terça-feira, 29 de julho de 2008

O ”pardina”

As noites andavam muito rigorosas naquele mês de Janeiro. As chuvadas caíam umas atrás das outras e as trovoadas não faltavam um único dia. Todos os ribeiritos rebentavam pelas costuras e os caminhos pareciam charcos que ao reflectirem o luar geravam uma luminosidade feérica e anormal. O vivo selvagem – raposas, gatos-bravos e lobos – aproximava-se dos povoados e a míngua obrigava a aventuras nas capoeiras e redis das redondezas de quintas e casais.

Quando se acabavam os cavacos que durante as primeiras horas do serão ardiam na lareira, para ferverem a panela das viandas e servirem de aquecimento ao pessoal, e as brasas já estavam completamente apagadas, era hora da deita. Depois, nas enxergas, agasalhados quanto podiam, homens e mulheres aconchegavam-se e aqueciam-se, mutuamente, até adormecer.

O ruído do vento e o martelar da chuva, nos telhados de telha vã, cortados pelo ladrar dos cães e, ribombar da trovoada, criavam o ambiente para crendices, almas do outro mundo e fenómenos anormais de bruxarias e coisas semelhantes.

As noites, escuras como breu, eram apenas cortadas pelas lanternas de azeite que se usavam para uma necessidade maior, ou para pensar o gado. O convívio com a escuridão era normal nas gentes das aldeias e o escuro, em si, não incomodava.

Só muitos anos mais tarde, durante a década de setenta, do século passado, se generalizou a extinção das estrumeiras, o calcetamento das ruas das aldeias e a iluminação pública. Até aí, mato, lama, excrementos e todo o género de imundície, enchiam as ruas.

O “pardina” dormia grande parte das noites no palheiro da horta da Cova do Pereiro.

Paredes de pedra e barro, sem qualquer janela e uma porta de tábuas de pinho, fechada, por fora, com uma tranqueta e, por dentro, trancada por uma costaneira grossa, enfiada em dois buracos da parede, um de cada lado da porta.

Quem tentasse entrar, com a porta trancada por dentro, não tinha maneira de fazê-lo, a não ser pelo telhado, de telha vã, afastando as telhas e depois de partir algumas ripas.

O espaço, amplo, teria quatro metros de frente, por três metros de profundidade. As paredes eram grossas e sem qualquer reboco. Entrando na porta, a parede da esquerda era mais alta e daí desciam os barrotes de vergônteas de castanho, já de provecta idade e pouco espaçados, que suportavam as ripas sobre que se estendiam as telhas de canudo, vulgarmente chamadas mouriscas.

A toda a volta do palheiro, excepto pela frente, havia um fosso de uns sessenta centímetros de largura, entre as paredes e as barreiras de terra e xistos – lousinhas, como se diz na região –. O palheiro aproveitava, assim, o desnível do terreno e era praticamente invisível, uma vez que o telhado ficava ao nível do solo pelos lados norte, onde ficavam as traseiras, e poente, onde estava a empena mais alta. Pela frente as árvores da horta completavam a camuflagem.

Junto à parede mais alta, a da empena, o “pardina” montou um catre tosco. Uma espécie de manjedoura cheia de palha, coberta com um panal da azeitona e umas duas ou três mantas velhas, encardidas e esfarrapadas. No topo oposto à porta, uma saca cheia de camisas de milho, servia de travesseiro. Estacas espetadas na parede serviam de cabides para o fato e de suporte a sacos que tinham de ser preservadas dos ratos.

Junto à porta, do lado direito, uma pequena choça de colmo, ligada à parede, servia de casa do cachorro. Com o chão atapetado de palha, o “bimbo” não passava frio e além do caneco, onde não se acabava a água, uma pia de pedra estava, usualmente, abastecida de comida. Havia autonomia para três ou quatro dias, não contando com caça e fruta, abundante na horta, todo o ano.

Os acessos eram recônditos, pois à volta havia estevas altas, carrasqueiros e balças e, pelo lado da horta, as laranjeiras, oliveiras e videiras, fechavam as vistas do caminho que passava ao fundo da horta em direcção à Pedreguina, Cabeço Seixo e Serra do Corvo, perdendo-se para os lados da Queixoperra.

O “pardina” era um tipo especial. Tinha, e cultivava, ar de lorpa e fingia aceitar todas as petas que lhe pregavam. Na escola foi andando, até à terceira classe; nos trabalhos do campo era teso mas muito pouco organizado; tinha habilidade nata e propensão para lidar com animais, para tratar de colmeias e para armar os ferros aos coelhos e lebres que comia todo o ano e nunca se acabavam na “arca”: uma caixa, de latão, dentro duma saca de adubo, pendurada no poço, por uma corda, de forma a ficar a uns dois metros da água. Conservava a caça, uma ou duas semanas.

A cabaça, com água do próprio poço, estava também, pendurada no fresco.

No serviço militar foi soldado em Abrantes e Elvas e desempenhou, a contento, os serviços básicos de que foi incumbido: tratar de animais, limpar cavalariças e fazer recados, dentro e fora do quartel. Sempre passou despercebido.

Em casa fazia todo o tipo de trabalhos, cavava, roçava mato, regava e trabalhava com a carroça e o arado. Foi a azeitonas, ceifas, mondas e “alimpas” e podas.

Nunca se lhe conheceu namorada, se bem que fosse com os restantes rapazes do seu tempo a bailes e descantes, na terra e fora dela. Porém, nesta área, era muito calado e, como dizia o Ti’Alfredo, seu avô materno, comia, pela calada, e fechava-se em copas.

A alcunha “pardina” vinha-lhe de um estudo – como orgulhosamente dizia – que fizera, durante anos a fio, a umas avezinhas migratórias que chegam, em bandos, às nossas terras, aí por meados de Agosto. Uma verdadeira nuvem que até tapava o sol.

O nome desses taralhões é chascos, embora vulgarmente se chamem pardinhas – provavelmente pelo tom pardacento da sua plumagem. O Luís eliminou o “l” e sempre disse “pardinas”; ficou com esse apelido, que nada o incomodava e, uma vez em cada ano, no mês de Agosto, haviam de vir os passaritos que traziam anilhas, de lata, nas patitas. Tinham escritas umas letras e muitos números.

Pensava o Manel com os seus botões: “Látvia” não sei o que é, mas a acreditar nos números, tão grandes, das anilhas, são milhões de passaritos e, entre doze e catorze de Agosto, já tinha o lameiro, na frente da horta, coberto de costelas, com agúdias a luzir, aos primeiros raios do sol da aurora.

Ia, depois, na companhia do “bimbo”, para o cabecito, em frente, e, olhando para o céu, esperava a nuvem de passaritos que havia de chegar. Impacientava-se mais que o companheiro e, depois da invasão de toda aquela multidão, que, momentos depois, acabava por levantar voo para outro lado, o “pardina” recolhia os despojos.

Dizia, depois, na taberna, que numa das caçadas, nas cento e oitenta costelas que espalhou, apanhou cento e sessenta pardinas. Vezes sem conta repetia a história e sempre o Chico coxo resmungava: mentiroso sou eu e nunca fiz tal caçada; aldra!...

Embora pernoitasse no palheiro, que ficava a uns quinze minutos da casa dos pais, no Casal, nunca deixava de comparecer, chovesse ou fizesse sol, a tratar dos animais, comer uma bucha e acompanhar o pai nas lides da casa. Estava sempre a horas no seu lugar e, raramente, se atrasava para as refeições da família.

Esta situação fazia desconfiar a vizinhança: que raio teria ele no palheiro que o fizesse deixar a casa de baixo, onde tinha uma enxerga, lareira e cozinha, ali a dois passos da taberna e junto de pai e mãe? E a saca que trazia, sempre, ao ombro?

Bem, nestas alturas há logo quem pense coisas e loisas e não falta quem invente de tudo, para todos os gostos. Foi, pois, a curiosidade que moveu o Ti’Zé do Codes a montar a espreita com o fim de descobrir o mistério.

Começou a sair de casa logo depois do pôr do sol e após uma primeira passagem pelo caminho da Queixoperra, desviava-se em direcção ao Cabeço Seixo e subia a um pinheiro de onde conseguia ver, vagamente, a porta do palheiro do “pardina”.

Esperava e caso o visse entrar, normalmente, descia do pinheiro e voltava para casa, uma vez que nada de anormal se passava. Nas noites seguintes tudo igual, afora os dias em que o “pardina” dormia na casa dos pais e o Ti´Zé cansava e desesperava em cima da árvore, enregelado.

Junto do palheiro o guarda de serviço era um rafeiro, que dava pelo nome de “bimbo” e reagia à menor ameaça de aproximação de intrusos, ou ao mais pequeno ruído não identificado. Na presença do dono, imobilizava-se e só fazia o que ele lhe mandava. Comia do que caçava e das sobras do dono e nada lhe faltava, na casota.

Se o dono queria ir a algum lado sem companhia, voltava-se para o bimbo e ordenava: que é da copa, bimbo!? Tanto bastava para que o bicho largasse à desfilada, mais parecendo um galgo, e fosse tomar o seu lugar na sua casota, à porta do palheiro. E ali se quedava até que o dono voltasse; demorasse o tempo que demorasse.

