quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Noite e Dia


 
Quando releio as "histórias de gente simples" fico com a sensação que, por trás delas, ficaram outras histórias por escrever, que correm o risco de acabar por ficar inéditas.

E, num primeiro impulso, acho incompleto o meu trabalho.

Nessa frustração - a palavra é forte de mais - as histórias continuam a apelar à imaginação, a espicaçar a memória e a dar largas às ideias emergentes do turbilhão de negaças, que rodopia no imaginário e na vida das personagens.

Eu sou o primeiro, senhora professora; sou "Feliz" e até nem discordo do nome que me puseram; e não percebo porque se há-de começar com o "Varisto".

Ele deve ser dos últimos, antes dos Xicos e dos Zés, que, aparecem Franciscos e Josés!

Não és o primeiro, não senhor; antes de ti será o Evaristo. É este o nome do teu colega, ainda que muito poucas pessoas da aldeia o reconheçam pelo seu verdadeiro nome.

Assim como o teu; devia ser Félix, mas acabaste por ser registado como Feliz, por engano do senhor Mário, do posto de Registo Civil.

Esta troca de palavras recorda-me uma cena, na sala da escola da aldeia, na minha quarta classe.

A senhora professora chamou para o quadro preto o Evaristo.

Ergue-se, de rompante, o Feliz, que, altivo, se arrogava o direito de precedência dada a ordem alfabética dos nomes próprios.

Não sei porque me terei lembrado disto...

No fim são as recordações, meio apatetadas, que amainam a vertigem do carrossel das dendrites e dão folga aos neurónios, baixando o ritmo das "histórias de gente simples”, que contemplam e dão alma a essas personagens que, como os transístores, ou os chips, de um qualquer aparelho electrónico, desconhecem o seu real valor, mas acabam por ser fundamentais, em sofisticados mecanismos.

As cenas da vida calma e pacata, da gente simples, serão como as cores dum quadro; só criam depois de perderem a sua identidade e interagirem entre si.

É então que a imaginação faz o resto: sublima e dá corpo ao criativo e artístico.

Também nas histórias, cada um pode, depois, ver, sentir e fazer o que quiser. Os padrões, a sensibilidade e os desejos são os de cada um, tal como o direito de gostar ou detestar, aplaudir ou reprovar, conhecer ou ignorar.

Ah! Se os poetas tivessem o privilégio e a oportunidade para explicar todos os enganos, exageros e erros que alguém (críticos, declamadores e simples intérpretes) acabou conectando com as suas palavras!

Ou se os heróis assistissem ao filme dos seus próprios feitos, alcançassem a dimensão e percebessem as análises hiperbólicas dos actos realizados para satisfação das motivações básicas, visando, tão só, a preservação da espécie!

É que há a imaginação que acaba por condicionar todos os tipos de análise; há os entrechos, mesmo nos filmes, que é difícil refazer - não é de ânimo leve que se cenografa o peso da escuridão, a bruma do denso nevoeiro, o barulho da cacimba, o silvar do vento!

Ou, antes de tudo se recolher, o crepitar da lareira. O bruxulear da luz baça da candeia e o pio da coruja na torre da capela.

A força do silêncio é entrecortada pelos mais pequenos ruídos, e mais além, no virtual e intemporal, pelo ladrar dos cães e o miar dos gatos. 

É difícil e complicado recorrer aos efeitos especiais, baseados e construídos a partir das palavras.

As gentes das aldeias não tinham direito a luzes, nem sons, para além dos que a Natureza dispõe; mas também não tinham medo do silêncio; adoravam-no e respeitavam-no.

E esperavam, avidamente, o alvor de cada novo dia, de cada nova manifestação de vida renascida. 

Rejubilavam quando viam que a ordem do mundo não se alterara com a paragem da vida, que as fontes e os ribeiros continuavam a correr, os pássaros voltavam a voar, com os mesmos trinados, e as sementes voltavam a dar vida, às terras.

Numa palavra, depois de pequenas pausas, a vida continuava, porque a ordem e o comando de tudo o que existia, rejuvenescia a cada ano, como sempre acontecera.

Naqueles meados do séc. passado, a noite e o dia nas aldeias eram duas realidades acima de tudo e de todos.

