam dos pinchos da zona, pois a passarada de lá não caía nas costelas. 

Apenas algum intruso que acidentalmente tivesse penetrado na zona, poderia ter sido vítima das armadilhas que, ocasionalmente, algum caçador por ali tivesse armado.

Nos terrenos do melro Augusto, os principiantes eram ensinados a movimentar-se nas estevas, eram adestrados na arte de fugir aos predadores que pudessem encontrar: fossem cobras e outros répteis, gatos-bravos ou não, raposas e cães. 

Também os milhanos e alguns outros perigos eram evitados e havia esconderijos preparados para emergências.

A fama do melro Augusto já se estendera por todo o vale, desde o cabeço do Manglório e o Vale Dianteiro onde tinha começo a ribeira da Serra, até para lá da Amieira Cova onde se entrava nas áreas da Saramaga e outras terras da Alcaravela. 

Por todos os vales que escorriam para o leito da ribeira também já se falava da mestria, sabedoria e eficiência do melro Augusto.

Naturalmente, gerou-se um movimento para que na próxima Assembleia de Zonas fosse proposta a candidatura do melro Augusto. 

Era um facto sem precedentes, pois os gaios, as rolas, os pica-peixes, os emplumados papa-figos e até milhanos e peneireiros, eram, segundo os costumes, os pássaros escolhidos para Encarregados de área. 

Os cucos não tinham voz, nem voto.

Agora, porém, chegava-se mesmo a avançar com a ideia de uma chefia alargada a toda a zona da ribeira da Serra e vales adjacentes, numa área de grande diversidade e importância. 

Seria um Encarregado-Geral-Principal, com assento no Grande Conselho Avícola, Membro do Conselho Supremo de Ornitologia, com o pelouro das aves migratórias. 

O melro Augusto recebeu muitos emissários e observadores. 

Foi objecto de muitas sondagens acerca da sua disponibilidade, e sempre humilde e generoso com os que o visitavam e elogiavam, nunca baixou a guarda, mandando sempre vigiar e acompanhar os que partiam e deixando no ar o seu maior desejo: servir os seus irmãos, protegendo-os e zelando pelo bem-estar colectivo e não desleixando os cuidados com todos os que espreitavam por uma oportunidade para virem ali fazer qualquer desgraça. 

Foi, pois, neste contexto que num dia de meados de Outubro, em pleno Outono, já com chuva e frio, mas ainda com sol reluzente, chegou ao esteval do melro Augusto, um pisco desgarrado, sozinho, e perguntando pelo Encarregado de quem tinha ouvido os maiores elogios, desde que cruzara os últimos grandes montes antes do mar.

Levado à presença do melro Augusto, ficou encantado com a simplicidade do Encarregado, com a forma como foi recebido e, desde logo, convidado para, nos próximos dias, se encontrar com o chefe para falarem sobre a longa viagem que fizera desde a sua terra até ali. 

E, se fosse caso disso, apresentar as suas petições de permanência, como parecia ser seu desejo.

(Continua na próxima publicação)