Se ia com o dono armar um ferro aos coelhos ou lebres, ou tocaiar outra qualquer presa, ou se recebia sinal de que a sua presença, os seus odores, ou o seu barulho eram prejudiciais, metia o rabinho entre as pernas e retirava-se para não incomodar.

Os estranhos que passavam no caminho que circundava a horta, eram, discretamente, acompanhados até o convencerem de que não se dirigiam às imediações do reino do dono. Caso contrário, eram ameaçados por ruídos e atitudes, chegando mesmo a vias de facto se o intruso teimasse em aproximar-se do seu local de guarda.

Conhecia e permitia a aproximação ao palheiro apenas a quatro pessoas: o dono, o Ti’ Jorge do Casal e a Ti´Joaquina, pai e mãe do dono e a Amélia – uma amiga –.

O Manel do Casal, vulgo “pardina”, já passara os quarenta e embora conseguisse viver com a solidão, olhava para os pais, já de idade bastante avançada, lembrava a única irmã, há muitos anos ausente no Alentejo, para onde casara e de onde raramente voltara à terra onde nascera e pensava em mudar o seu estado de vida; arranjar uma mulher e casar-se.

A mãe, que não era excepção nas dúvidas que toda a gente tinha quanto ao modo de vida do filho, perguntou-lhe uma vez:

Oh Manel, já pensaste que, um dia, podes ficar sozinho, envelheces e nem sequer tens ninguém chegado que cuide de ti!? Vê se arranjas uma mulher que te mereça, que te ajude na lida das terras e cuide de ti, mesmo que não tenha grandes posses. Tens bem que chegue para te ocupar e filhos já não serão muito de esperar; como sobrinhos não tens, para ti há-de chegar e sem ninguém a quem deixares, não adianta esfalfares-te com trabalho. Ouve o que te digo!

Aquela meia dúzia de ideias encheram-lhe a cabeça e, durante longas noites, pensava no que a mãe lhe dissera.

Porém, não era fácil abandonar o palheiro da Cova do Pereiro, deixar de partilhar com o fiel “bimbo” a cumplicidade das horas boas e más, abdicar do gozo que lhe causava a vida que conseguia fazer com a Amélia, nas barbas de todo o mundo, sem que ninguém tivesse toscado nada.

O segredo de ambos, era a coisa mais bonita que alguma vez tinham conseguido e era de tal modo doentio e forte que, tanto ele como ela, engendravam tudo e levavam a tal ponto os cuidados para que jamais fossem surpreendidos, que, muitas vezes, se surpreendiam a eles próprios e se desencontravam.

O “bimbo” único conhecedor e cúmplice das intimidades do casal, tivessem elas lugar no palheiro do Manel, nos cómodos da casa da Amélia, ou em lugares recônditos do campo, parecia gozar com o segredo e passava horas, parado, em guarda, à espera que tudo acabasse e tivesse, por fim, no olhar de ambos, a merecida recompensa pela sua colaboração.

Quando o casal se separava, o “bimbo” acompanhava, discretamente, a Amélia, até que a considerasse em segurança e livre de suspeitas.

A Amélia, mulher robusta, poucos anos mais velha que o Manel, filhota da Saramaga e a viver nos fundos da Pedreguina, onde a família passava os dias, na horta e courela – espécie de casal, com casa, criação, e cómodos – tinha o secreto desejo de casar.

Recusara vários pretendentes, em benefício de um ideal que só ela, o Manel e o “bimbo” conheciam e alimentavam. O pai, de idade muito avançada, sabia que havia mouro na costa, mas não se metia na vida da filha, que andava feliz e contente e dava mostras de nada lhe faltar. Ao fim de contas, se também a Amélia nada deixava faltar-lhe, para que havia de se meter.

O Ti’Chico Pedra enviuvou cedo e ficou só, com a Amélia, a tratar daquele casal. Pela filha deixou de ir a muitos trabalhos que lhe dariam algum dinheirito junto, mas nunca lhe faltou nada.

A rapariga cresceu e embora nunca tivesse frequentado a escola era esperta e zeladora da casa; não lhe faziam o ninho atrás da orelha. Conhecia o dinheiro e andava bem arranjada para o meio em que vivia: umas vezes ia à missa dos domingos à Saramaga, outras à Queixoperra e, menos vezes, à Serra.

Nos casamentos e festas, ficava em casa de parentes e acompanhava as outras, ao ritmo da sua idade. Numa dessas andanças veio às falas com o “pardina”, afinal um dos seus vizinhos mais chegados e pessoa de que gostou logo nessa primeira prosa.

O rapaz tinha vindo da tropa e passava muitos dias na Cova do Pereiro. Filho de boas gentes e de trato e maneiras muito simples, agradou à Amélia.

Pouco depois morreu a mãe da rapariga e o Manel foi-se aproximando, chegando mesmo a dar uns dias em casa do Ti’Chico, lavrando e semeando as hortas e começando a aparecer em malhas, descamisadas e matanças. Cruzava-se com a rapariga, olhavam-se, demoradamente, e depois, mais uma semana de separação.

Até que no regresso de umas festas de Alcaravela, em pouco mais de meia dúzia de palavras, acertaram que haviam de ser um para o outro, demorasse o tempo que demorasse, acontecesse o que acontecesse. E, assim foi.

Encontravam-se, ou faziam-se encontrados, fortuitamente. Andavam perto um do outro, fruindo uma auréola de bem-estar e cumplicidade, olhavam-se em silêncio e realizavam-se, platonicamente, até que um dia de S. João, ao voltar da missa, o Manel chamou a Amélia e perguntou se podia falar com ela, depois do pôr do sol, na horta dos limoeiros, junto da represa. De preferência depois do pai se deitar e sem a presença dos cães, para que nada pudesse ser suspeito, ou pensado por alguém.

Lá te esperarei, homem. Temos muito que conversar. Até logo!...

O Manel saíu ali da igreja da Queixoperra, passou pelo palheiro e dirigiu-se a casa dos pais.

Comeu qualquer coisa, arrumou uma camisa, um par de ceroulas e umas meias no fundo da saca e voltou para a Cova do Pereiro.

Contra o que lhe era habitual, sentiu que o tempo passava devagar demais e nunca mais se fazia noite.

Ao sol posto, saiu, tomou a direcção da Serra, atravessou nos altos do Cabeço Seixo, tomou o caminho das Vagens, até à portela da Azenha. Dali, a corta mato, tomou a direcção da horta dos limoeiros e, às vistas da represa, ocultou-se entre os arbustos e esperou.

Esperou, todavia, pouco tempo; a Amélia estava oculta entra as videiras da horta e, em resposta a um ruído estranho, mostrou-se, para que o amigo saísse da sombra e se dirigissem, os dois, para junto da represa.

O escuro tinha já caído e o ar quente estava praticamente parado, naquela calma das noites de verão. A pouca luz e a propensão para ver de noite, puseram a nu um tom claro e muito brilhante nos olhos da Amélia.

Pela primeira vez o Manel tinha, a uns dois palmos, os lindos olhos duma mulher; sentia o arfar do peito, robusto e apetitoso da Amélia e ao tomar-lhe uma das mãos, sentiu uma humidade, anormalmente, fria.

O Manel, sem saber porquê, mantinha uma calma e presença de espírito, anormais. Respirava um pouco mais rapidamente que o costume, mas estava perfeitamente controlado. Apertou a mão da Amélia, olhou-a bem nos olhos e, simultaneamente, chegaram-se um ao outro, com os braços estendidos e os rostos proeminentes.

Estava dado o primeiro de muitos beijos que haveriam de trocar, entre si.

Pararam e ficaram a olhar-se, dizendo, em rigoroso silêncio, aquilo que durante tanto tempo teriam ensaiado; prometendo o que sentiam e queriam para ambos, antevendo uma longa vida a dois, em paz, harmonia e comunhão.

Nem deram pelo passar das horas, sentados, de mãos dadas, calados na maior parte do tempo e, cada um por seu lado, pensando e arquitectando uma vida em comum. Mais tarde, confessaram, um ao outro, que aquele foi o seu verdadeiro casamento e mesmo que mais nada tivesse acontecido, não voltariam a ser de ninguém, senão um do outro. E, de facto, assim viria a ser.

O luar veio com a sua claridade, aproximar mais aquelas duas almas que acabaram por se levantar e, sempre agarradinhos, caminharem pela levada, até ao cabanal do carro e sentaram-se na guarda da eira, junto a um monte de camisas de milho.

Continuavam a falar pouco, suprindo com o olhar tudo o que as palavras não diziam.

Porém, mais por ingénua insinuação e atrevimento da Amélia que por destemor e desenvoltura do Manel, com a lua por testemunha e os panos da carroça por leito, foi feita mulher a donzela da Pedreguina.

Extasiados, incrédulos, admirados e com a felicidade expressa nos rostos, beijaram-se, carinhosamente, e continuaram, em silêncio, até altas horas da madrugada.

Despediram-se e cada um por seu lado, ela depois de guardar, ciosamente os panos ensanguentados, dormiu, profundamente, até que o pai a chamou.

Ele, no catre do palheiro do Vale do Pereiro, não acordou, como habitualmente, e, contra o seu costume, só apareceu, em casa dos pais, com o sol já alto.