Ainda não tinha chegado a energia eléctrica e por isso, não havia rádio nem televisão.

Não chegavam lá os jornais e além dos livros da escola - quando estava a funcionar algum posto escolar - mais não era preciso.

Nas tabernas, onde se faziam os avios de mercearias e se bebiam uns copos de vinho, jogava-se às cartas, ao burro - feito de um caixote de sabão (ver ilustração), para onde se atiravam os vinténs -, e à malha. 

As conversas restringiam-se a pequenos negócios, à contratação de homens e mulheres para os trabalhos e às tradicionais histórias, lendas e aventuras que povoavam o imaginário, até se gastarem pelo uso, ou serem substituídas por outras.

Os factos e ocorrências do quotidiano não abundavam.

Havia, pois, campo aberto para a proliferação do imaginário, do hiperbólico, do distante e do misterioso.

Em casa, depois de terminados os trabalhos, a família, em volta da mesa, ou à roda da lareira, comia, do barranhão de barro vidrado, as couves com batatas e feijões, o pão de milho, um bocado de sardinha ou um punhado de azeitonas curtidas.

Aos domingos, depois da missa, lá se chegava ao grão-de-bico, com toucinho da salgadeira e algum enchido, normalmente guardado para dias de festa.

O arroz e a massa completavam a dieta frugal desta gente que, embora a pobreza dessa alimentação, aplicava bastantes recursos físicos nos duros trabalhos agrícolas.

Durante os longos serões de inverno, enquanto no caldeirão fervia a vianda dos porcos, ia-se atiçando a fogueira, fiando uma roca de linho, dando uns pontos nas roupas e contando histórias, ou rezando.

Rezava-se antes de começar a comer, depois de comer, pelo serão adiante... É que rezando acabava por se poupar a vista, passar o tempo e alcançar mais algumas indulgências.

Efectivamente a ligação à igreja, das gentes daquelas terras, naqueles tempos, era muito grande. Seria impensável que alguém faltasse à missa, aos domingos, sem uma razão muito forte.

Não vamos tecer muitas considerações sobre a forma como eram doseados os castigos, nos actos do culto, nem referir-nos ao peso e responsabilidade que os padres colocavam sobre as pessoas. 

Todos nos recordamos das "práticas" infindas em que se espalhava o terror, sobre os pecadores e os não cumpridores escrupulosos dos preceitos da igreja.

Os quadros pintados pelos pregadores que no meio do sermão já tinham uma grande parte da assembleia, em lágrimas. E continuavam a proclamar os princípios e as leis da igreja, usando uma linguagem que a maior parte nem compreendia, mas sentia e aceitava.

Pela dramatização do padre, adivinhava-se mais algum castigo de Deus e, como tal, havia que aceitar e obedecer.

Paralelamente, cultivava-se o sentimento dos prémios e dos castigos, como se fosse possível algo mais penalizador do que a vida daquelas gentes.

Mas, os condenados enchiam as crenças do povo: as almas penadas, que não alcançavam a luz e erravam nas longas noites, nestas aldeias onde não havia exposição do Senhor, nem sacrário nas igrejas.

Era o diabo, os espíritos malignos menores e almas do outro mundo que enchiam a mente daquela sociedade rural, condicionada, controlada e dominada pela igreja.

Porém, chegou, um dia a energia eléctrica, abriu-se a estrada, aumentou a emigração externa e sobretudo a interna. Vieram os rádios, abriu a escola, mandaram-se várias crianças para os colégios e seminários. Apareceram as primeiras televisões... 

Lembro-me do primeiro rádio, que funcionava com uma bateria de automóvel e só se ligava para ouvir as cerimónias da Senhora de Fátima, no 13 de Maio.

Era lá em casa do Ti'Soldador, que se juntavam, nesse dia, cantando e rezando, a maior parte das mulheres da terra e alguns homens.

Os tempos mudaram muito. Não só nas aldeias, mas em toda a parte, houve maiores mudanças nas décadas de sessenta, setenta e oitenta, que nos últimos cinco séculos de História.

Ficaram alguns usos e costumes, hábitos e preceitos, que recordamos com respeito e consideramos de vital importância para que possamos hoje perceber que tempos foram aqueles. 