O “pardina” tinha ouvido algumas conversas sobre relacionamento entre pessoas, vida em comum, relacionamento sexual, e ávido de saber coisas, estava sempre de ouvido à espreita; era muito mais amigo de ouvir que de falar e, como ele às vezes dizia:

“Ouvi um dia dizer, lá na tropa, a um oficial, que as pessoas têm dois ouvidos e só uma boca. Devem ouvir em dobro e falar em singelo. Assim, estou certo.”

Mas voltemos ao assunto que marcava toda a sua conduta e o seu relacionamento com o da sua mulher.

Só uma coisa muito forte poderia impedir que se fizesse um casamento, certamente do agrado de todos e sem nada aparente que impedisse aquela união. E isso não era assim tão mau; sempre que se encontravam, passados mais de quinze anos sobre aquela primeira vez na eira, era tal a intercomunicação, tão forte a comunhão, tão verdadeira a entrega dos dois que poderia ser descrito como perfeito.

Nada, nem ninguém, poderia quebrar o vínculo que unia aquelas duas almas, porque, como o Manel aprendeu: nunca ninguém forçava ninguém, havia um verdadeiro segredo – qual pacto de sangue –, cada um só queria satisfazer o outro, acertavam na perfeição os tempos e as reacções, numa palavra: eram, verdadeiramente, dois num só.

O “pardina” e a Amélia nunca casaram; mantiveram sempre uma relação perfeita. Acabaram por baixar a guarda e, já com avançada idade, foram, um dia, surpreendidos.

O “bimbo” tinha sido apanhado pelo carro do veterinário que, de visita à aldeia, não foi capaz de evitar o atropelamento. Estava fora do seu posto, quando o “Samarra” que havia muito tempo seguia a Amélia, a viu entrar no palheiro e ficou à coca.

Esperou toda a noite, mas na manhã seguinte estava sentado na nora da horta do “pardina” e surpreendeu o casalinho a sair do ninho de amor.

Com a maior tranquilidade do mundo, o Manel, depois de salvar, apenas disse: vamos Amélia que se calhar o animal já está pior e, se não chegamos a tempo, não haverá ajuda que o salve. Fizeste bem em vir-me chamar!...

E, ainda nesta vez, deixaram o intruso de boca à banda e avisado que tivesse cuidado com a língua, pois qualquer história que “inventasse” podia sair-lhe cara.

E o Manel e a Amélia lá seguiram na direcção da Pedreguina, onde acabaram por se rir da cara do estouvado do “Samarra”, que, mais uma vez, acabou enganado, quanto ao que julgava poder espalhar, aos sete ventos, sobre o segredo do Palheiro da Cova do Pereiro.

domingo, 27 de julho de 2008

Abílio – “vai-de-viagem”

Muitos, de gerações mais novas, nem lhe conheciam o verdadeiro nome – Abílio –, que recebeu na Pia Baptismal, quando, já andando e correndo tudo, pelo seu pé, o foram sacramentar ao Penhascoso.

De família mal remediada, vivia nuns casebres lá para o fundo do povo. Muitos dias da sua meninice foram passados nas duas hortitas da família, ou no quintal ao pé da porta.

Guardava duas ovelhas e quatro cabras e alimentava-se do que apanhava.

Na altura da escola, fez o que se lhe exigiu – o exame da quarta classe – e mais longe não foi. Dois anos depois já seguia para a ceifa, lá para o Alentejo, na companha do ti Chico “Manajeiro”.

O Abílio comia que nem um desalmado e era de muito boa boca, no dizer do manajeiro; tinha uns apartes engraçados e não faltava ao respeito a quem quer que fosse. Numa palavra: gostava do rapazote.

Numa tarde de imenso calor, veio o manteeiro com os quatro barranhões de gaspacho, os barris da água e um cesto com os corchos e os casqueiros partidos aos quartos. Dispôs tudo debaixo duma azinheira e fez sinal ao manajeiro que tudo estava pronto. Ouviu-se, pouco depois, a voz de “alto para jantar”.

Cada um tomou o seu lugar, pegou na colher e, após uma breve oração, foi dada a voz de comer. Todos se fizeram à “bóia”, com sofreguidão, e foram comendo.

A certa altura caiu um gafanhoto, de tamanho médio, no barranhão, frente ao Abílio. Não se incomodou o rapazote e, metendo o visitante inesperado na colher, como que num ritual, disse, com voz grave e baixa:

“Encolhe as asas que vais-de-viagem” e comeu o pitéu, com toda a naturalidade.

A coisa terá passado despercebida a alguns camaradas; porém, o Flores, mais judeu que os da Galileia, começou a andar de olho no Abílio.

Não foi preciso esperar muito tempo para que uma mosca caísse ao alcance do Abílio e tivesse o mesmo destino do gafanhoto, em ritual semelhante.

Tanto bastou para que o Flores e o Alberto espalhassem, imediatamente, a alcunha do “vai-de-viagem”.

Ao Abílio nada incomodava a alcunha, que nem sequer detestava. Sempre continuou a fazer-lhe jus: pernas de rã, verdugos, ouriços-cacheiros, raposas, corvos e andorinhas, eram, para ele, pitéus.

sábado, 26 de julho de 2008

O castanheiro dos Tocos

O centro do país – concelhos de Sardoal, Mação e Vila de Rei – esteve ocupado por soutos de castanheiros, que muito contribuíam para o sustento de gentes e animais. Hoje restam alguns vestígios dessas árvores, cujas copas chegavam a atingir dezenas de metros e davam muitas arrobas de castanhas.

O meu avô, nascido nos anos de 1880, dizia-me que a quase totalidade dos terrenos da aldeia esteve povoada de oliveiras, sobreiros e, principalmente castanheiros, até meados do século XX. As gentes viviam da pastorícia e do amanho das terras.

O maior castanheiro que vimos, nas redondezas da aldeia, situava-se no termo da Saramaga, ao cimo das terras da Amieira Cova, a meia encosta entre a ribeira dos Tocos e o monte que a ladeia a poente. Chamavam-lhe, o castanheiro dos Tocos.

Era uma árvore imponente, ainda nos anos 50, quando por ali andámos. Tinha uma copa com uns 15 metros de diâmetro e o tronco media dez metros, de perímetro, sendo necessários seis adultos, de mãos dadas, para o circundar. Dois metros e meio acima do solo, o tronco ramificava-se em diversas pernadas e ramos, que, começando com a grossura da nossa cinta, se estendiam por uns sete metros, até à ponta dos ramos.

Segundo a voz do povo, a árvore estaria perto dos mil anos: teria crescido nos primeiros 300, vivido até aos 600 e envelhecido nos restantes 300, ou 400.

O castanheiro servia de abrigo a homens e animais, especialmente a câmara que se tinha formado no interior do tronco, já carcomido e cercado de pedras e plantas selvagens. Abrigava-se, ali, um pastor com umas dez ou doze ovelhas.

As castanhas da variedade bical, suculentas, fáceis de descascar e pilar, tinham sabor adocicado.

Com o andar dos tempos, os terrenos vizinhos foram sendo menos limpos. O mato e as silvas subiam pelas ramagens até meio da árvore. O abrigo recôndito, no tronco, fora abandonado e apenas os mendigos nele dormiam, se ali passavam.

Aí pelos anos cinquenta, num dia de Outono, gerou-se um burburinho na aldeia e logo se espalhou a notícia de que os lobos que tinham comido 3 reses na Saramaga, 4 nas Lercas e uma lá na Serra, tinham sido perseguidos, pelos cães, e estavam refugiados no castanheiro dos Tocos.

Tocaram os sinos, a rebate, e juntou-se o povo, nas várias aldeias. Formaram-se grupos de caçadores, com armas e cães. Marcharam para os Tocos, com o cabo-de-ordens a comandar a campanha, e uma chusma de populares atrás.

No perímetro do castanheiro, aí a uns cinquenta metros da árvore, foram soltos e açulados os cães e gerou-se grande algazarra. Porém, ao fim de largos minutos, apesar da impaciência de animais e gentes, nada apareceu aos caçadores que estavam, de arma aperrada, esperando.

O cabo-de-ordens foi junto dos caçadores e gritou, para o povo: o que lá estiver tocaiado há-de sair, a bem, ou a mal. Pegou numa acha de palha e feno, acendeu-a, aproximou-se do castanheiro e lançou-a.

Pouco depois ardia, como tocha imponente, o que fora o mais representativo dos exemplares dos castanheiros da região – o castanheiro dos Tocos –.

Ouviram-se três tiros, tendo sido considerado certeiro o do único caçador da Serra – o António Piloto –, tido como homem experimentado e artista no gatilho.

A fera abatida, foi levada para a aldeia do caçador que a abatera – a Serra, onde foi pendurada no velho plátano, existente no pequeno adro da capela.

Não deve ter havido ninguém que não tivesse ido ver o lobo do castanheiro dos Tocos e veio muita gente das aldeias vizinhas; tratava-se de um soberbo lobo macho, com sinais de fractura antiga numa das patas traseiras e mais comprido do que um homem. Foi atingido na cabeça e caiu redondo, no chão.

Meses depois pouco se falaria daqueles dois exemplares dignos do pincel de um artista: o lobo, que, tanto quanto sabemos, foi o último a ser morto por aqueles lados e um dos mais dignos exemplares da dinastia dos castanheiros, que provavelmente teria ultrapassado o milénio, por aquelas bandas do País.

Lamentamos o desfecho da história, nada edificante, que simboliza a extinção de duas espécies raras, na região onde temos as memórias da nossa infância e juventude: o lobo (lupus canis signatus, Lineu e o castanheiro (castanea sativa, Miller).

quarta-feira, 23 de julho de 2008

O Zézito

Não havia na Terra, nem nas redondezas mais próximas, quem melhor pusesse o laço a um melro – por mais amarelo que tivesse o bico – ou melhor disfarçasse uma azeitona, na boiz, colocada no meio das estevas e para enganar o finório tordo.

Cosido com os comoros das levadas, camuflado no meio de uma touça de moitas, ou disfarçado por uma carqueja, o Zézito observava, atentamente, como os pássaros se moviam, de onde vinham, para onde iam, quanto tempo demoravam no voo.

Sabia que um melro que saísse da sombra das parreiras da sua horta, tomaria, invariavelmente, cinco destinos, consoante a altura e inclinação do levantar do voo, a posição do sol, a direcção dos ventos, a presença de pessoas nas hortas vizinhas, ou de outras aves na zona. A própria hora do dia interferia no voo dos pássaros.

Sem que disso se apercebesse, passava horas a recolher e trabalhar toda esta informação. Distraía-se, muitas vezes, das leituras dos “clássicos” e, não raras vezes, se esquecia do livro que levara, de casa, para ler. Mas o gozo destes laços, que a Natureza lhe estendia, era superior a tudo o que as mais belas literaturas lhe poderiam ensinar.

Os cantares das aves têm timbres diferentes, exprimem estados de calma, chamam os filhos, avisam as outras aves do bando da presença de predadores, mas também reconhecem um amigo e convidam um dedicado admirador a ouvir uns trinados harmoniosos, ou uns acordes em nada inferiores aos das maiores obras musicais.

Na altura dos ninhos, sabia de todos os do seu raio de acção – da Ribeira, por alturas da ponte, à Renda, junto da azenha, passando pelo Lavadouro, Brejos e Vale das Lousas, até à Portela da Casinha –.

Mesmo os das carriças – os mais difíceis de localizar –, tão bem camuflados nas paredes da ribeira, ou no meio do musgo das árvores, não lhe escapavam. O passarito, que é o mais pequeno daqueles sítios – pesará entre os 8 e os 10 gramas –, solta, invariavelmente, um trinado prolongado e inconfundível, sempre que sai da porta da sua casa. Depois, é só procurar com paciência a abertura do ninho, ou aguardar o regresso do inquilino.

Muita confusão lhe causava o cuco que parecendo brincar, ia anunciando “cucu”...”cucu”... cantando, ora à direita, ora à esquerda; umas vezes no alto da Lomba, outras nos Brejinhos. Havia que esperar, verificar se não seriam dois pássaros diferentes, um de cada lado da ribeira.

Este “passarão”, que além de grande, assim poderá ser classificado por ser pouco escrupuloso, deita fora dos ninhos os ovos que encontra, colocando em seu lugar os seus próprios ovos, transformando, assim, as bem intencionadas avezinhas em amas dos filhos alheios.

Na época dos taralhões, entre os meados de Agosto e de Outubro, o Zézito saía, ao romper do dia, com o molho das costelas e espalhava-as, de árvore em árvore, nos sítios mais frequentadas pela passarada que, daí a pouco, despertaria, com o sol.

As maresias daqueles finais de Verão e começos de Outono, davam mais brilho aos primeiros raios do sol e faziam luzir as asas das formigas - agúdias – que atraíam os passaritos para as costelas, mal sabendo que seria o último bichito que já nem chegariam a comer.

Estariam, isso sim, na argola de arame, pendurados pelos biquitos, como troféus de caça, exibidos, com todo o orgulho, aos primeiros agricultores que começavam a chegar às hortas, para fazer as regas, ou apanhar as hortaliças.

Na sementeira do milho, pelos fins de Abril, depois de ceifado o ferrejo e levado para fora da horta, onde ia secar, para poder ser guardado no palheiro, fazia-se a lavoura da terra.

Os torrões e as leivas, de barriga para cima, para arejar e curar as terras, permitiam a uma infinidade de pequenos vermes, formigas, ratitos e doninhas, apanharem um pouco de sol o que para muitos era o fim, acabando na moela das arvéolas, dos melros, das megengras e das toutinegras, além de muitos outros passaritos, atraídos, das redondezas, pelo cheiro de terra húmida, ou pelos avisos de outros habitantes. Dava gosto ver aquela passarada a fazer pela vida.

Depois de dessorada a terra, gradava-se e fazia-se a sementeira do milho, por duas ou três pessoas; uma coveando, outra semeando e uma terceira tapando as covas e alisando a terra.

Pela tarde, depois do jantar – a refeição do meio-dia tem este nome, nesta região – e respeitada a sesta, tudo ficava calmo. A terra semeada, tomava o aspecto de seca e um ou outro bago de milho, escapado na sementeira, brilhava ao sol e era espiado pelas rolas que, após a sua detecção, baixavam para o repasto.

Lá estava, novamente o Zézito, estudando-lhes os movimentos, vendo os trejeitos do voo, a direcção do arrulhar e a inclinação do sol.

Depois espalhava pela horta uma meia dúzia de costelas grandes, onde aplicara um bago de milho furado, bem polido para brilhar ao sol.

Sentava-se, a alguma distância, debaixo da copa duma árvore, que, além da sombra, lhe servia de camuflagem, e esperava... agora sim, lendo mais algumas páginas do livro que levava, ou, olhando, indefinidamente, em redor, ouvindo o marulhar das águas na ribeira, ou saboreando simplesmente a calma e serenidade dos campos, agora que a azáfama dos trabalhos abrandara.

Pelo pôr-do-sol chegava a casa com uma ou duas rolas penduradas na argola de arame, onde pendurava os troféus de caça.

domingo, 20 de julho de 2008

O barrete do Ti Manel

O ti’Manel Pisco morava lá para o cimo do Casal, junto ao ribeirito que descia da Barroca das Couves para a Horta de Casa. Na cachoeirita, junto à casa, numa curva do caminho, chegou a lavar-se a roupa e até foi local de lavagem das tripas, por altura de matanças do porco.

A ti’Maria da Barroca, com quem casara, muitos anos antes, sempre fora mulher de pouca saúde e fracas cores. Cuidava dos dois filhos e guardava duas ou três cabritas e uma ou duas ovelhas, donde provinha o leite que, nas falas do povo, dava os melhores queijos da terra.

A casa de habitação, retirada da rua, num cotovelo do ribeirito, tinha anexos os cómodos do costume: barracão, cabana do carro, palheiro do macho, cerca do gado, pocilga do porco, forno do pão e casa da despensa, onde além das batatas, cebolas, alhos e ramos de louro, se guardava a talha do azeite, os cântaros das azeitonas e alguma fruta e outros mimos da casa, sem esquecer o pote do mel.

Uma meia dúzia de galinhas, um capãozito e uma ninhada de pintainhos, tinham o privilégio de vaguear pelo quintal, arranjando assim a maior parte do sustento, completado com algumas hortaliças, restos do caldo, ou uns bagos de milho, em alturas de mais carências na hortita. Os ovos rendiam cinco ou seis mil réis, por semana, dinheirito esse que constituía o fundo de maneio da ti’Maria, usado para comprar uma chitas, popelinas, linhas e botões, a um dos tendeiros que semanalmente visitam a aldeia e alguma mercearia, na taberna, onde se vendia de tudo, desde petróleo a açúcar e a cevada moída, que aquecia o estômago, de manhã.

Além do macho, de provecta idade, manso como as pedras da calçada, fazia parte da família um cachorrito, que respondia pelo nome de “farrusco”e raramente abandonava o dono, especialmente quando este estava nas redondezas da casa.

Ao fundo da cabana do carro, situava-se o poço, com mais ou menos metro e meio de diâmetro e não mais de quinze palmos de fundura. Em volta do poço, um muro redondo, com uns sessenta centímetros de altura e, sobre ele, a armação de ferro, onde trabalhava a roldana em que deslizava a corda que prendia o balde da água.

A metro e meio, dois metros, do poço, estava a laranjeira do ti’Manel. Nas falas e sentimentos do dono, não havia melhores laranjas, no mundo, que as da sua laranjeira. Mas vale a pena reproduzir a frase do ti’Manel que definia o seu sentimento quanto à sua arvorezita: ”Em mais de meio mundo, que já vi, nunca encontrei nada que me satisfizesse mais que a sesta à sombra da minha laranjeira”.

Com a forma de sepultura antropomórfica, escavou o ti’Manel, uma pequena cova, com um palmo de fundo, exactamente no sentido da sombra da laranjeira, nas horas de maior calmaria. Encheu a cova com palha de centeio. Na parte virada a norte, o ti’Manel teve o cuidado de deixar um ressalto, para servir de cabeceira, onde a palha, cortada, foi colocada de travesso e coberta com um panal da azeitona.

Não há quadro do local, porque nunca nenhum pintor presenciou aquele idílio: o ti’Manel, deitado à sombra da sua laranjeira e o “farrusco”, dando conta de tudo o que se passasse para além do muro que bordejava o quintal e a casa.