Comparadas com as adversidades daquela longa noite, as piores condições que hoje ainda pesam sobre os extractos mais desfavorecidos da nossa sociedade são, se não paraísos, pelo menos cenários humanos e luxos sociais.

As grandes directivas sociais que presidiam e condicionavam a vida das gentes daqueles tempos: fome, ignorância e medo, que se manifestavam pela subserviência, resignação, respeito e um ror de outros atributos, roçando o indigno e desumano, foram erradicados e deram lugar a um novo sentimento, até aí desconhecido, ou, completamente fora do alcance – LIBERDADE. 

Qualquer homem é, hoje, livre e responsável. Pelo menos à luz dos princípios básicos da Lei suprema do nosso País. Ainda que a realidade...

Porém a memória é curta: e muitos dos que podem certificar a análise que deixamos, quer porque viveram nesses tempos, quer porque isso lhes foi contado, já esqueceram o que lhes interessou e arvoram-se em arautos das conquistas que se fizeram, enquanto se refugiaram no primeiro buraco que encontraram para não se comprometerem. 

Recorrem a amigos, compadres e correligionários, para usarem e abusarem da coisa pública, para se furtarem aos deveres sociais, ou para se locupletarem com benesses e bens da colectividade.

A comunicação social, pouco rigorosa, dependente e asfixiada, navegando à vista e sempre com os olhos postos no mestre - que dá dinheiro, privilégios e audiências -, esqueceu já os tempos em que os editoriais dos Directores valiam o preço dos jornais. 

Hoje há, em cada publicação, dezenas, ou centenas de jornalistas; porém os cidadãos conhecem dois ou três dos mais mediáticos. E, havendo cada vez mais letrados, porque se lêem cada vez menos jornais?

Se os nossos pais e avós cá viessem, corariam de vergonha ao ouvir proclamar nas televisões, ou verem nos jornais, o nome de altos dignitários das públicas instituições, acusados de incompetência, desleixo e favorecimento, de que resultaram prejuízos de muitos recursos da sociedade, sem que nada aconteça a esses figurões.

Ficariam, sobretudo, muito admirados por não verem e ouvirem referir, louvar e homenagear, alguém que trabalhou honradamente e contribuiu para o bem de todos. 

Interrogar-se-iam se já não há respeito e consideração pelos velhos, pelos doentes, pelos que a Pátria usou, quando precisou, e logo esqueceu. 

Não entenderiam a pouca apetência pela política, nem compreenderiam, ainda, muitas outras coisas… 

Estranhariam que a trilogia aprendida na escola – Deus, Pátria, Família – seja, nos tempos que correm, enunciada com falta de respeito, embora, lamentavelmente, com alguma verdade – Adeus, Pátria e Família -. 
Mas isso será o objecto das nossas "histórias de gente simples”, aliás escritas por mero prazer e, despretensiosamente. 

Sempre, porém, dentro dos preceitos da trilogia aprendida na escola – entenda-se Posto Escolar - lá da aldeia onde fizemos a quarta classe, por sinal muito bem feita.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011



Boas Festas

Natal Feliz e Bom Ano

Para os seguidores, leitores, críticos, comentadores, apoiantes e amigos em geral

Do amigo

Prof. José Valente

domingo, 18 de dezembro de 2011

Os sons do mar




O dr. Jorge Ventinhas escolheu para tema do seu doutoramento em Veterinária, "os sons das ondas do mar". 

Talvez, vá-se lá saber ao certo, por ter visto o mar, pela primeira vez, aos onze anos e pelas muitas vezes que, antes e depois disso, passou horas a contemplar as messes ondulantes, lá no Monte onde nasceu, nos fundos do Alentejo.

Certo, certo, é que recordava, perfeitamente, a imagem daquele chão todo lisinho e azul-escuro, para lá do grande campo coberto de areia e um ror de pessoas que, talvez por falta de água em casa, ali se lavavam, entrando e saindo na água, que, por causa disso, até fazia ondas ali ao princípio.

Como nas searas lá dos Montes, andavam no ar uns passarões, maiores que os que comiam as espigas do trigo e até talvez quase como as cegonhas.

Deviam ter muito calor, pois, de vez em quando, mergulhavam na água azul e voltavam para o céu, onde se passeavam. Ah! E eram barulhentos. Mas não sabiam cantar! 