Um dia, numa das habituais passagens pela aldeia, o Manel da Rosa – caldeireiro, “bimbo, lá de cima”, sempre acompanhado pela mulher, que além de angariar trabalho para o companheiro, pedia esmola, às portas – vendo o homem a dormir a sesta, com o cãozito ao lado, impávido e sereno, ficou a imaginar coisas... e aproximou-se do muro, junto do portalito tapado com galhos e ramos de oliveira.

Mas – pernas para que te quero – salta de lá o “farrusco”, direito ao caldeireiro, que não ganhou para o susto e não parou antes da taberna.

O ti’Manel era um homem grande, de peitaça saliente e braços, anormalmente, compridos. Barbeava-se uma vez por semana – aos domingos, antes da missa – e usava calças de cós alto, apertadas com um cordel e, normalmente, tão subidas que deixavam a descoberto as botas de cabedal, com solas de pneu, a que o Manel da Rosa “deitara uns gatos”, na última passagem pela aldeia. Na cabeça o mesmo barrete de sempre, preto, enterrado até um pouco acima das sobrancelhas, descaído sobre o pescoço e com a borla quase desfeita.

Quando andara por Lisboa, onde dera o corpo ao manifesto, na estiva de navios e a servir nas obras; nas ceifas do Alentejo; nas podas dos laranjais de Setúbal e nos navios, que o levaram aos cantos do Mundo, só tirava o barrete para dormir.

As alturas especiais em que o ti’Manel foi visto sem barrete, contam-se pelos dedos da mão e representam outros tantos acontecimentos marcantes: o dia do casamento, no casamento dos filhos, uma ou outra vez em que foi padrinho de casamento, ou de baptizado, de algum familiar.

Nestas ocasiões, usou o chapéu que ainda estava pendurado num prego espetado na parede, por cima da enxerga em que passava as noites.

Quando se deitava, tirava o barrete, dobrava-o, cuidadosamente, e estendia-o, a servir de almofada, quer se deitasse na sua cama, ou na esteira que preparara, debaixo da laranjeira, para dormir a sesta.

Um tal procedimento despertou a curiosidade de muita gente, mas nunca ninguém ousou perguntar-lhe algo, ou tocar-lhe no barrete, que sempre o acompanhava: debaixo da cabeça, quando dormia, sob os joelhos, quando ajoelhava, na missa, ou dobrado, em cima do ombro, quando tinha necessidade de descobrir-se frente a alguém. Afora essas ocasiões, o barrete pendia da cabeça do seu dono.

O mistério manteve-se por muitos anos: a curiosidade e cobiça de uns, a ganância de outros - familiares mais próximos que imaginavam ali um bom pecúlio - , talvez as intenções que atribuímos ao Manel da Rosa – lançar a mão ao barrete do velho – não fossem tão raras…

Até que um dia, o ti’Manel não saiu. No dia seguinte, os vizinhos chamaram e não ouviram resposta. Avisaram um dos filhos, com casa no outro lado da aldeia.

Juntou-se o povo, como é normal nestas ocasiões, e entrou-se em casa, onde deram com o ti’Manel, deitado na cama, com o barrete debaixo da cabeça e a mais tranquila e serena paz, no rosto. Estava morto.

Os preceitos do costume, o enterro, as partilhas dos parcos tarecos e toda a gente ansiava pela revelação do mistério: o que estava, realmente, no barrete?

O filho mais velho, que herdara do pai alguma serenidade, revelou, finalmente, que no barrete estava um rosário de Fátima, com as contas muito gastas, pelo uso, e um pequeno papel, muito bem dobrado, com a indicação de um buraco da casa, onde seria encontrada uma caixa de lata, de uma qualquer marca de bolachas.

O conteúdo da caixa, constituído por algumas notas nacionais e estrangeiras – algumas das quais já sem curso legal – foi dividido entre os irmãos; o rosário foi pendurado junto à imagem de Santo António, na capela do Senhor dos Aflitos, na aldeia, onde se manteve por muitos anos, até que desapareceu....

quinta-feira, 17 de julho de 2008

O “herodes”

O “Tó Ruço” herdou, da mãe, um talho, no mercado da vila. Nunca foi grande artista, a cortar carnes, mas nisso era bem servido pelo “Manel Garrano”, que trabalhava, para a casa, havia mais de trinta anos. O talho da Mariana, o melhor da vila, primava pela qualidade do que fornecia.

Mestre na renova do pinhal, o “Tó” afiava o ferro como ninguém e conhecia todas as estremas. “Tirava” duas “voltas” e não constava que alguma vez tivesse renovado um pinheiro a mais, ou a menos. A vida de resineiro, completava a de marchante, que exercia, para abastecer o talho.

Levantava-se ao romper da manhã e saía, para o campo, ainda a acabar de comer a bucha. Voltava a casa para almoçar e, depois do jantar, à volta das duas horas solares, dormia a sesta, todos os dias. “Ferrava o galho”, de hora e meia a duas horas, como é costume dizer-se.

O resto do dia era gasto de quinta em quinta, ou de aldeia em aldeia, visitando os currais, na procura do que o “Manel Garrano” pedia, para o consumo normal do talho, ou para uma ou outra encomenda especial; a importância de bodas, baptizados e festas, media-se pelo número de reses que deixavam sem samarra.

Nestas actividades era acompanhado pelo fiel “serra da estrela”, que, de seu nome “herodes” e grande como um burro, trazia ao pescoço uma coleira de ferro, com picos afiados, do tamanho dos dedos do dono e dentes de lobos que matara, em anteriores refregas.

Naquele dia dos finais de Maio, chegou recado do “Manel Garrano”, pedindo quatro reses – dois borregos e duas cabritas – para uma festa de uns clientes muito especiais. E, como pedidos do “Garrano” eram ordens e interesses a respeitar, o “Tó Ruço” preparou-se para sair: foi ao curral, assobiou ao “herodes” e saíu de casa, com a garrucha de junco na mão e a jaqueta pendurada no ombro. Dois ou três passos adiante, já o “herodes” seguia, na sua frente.

Na ribeira, levantou os olhos e reparou nas nuvens negras que se levantavam para os lados do pôr-do-sol; aqueles castelos tanto podiam provocar alguma trabuzana, como não dar em coisa nenhuma, mas tinha muito respeito pelas trovoadas de Maio. As poldras saíam da água menos de um palmo e a força da corrente era considerável; apercebeu-se que a ribeira estava a engrossar; encolheu os ombros e fez-se à vida...

Antes do sol-posto estava na “Quintazinha”, onde o “Tonho” tinha o redil de um pequeno rebanho. Assobiou, assinalando a sua presença e, como que num eco, veio a resposta do pastor, que se acercava do povoado.

Na passagem do gado, lançou a mão a duas borregas e outras tantas cabritas e separou as quatro cabeças para um cortelho, ali ao lado. É disto que preciso hoje, amigo; quantas notas hei-de dar-lhe pelas quatro reses?

Os dedos do marchante agarravam as reses pelo lombo, um pouco à frente dos quadris, junto da alcatra e tanto bastava para verificar a gordura, o peso e até a qualidade do que apalpavam.

O pastor levou a mão à boina, coçou a cabeça e disse, resolutamente: você não é parvo nenhum; acertou no melhor que tenho em casa e não quero crer que haja igual na freguesia. Menos de quarenta notas ficam onde estão e olhe que uma dessas já foi rogada, ontem, à noite, e ouviu bom dinheiro. Isso é gado desenxovalhado.

O “Tó Ruço” levantou os olhos e encarou o “Tonho”, bem de frente; oh! homem, então você pensa que ando a roubar, ou quê? Já pensou a quanto tinha de vender cada quilo para arranjar dinheiro, só para lhe pagar? Vá, vamos lá fazer negócio!

O “Tonho”, com o olhar vagamente fixo, disse: trinta e seis notas e não se fala mais nisso; sempre tenho negociado com a vossa casa e o que de cá têm levado, nunca vos deixou ficar mal.

Trinta e duas notas e é negócio arrumado – atirou o marchante – e, metendo a mão no bolso da jaqueta, tirou um maço de notas e começou a contá-las. Logo o pastor atalhou e disse que nem pensasse; era ano de bons pastos e, daí a duas ou três semanas, valeriam muito mais, etc., etc.

O “Ruço” meteu as notas no bolso e disse: então você tem palavra de rei, ou quê? Racha-se ao meio e pronto!... O “Tonho” tossiu, torceu-se, voltou a coçar a cabeça e acabou por estender a mão, aceitar as trinta e quatro notas de cem mil réis e guardá-las, no bolso das calças, resmungando que já fora enganado.

Apertaram as mãos; o “Tó Ruço” atou as reses umas às outras e reparou que estava escuro como breu. Tocou o gado e a descida para o “Monte” não correu nada mal. No povoado, apenas um ou outro cão ladrou ao “herodes” que nem respondeu.

Entraram na rodeira que desce dali até à ribeira, por um piso de socalcos e profundos trilhos dos rodados das carroças. A meio da encosta, tudo corria com normalidade até que, após um relâmpago que alumiou tudo em volta e um trovão forte e prolongado, o gado começou a enlear-se, o cão impacientou-se e fixou o olhar, no caminho, uns metros mais adiante.

O marchante lembrava, mais tarde, que, também ele, ficara sem pinga de sangue, sem saber porquê, até que viu dois lobos, especados, no caminho, de olhos muito luzidios e ar de poucos amigos. Segurou a corda das reses, amarrou-a a umas moitas e gritou para o “herodes”: a eles, amigo!...

Nessa altura já cão e lobos se tinham envolvido em ataques e defesas. Juntou-se à “festa”, de garrucha no ar, aos gritos, e distribuiu bordoadas, tentando amedrontar as feras. O “herodes” agia com mestrança e cada dentada que dava fazia moça nos inimigos, até que, sentindo entre os dentes o pescoço de um dos lobos, não mais abriu a boca. Sacudiu, com quanta força pôde, enquanto o dono afugentava a outra fera. Em poucos minutos, estava ganha mais uma batalha do “herodes” – um morto e um fugitivo.

O “Tó” falando para o “amigo”, de tu para tu, como ele dizia, passou-lhe a mão pela cabeça, felicitando-o pela vitória. No dia seguinte eram bem visíveis as marcas que os bicos da coleira do “herodes” tinham feito nas fauces da fera morta – um corpulento lobo macho, provavelmente parceiro da fêmea, que fugira –.

Com o lobo às costas e as reses à corda, desceu até à ribeira. Pelas poldras, quase cobertas de água, passou um animal de cada vez. O “herodes” não precisou de ajuda; foi o primeiro a fazer-se à corrente e esperou pelo dono, no outro lado, lambendo as feridas, sentado sobre as patas traseiras, ao lado do lobo morto.

Molhado até aos ossos, o homem, olhou para trás e viu as poldras já todas cobertas de água. Amarrou, de novo, as reses, pegou na fera morta e uns minutos depois entrava no pátio de casa.

Gritou à Amélia e filhos para que trouxessem um candeeiro e, ali, diante de todos, estupefactos, apontou para o lobo que jazia no chão. Queria que fossem os primeiros a contemplar mais um troféu do “herodes” que se batera como um autêntico herói e, entretanto, já se tinha dirigido à casota, onde roera qualquer coisa e se ajeitara depois das voltas, do costume.

Chamado, saiu, ainda que contrafeito. Todos ficaram admirados e trataram, o melhor que puderam, as feridas deixadas pelos lobos.

Espalhou-se a notícia e, no dia seguinte, a fera foi exposta, pendurada no velho plátano do largo da igreja. Tinha bem o tamanho de um homem e faltavam-lhe dois dentes, tirados para a coleira do “herodes”.

Anos mais tarde, o “herodes”, já coxo duma pata traseira, cujo presunto servira de repasto a um outro lobo, morreu atropelado. Deixou no seu activo a morte de nove lobos, para além dos estragos que não chegaram a ser conhecidos, resultado de escaramuças de que trazia sinais para casa.

Ainda hoje, nas aldeias da região “herodes” é nome de respeito, para pastores e até, segundo crença destes, para os próprios lobos.

domingo, 13 de julho de 2008

O penedo da Lameira

Ainda o sol, vindo dos lados do Casalinho, depois de contornar o cabeço do Pião, não banhava o povoado, já o “príncipe” espreitava os primeiros raios, especado no alto da portela da Casinha, ali no cimo dos Brejos.

Um pouco mais atrás, o tio Luís Mestre – moleiro desde que se conhecia e dono de uma das azenhas do ribeiro da Louriceira – seguia o “fadista”, que, ajoujado sob a carga de taleigos de farinha, marcava o passo, lento e cadenciado.

A aldeia, estendida no sopé de um pequeno relevo – de que herdou o nome, impróprio, de Serra – tinha acordado, há muito. Eram sinais disso, o cantar dos galos, o ladrar dos cães e o barulho de um ou outro chocalho das cabeças de gado que já se dirigiam às hortas.

O moleiro, que visitava a aldeia todas as semanas, tinha os seus fregueses. Até o “fadista” guiava o dono, parando junto às portas onde ia trocar o taleigo de farinha pelo saco de cereal, que levava para o moinho, trazendo a farinha, depois de moída e maquiada, na semana seguinte.

Naquele ritual, enquanto parava às portas, o “fadista” ia lançando a boca às verduras, ou outras coisas comestíveis que apanhasse à mão, o que muitas vezes lhe valia uma arrochada no lombo, não tanto como castigo, pelo abuso, mas como sinal de arranque para a próxima paragem.

O “príncipe”, que todo o caminho se entretivera a correr, a parar de repente, a ir ao dono, a fugir para fora do caminho, perseguindo as lagartixas que passavam ao seu alcance, sentava-se, sobre as patas traseiras, enquanto atendiam os fregueses.

Não se incomodava com a comida, pois, normalmente, não tinha fome. Os ratos, ratazanas e similares, que pululavam lá nas azenhas, chegavam e sobravam para lhe encher a barriga. Daí que os seus maiores inimigos fossem os gatos, que pintavam no terreno, à procura de “caça”.

O ti Luís Mestre, sexagenário baixote e atarracado, vestia, invariavelmente, calças de saragoça, camisa de flanela e um blusão, tipo jaqueta, justo na cintura. Calçava botas de cabedal, ensebadas e cobria-se com uma boina escura e esbranquiçada pela farinha. Até as sobrancelhas denunciavam a profissão do moleiro, que, raramente se separava da bengala com que acariciava o lombo do “fadista” e lhe servia de amparo e companhia, nas caminhadas.

A maquia dos taleigos chegava para lhe dar uma vidinha sem sobressaltos e para criar os quatro filhos que estavam em casa, com a mãe – a tia Luísa, uma santa.
A personalidade e o feitio do moleiro tinham-se adaptado ao seu ritmo de vida, na azenha – dormia, com o barulho das mós, acordava, com o silêncio das paragens.

Uma manhã, de fins de inverno, ao deitar o nariz fora do casebre, onde funcionava a azenha e onde tinha o catre em que, tal como seus antepassados, estendia os ossos, enquanto o engenho marchava, viu tudo branco – havia, nos campos, uma coisa que nunca vira –.

Imediatamente lhe veio à ideia que em tempos ouvira falar na neve, que cobre as terras altas e é formada por água gelada, que cai assim do céu. Saiu do tugúrio, assobiou ao “príncipe”, que parecia louco, a correr de um lado para o outro e a meter o focinho na neve branca e fofinha. Deu uns passos em redor do engenho. A água do ribeirito continuava a correr e tudo marchava, em perfeita ordem e harmonia.

Nesse dia fazia a volta da Serra, pois era terça-feira e não era dia de Entrudo – única excepção para essa viagem semanal –.

Ao chegar quase ao cimo do vale, junto ao penedo da Lameira, olhou para o cabeço do Loureiro, nos altos da encosta em frente e viu tudo branco. Que delícia, o brilho do sol reflectido pela neve!... Parou uns momentos e fez alto ao “fadista”, voltando-se para ele, como que a convidá-lo a admirar aquela paisagem, nunca antes vista e, provavelmente, poucas vezes repetida, por aquelas terras.

Inopinadamente, um sobressalto agitou o burrito, que soprou, violentamente, pelas narinas; Ali perto, o cãozito, andava num frenesim nada habitual – nunca se lhe vira tal agitação –.

Homem e animais estavam no centro de qualquer coisa; participavam em qualquer cena desconhecida a que a neve dava moldura especial e o espírito calmo e pachorrento do ti Luís Mestre não percebia. Sentia que o burrito estava hirto e o cãozito todo eriçado, fixados na fresta do penedo.

Olhou, instintivamente, na mesma direcção, depois de, em milésimos de segundo, lembrar as moiras encantadas, as luzes referidas pelos mais alucinados com a zurrapa que bebiam na tasca do Sebastião e até imaginou a bandeira que, segundo a tradição, ali foi colocada, pelas tropas de Napoleão, marcando o centro de Portugal.

De repente, acordou, desceu à terra, agitou os pés, sobre a neve, e, junto dos seus companheiros, olhou... esfregou os olhos, para se certificar que não sonhava, e viu uma loba, maior que os maiores cães que já vira, saindo da fenda do penedo, abandonando o covil, acompanhada por três filhotes. Dirigiu-se para o mato, sem denotar grande nervosismo, e desapareceu.

Estava feita luz na cabeça do ti Luís Mestre; não mais lhe falassem de barulhos de moiras encantadas, ou de luzes na escuridão, em bailados e reuniões de bruxas...

No penedo havia sim um covil de lobos, cujos ruídos eram normais e que ao saírem, durante a noite, projectam a luz dos olhos para quem os vê. Foi sem receio que continuou a passar no local, pois ao ser interpelado, o ti Luís limitava-se a galhofar:

Tenho medo do “bicho homem”, que me pode fazer mal; dos outros, dos verdadeiros bichos, nunca tive medo, porque tenho a certeza que sempre me tratarão como eu os trato: nunca me farão mal.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

O “Manel Jerico”

O Manel era “jerico” desde que nascera, uns cinquenta anos antes; herdou a alcunha do pai, que a fora buscar ao avô. Todavia, nada mais impróprio que tal nome – era fino como o retrós e ainda estava para nascer quem lhe fizesse o ninho atrás da orelha –. Gabava-se de que ninguém lhe pusera, ainda, cuspinho na testa.

Passava os dias carrejando: umas batatas, no tempo delas; uns molho de ferrejo ou feno, para sustento do vivo no Inverno; as bilhas do leite que, diariamente, era ordenhado às vacas que viviam no lameiro, todo o ano.

A carroça da casa, de rodado baixo, com a ferragem já gasta pelo uso, era puxada pelo burrito cinzento, atrelado entre os dois varais. O “Bandarra” estava ao serviço da família desde sempre e, esse sim, “jerico” de espécie, não era menos finório que o dono. Raramente era lembrado das suas obrigações, por uma ou outra arrochada no lombo. Comia do que havia e era seco de carnes.

O “Manel Jerico” frequentara a escola, em pequeno, fazendo o exame da quarta classe, aos 11 anos; ao mesmo tempo guardava o rebanho comunitário, nos dias da família, ajudava os pais nas lides de amanho das leiras, lá para os lados da ribeira e minava-se por fisgar um passarito, ou descobrir os ninhos, no tempo deles.

Nas sortes ficou livre; era fraquito de estatura. Nesse mesmo ano juntou-se, pela primeira vez, aos homens que levavam “cargas” para Espanha.
Teve sorte, pois a carga era leve e, nem a nossa Guarda, nem os Carabineiros, deram trabalho nessa vez. Mas não terá gostado da experiência, pois não voltou a responder às chamadas. Talvez a cicatriz do “Aranha”, o olho cego do “Faroleiro”e o braço cambado do “Índio”, fossem troféus que o amedrontassem.

Os cinco mil réis de cada carga, eram correspondentes a duas jornas, mas não compensavam os perigos, no entender do “Jerico”. Talvez por isso tenha guardado a moeda, durante muitos e bons anos.

Num São João em que passaram na terra uns caldeireiros, O Manel pegou-se, de olho, com uma moçoila do clã e teve o azar de ser “caçado” a sair de trás de uns barrocos, com ela. Por mais juras que fizesse, que não lhe havia tocado, foi em frente da ponta de uma naifa que se comprometeu a casar.

Apareceram os filhos, uns atrás dos outros, do primeiro ao oitavo. Todos varões e de boa compleição física, ajudavam nos trabalhos da lavoura. Na escola, não havia quem se lhes adiantasse; todos fizeram o exame e dois deles frequentaram o Seminário, vindo a ser Missionários, um no Brasil e outro nas Áfricas.
A Amélia, além de mãe cuidadosa, trabalhava, na terra, como qualquer homem: manejava o enxadão, ou a rabiça do arado, com grande perícia e poder físico.

O Manel andou por “franças e araganças” e fez de tudo um pouco: da construção de estradas à arte de trolha, de mineiro a garimpeiro de volfrâmio, de almocreve a feirante e de pastor a ganhão. Apanhou o “pó” das minas, uma pedra comeu-lhe as cabeças de dois dedos, uma paulada, de um marchante de gado, deixou-lhe uma clavícula torta. Claudicava da perna esquerda, talvez por causa do reumático, mas o pobre fígado era a maior vítima das fomes e bebedeiras, que foram o seu único alimento durante muitos e muitos dias. Nunca nada lhe luziu nas mãos. Se não fosse a Amélia, pobres crianças… comentava-se pela aldeia.

Um dia, no mercado da vila, já bem atravessado, meteu a mão ao bolso e acariciou a moeda de cinco mil réis, que ganhara muitos anos antes, no contrabando e de que
nunca se separara. Dirigiu-se a um cauteleiro e perguntou-lhe que jogo lhe vendia
por cinco mil réis. Meio bilhete… que pode dar um prémio de duzentos e cinquenta contos de réis. Uma grande fortuna, amiguinho, rematou o cauteleiro.

Feito o negócio, o Manel guardou as cautelas no bolsito da jaqueta e, durante muitas noites, teve dificuldade em adormecer; não lhe saía da cabeça a ideia do que faria com aquele dinheiro todo. Daria um bom prémio à Senhora das Dores, uma casa, uma junta de vacas e uma carroça a cada filho já casado e aos que se casassem; fatiotas novas para ele e para a Amélia e… contas e mais contas, sonhos e mais sonhos… nunca mais chegava o sono.

Dois ou três meses depois, já quase esquecido dos seus sonhos, noutro mercado, ouviu apregoar o cauteleiro. Meteu, instintivamente a mão no bolsito e encontrou, amarfanhadas, as cautelas que comprara meses antes. Chegou-se ao vendedor de sonhos e mostrou, sem grande fé – saiba-se lá porquê – as cautelas.

O cauteleiro, atónito, leu e releu a lista e olhando o Manel disse, simplesmente: uma grande fortuna, homem! Você tem aqui uma grande fortuna: 250 contos de réis, da taluda. Agora…terá de ir a um Banco e….

O “Manel Jerico” já não ouviu as últimas palavras; tinha caído fulminado aos pés do cauteleiro, de nada valendo os esforços do filho que o acompanhava e de outros populares que entretanto se juntaram.

Numa pequena pedra, no muro do cemitério da aldeia, ainda se pode ler, o que alguém um dia escreveu: Aqui jaz o “Manel Jerico” que sempre foi pobre, mas morreu rico.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

O Zé Cristo

O clã dos “Cristos” metia respeito: o Manel, na casa dos vinte e oito anos, o João, com menos dois, o Chico, recém vindo da tropa, cujo tempo passara, na maior parte, no forte da Graça, em Elvas, e o ganapo – o Zé – a atingir os dezoito anos, dentro de dias. Todos iam acima do metro e oitenta.

Não havia festa, ou descante, onde os quatro irmãos não aparecessem, com ar provocador e, por vezes, munidos dos respectivos paus – que punham sobre as omoplatas, formando uma cruz, com os braços –. Daí derivava, ao que se pensa, a alcunha que ostentavam, vinda já dos seus antepassados e que não ligava ao apelido da família: Alexandre.

Os paus constituíam um verdadeiro adereço; eram vulgaríssimos, na época. Tratava-se de uma vergôntea de marmeleiro, bem seleccionada e seca longe do sol, com uns dois côvados, ou uma vara – o côvado media 66 cm e a vara 11 decímetros –. Conhecemos apenas duas utilidades a estes paus, que qualquer homem que se prezasse exibia nas feiras e mercados: para ajudar a conduzir o gado, ou para se apoiar. Uma outra utilidade – como medida padrão – era pouco aplicada.

As zaragatas eram, de facto, o terreno mais vulgar para o uso do pau. Nas aglomerações e festanças, dos meios rurais, disputava-se o jogo do pau, mas o verdadeiro uso do mesmo era no costado de um qualquer adversário, quando o ensejo tal proporcionasse. Todavia este e outros costumes foram-se extinguindo, devido à proliferação da GNR e firmeza de Regedores e Cabos de Ordens.

Os magotes de rapazes, que andavam de aldeia em aldeia, nos bailes, descantes e festas, deixavam os paus escondidos de forma que pudessem dispor deles, em poucos minutos, se necessário fosse. Nos torneios de jogo de pau disputavam-se prémios e honrarias, de que qualquer homem se prezava.

Ouvia-se contar, aos mais velhos, que no descante do casamento da mãe do Ti Chico “Manajeiro”, houve uma zaragata, provocada pelos rapazes de Alcaravela, em que foram partidas mais de vinte cabeças e imobilizados mais de uma dúzia de braços. Talvez, por isso, “o Manajeiro”, era o maior amigo da ordem e do respeito.

Quase todos os “Cristos” tinham já passado pelas companhas do Ti Chico; esse ano ia o Zé Cristo, como aprendiz do terceiro ano. Passaria à condição de camarada no final da safra e, no ano seguinte, teria já todas as condições de “oficial”, nomeadamente soldada por inteiro e direito a prémios. Os aprendizes recebiam, por norma, duas décimas, no primeiro ano; 3 décimas, no segundo e três quartas, no terceiro ano. No quarto ano, ou não eram mais chamados para as companhas, ou eram-no, na qualidade de camaradas.

O Zé Cristo era teso, caladão e ligeiramente vesgo – chamavam-lhe o “zanaga”-. Era o mais alto da companha e em largura de ombros, não havia quem se lhe comparasse. Falava pouco, mas, em contrapartida, comia por três ou quatro. No trabalho parecia uma máquina; os moços, que seguiam no seu encalço, viam-se e desejavam-se para meter as gavelas nos molhos e fazer os rolheiros, atrás dele.

Um dia, um dos moços, o Benvindo, chamou-lhe “caga-molhos”, pois não conseguia manter limpa a área de corte do Zé Cristo. Tanto bastou para que o Zé pousasse a foice e, pegando pelo atilho das calças elevasse o garoto bem alto, no cimo do longo braço e parecendo mostrar um troféu a toda a companha. Depois, pô-lo, cuidadosamente, no chão, tornou a pegar na foice e começaram a amontoar--se, atrás dele as gavelas ceifadas.

Sorrateiramente, como era seu hábito, o Ti Chico, fez sinal ao Manel Carolo, em cujo grupo estava o Zé Cristo, e afastou-se da frente de corte, para que o Lopes e o Duque, camaradas que iam ao lado do rapaz, normalizassem a situação.

Uns minutos depois, fitou o Zé Cristo nos olhos – que nessa altura ficaram mais vesgos e baixos – e apenas disse: é a primeira e a última vez que, nesta companha, alguém falta ao respeito; se voltas a fazer alguma das tuas, racho-te!... Aqui, somos todos homens, e no que ao respeito diz respeito, até os moços o têm de ter.

Este caso foi edificante. Muito ao modo como o Ti Chico costumava actuar; batia pouco, mas, quando o fazia, era inexorável e altamente eficaz. No resto dos dias da companha não houve mais qualquer altercação. E voltaram todos mais amigos que quando partiram.

No fim da companha, o manajeiro reuniu os chefes de grupo e disse o que pensava fazer com as soldadas. Tudo esteve de acordo. O Ti Chico dividiu a totalidade do dinheiro em 40 partes e atribuiu uma a cada um dos trinta oficiais. As dez que ficaram – as dos aprendizes –, eram para os cortes, cujas quantias iriam fazer os prémios para compensar o mérito de cada um. Nessa altura tomou a palavra e chamou o Zé Cristo, entregando-lhe uma maquia igual à dos camaradas, dizendo que mostrou corpo, disciplina e trabalho como os melhores, e que a justiça deve sempre ser praticada. Ninguém se opôs.

Foi a primeira vez, nas memórias das companhas, que um aprendiz foi promovido em pleno campo de trabalho. Pela justiça da decisão, o Ti Chico “Manajeiro”, como sempre ficou conhecido e será lembrado, ainda hoje, é apontado como exemplo de que ressalta a capacidade de liderança e o espírito de justiça.

Quanto ao Zé Cristo, aceitou as palavras sábias do “mestre” e não consta que alguma vez mais se tenha envolvido em desavenças.

domingo, 6 de julho de 2008

Ti Chico "Manajeiro" - II

O “monte” da Herdade do Castanho, situava-se numa pequena elevação dos terrenos a sul da Ribeira dos Tourões, que pertenciam ao Senhor Lavrador, numa extensão de mais de catorze léguas, segundo as palavras do capataz.

O Ti Chico “Manajeiro” conhecia a chapada que, partindo da ribeira, subia até ao “monte”. Uma extensão de mil metros, por uns oitocentos de largura, cobertos de “pão”, que havia de ser calcorreada, centímetro a centímetro, pelos homens da companha que acabava de chegar.

Havia uma pequena “folha” de cevada e o resto era um extenso trigal, bem apresentado e que, graças a Deus, não tinha acamado. Podiam contar-se, pelos dedos, duma das mãos, os sobreiros e azinheiras, ou outras árvores, que pudessem dar sombra, ou ajudar a diminuir a secura daqueles campos, cobertos de “pão”.

Embora a inclinação não fosse grande, a chapada era ligeiramente inclinada e avesseira pelo que tinha que ser muito bem definido o sentido do corte; a descer, o trabalho é mais cansativo e menos rendoso e de través, o equilíbrio dificulta o bom andamento. Se possível, também a direcção do sol deve ficar pela esquerda dos ceifeiros – pormenores importantes, que os manajeiros aprenderam, com a vida -.

A ribeira, sem água corrente, apenas tem um ou outro pego que servirá para tomar banho nalguns fins de dia, o que, aliás, foi motivo de grandes recomendações por parte do manajeiro. Há que não ir sozinho, nunca depois de comer e evitar sítios escondidos ou isolados. Todavia, naquele ano, não seria grande o perigo, dada a escassez de água, mesmo nos pegos. Eram agradáveis, sim, os tufos de juncos e os salgueiros e freixos que rodeavam o talvegue. Alguns traziam, ramos e junco para o acampamento, ou para espalhar pela malhada, a servir de colchão.

No chavascal que ladeava a chapada, pelo sul, havia todo um emaranhado de silvas, tojos e arbustos – sinais evidentes de que por baixo andam águas –. Ali se acoitavam diversos tipos de pássaros, zelando pelos ninhos mais serôdios, ou pelos filhotes mais atrasados e também lá tomavam refúgio os predadores, a caça e outros pequenos animais que fazem das searas a sua despensa – ratos, coelhos, musaranhos, ouriços, répteis, etc. –.

Depois da primeira noite na malhada, ou sob a copa de um sobreiro, ao romper da madrugada, começaram as movimentações: idas e vindas para a latrina, para os tanques onde se lavava a cara e mais o que se quisesse e para a malhada, onde se arrumavam os parcos pertences de cada um, por forma a que, antes que a estrela boieira se afundasse no horizonte, todos tivessem engolido as sopas de café e estivessem junto do manajeiro, para seguirem até ao corte.
Um pintor teria feito ali um magnífico quadro: o manajeiro, à frente, seguido dos ganhões e dos moços; uns e outros com os chapéus de palha de abas largas, na cabeça, camisas abertas e foices em punho e, na mão esquerda, as dedeiras de cana. Os rostos de alguns, ainda leitosos, iam, em poucos dias, tisnar-se e tomar um bronze natural.

O Ti Chico olhou em redor e, como incentivo curto, mas muito a propósito, disse apenas: Vamos ao trabalho, com a graça de Deus!...Força, rapazes!... E benzeu-se.

Os mais velhos, conhecedores, de ginjeira, daquelas andanças, seguiam calados; os mais novatos e os debutantes, satisfaziam a sua curiosidade, não sabendo bem o que os esperava e extasiando-se com tanto pão junto – cenários novos e que jamais tinham imaginado –.

Já no fundo da chapada, junto à ribeira, o Ti Chico “Manajeiro” chamou os das pontas de corte – o Chico Coxo e o Zé Taliscas – e mandou-os tomar posições, distantes um do outro, cento e cinquenta passos – seria essa a largura de corte –. Entre eles distribuíram-se os restantes camaradas e moços, mantendo-se os grupos que tinham sido formados no dia anterior.
Cada chefe de grupo sabia, perfeitamente, o que tinha que fazer, para que a frente de corte se mantivesse sempre em linha e os trabalhos seguissem a bom ritmo. Era aqui que entravam as ajudas e compensações e é nesta tarefa que o trabalho do manajeiro é fundamental; incentivando os mais atrapalhados e coordenando os mais ousados, de modo que o grupo se mova sempre como uma mola, projectando-se de trás para diante.

O Ti Chico, direito no meio da linha, mandou o Manel Carolo levantar a mão esquerda para que todos vissem as “dentadas da foice” nas dedeiras. A seguir, levantou os olhos ao céu e benzeu-se, exclamando: avante camaradas!... Todos se curvaram e não tardou que começassem a ver-se, no restolho, os molhos de trigo. Logo a seguir os moços foram ensinados, pelo manajeiro, a formar os rolheiros, pondo os molhos na forma mais correcta: o “pão” é posto com a troça para fora, formando um círculo, com as espigas para o meio. Os rolheiros tem a largura aproximada de metro e meio e os molhos de cada camada são colocados, alternadamente, para que fiquem travados e o mais justos possível, por forma a evitar entrada de roedores e más influências de ventos, chuvas e orvalhadas. Um rolheiro deve ter a altura máxima do peito de um homem.

Quando os rebanhos vierem ao rabisco, ou as varas de porcos se espalharem no restolho, o zagal tem de estar seguro que não farão mossa, nos rolheiros de trigo.

Pelas dez e meia da manhã – segundo a mediana do Ti Chico – chega o manteeiro e os moços aguadeiros, para distribuírem um quarto de pão de trigo e um bom naco de queijo, ou um pedaço de toucinho, segundo o gosto e preferência de cada um, e darem os corchos de água que cada camarada quiser. Aproveita-se para enrolar um paivante e, uma meia hora depois do “alto”, comida a bucha e saciada a sede, é dada a voz de “ao trabalho, camaradas!...” e todos pegam na foice e retomam a labuta.

Com o sol a pino – meio-dia solar, que os ganhões mais experimentados calculam pelo tamanho da própria sombra – é altura de jantar. O manajeiro dá “alto ao trabalho” e todos param, colocando a foice no chão e tirando as dedeiras. Juntam-se ao chefe e seguem-no até à malhada, onde os espera o gaspacho, o cozido de grão, o ensopado de borrego, o guisado, os feijões cozidos ou guisados com algum tempero, conforme os dias da semana. Ao lado do caldeiro da comida está um cesto de pão, cozido ainda há pouco e suficiente para que todos comam, à vontade.

Oito grupos de homens, cercando outros tantos barranhões, e cada um com a sua própria “ferramenta”, constituída por colher, garfo e navalha, saciam a fome e sede – uma das galas do Senhor Lavrador da Herdade do Castanho é que todos comam até querer –. Todavia, uma das maiores bênçãos do jantar é a sombra da malhada e as duas horas de sesta que se lhe seguem. Lá mais para diante é, também, a altura desejada nas companhas: a entrega do correio.

Finda a sesta, ouve-se o grito de “ao trabalho” e todos se juntam para, atrás do manajeiro, se dirigirem ao corte e retomarem a tarefa que os espera. O ritual repete-se todos os dias, durante a ceifa.

Quando a sombra começa a alongar-se – por volta das cinco horas – é dado o “alto para a merenda” e repete-se, sem grandes cambiantes, o que se passou ao almoço.


Daí até ao fim do dia de trabalho, vai o sol cair no horizonte e uma meia hora depois de desaparecido o astro-rei é dado o “alto aos trabalhos do dia”.

Regressados à malhada, espera-se pela ceia, que será em tudo semelhante ao jantar, e pelas nove horas da noite, os chefes de grupo certificam-se de que tudo está em ordem e faz-se silêncio e escuridão, para que todos possam repousar e recompor as forças para o dia seguinte, que começará ao romper da madrugada.

O Ti Chico, reza as suas orações e recolhe-se ao reservado, que lhe foi atribuído.