Lá mais ao fundo, onde já não alcançava bem, viu uns homens a puxar umas casinhas para dentro da água e depois saírem por lá adiante, até se sumirem da vista.

Disse-lhe a prima Adelaide que eram os pescadores que saíam para a pesca. Assim, como assim, ficou a saber o mesmo; mas o bichinho da curiosidade ficou lá e daí a uns dias quando o primo Abílio. que fazia dois dele e estava quase a ir às sortes, estava deitado no areal, chamou-o e foram lá a baixo ver os tais barcos e os pescadores. Gostou. 

Os tempos passaram, o senhor Lavrador, seu padrinho, tinha prometido ao seu pai, abegão lá do Monte: "se o moço tiver jeito e cabeça, hei-de mandá-lo educar, até onde for capaz de ir".

O moço era eu, e a cabeça, felizmente, foi capaz de ir até ao cimo; aos vinte e quatro anos, chegou um dia à estação de Santa Eulália, onde era esperado pelo pai, o senhor dr. Jorge do Carmo Ventinhas, com um canudo na bagagem, onde se conferia que tinha terminado o curso de Medicina Veterinária. 

Abraçaram-se e, depois de quebrada a curiosidade sobre as coisas e as gentes do Monte, seguiram, quase uma hora, em silêncio, ou com meias palavras de permeio, até à Herdade.

A carroça rolava por entre as searas ondulantes e a passarada levantava-se com o barulho dos guizos da mula e o estalar do chicote para apressar a marcha. 

De vez em quando, o pai olhava pelo canto do olho, em silêncio, traído pelos pensamentos que, de certeza, lhe enchiam a cabeça, a pontos de nem as palavras lhe saírem direitas.

No portão da entrada da Herdade, já às vistas do Monte, sentado à sombra da velha azinheira, estava o Alfredo, com os bolsos das calças cheios de bolotas que ia comendo, enquanto esperava.

Quando deu pela aproximação do carro, correu caminho adiante para ser o primeiro a ver o seu grande amigo que, como já lhe tinham dito, devia agora tratar por senhor doutor. 

Ao ver o homem a correr a besta parou e, de um salto, já o Alfredo estava ao lado do grande amigo, abraçado a ele e segredando-lhe ao ouvido: então agora tenho de tratar-te por senhor doutor, ou posso continuar a chamar-te Jorge? Jorginho, se quiseres! E afastando-se do amigo, para vê-lo melhor, foi todo o resto do caminho a procurar as diferenças que faziam um doutor. 

Quando já não estavam longe do Monte, pulou da carroça e desatou numa louca correria para ser o primeiro a anunciar a chegada do menino Jorge, seu melhor amigo e para quem era preciso dobrar a língua, a partir de então: senhor doutor Jorge! E gritou, como nunca se lhe tinha ouvido:

O senhor doutor chegou. Venham todos vê-lo! Viva o meu amigo Jorge! E, nessa altura, todos repararam que aquela figura apatetada, meio tola e apoucada, chorava de comoção, que depois justificou por nunca ter pensado vir a ter um amigo doutor... que já o tinha autorizado a continuar a chamar Jorginho. E até já lhe tinha prometido que um dia o havia de levar à cidade, para ver o sítio onde se aprende para doutor, casas muito grandes e o mar. Foram estas as coisas que lhe pedira e que o amigo já lhe tinha prometido. 

O Alfredo sempre foi aluado, meio tonto, tolo e telhudo. Numa palavra: apoucado, que um bom Alentejano chamará de poucachinho. Tudo o que se lhe dissesse não o incomodava, pois não era pessoa para se zangar com ninguém, nem consigo próprio.

Também nunca ninguém se zangava com ele; a todos acabava por conquistar, com o seu espírito prestável, a sua delicadeza e bonomia.

Não fazia mal a uma mosca e exibia, regularmente, um sorriso simples e ameno. Não era dali do Monte do Vale da Lameira, nem ninguém sabia, ao certo, onde teria nascido.

Fora deixado debaixo da azinheira grande, à entrada da Herdade, embrulhado numa trouxita, ao que se crê por uns ciganos que ali estiveram acampados e desde o dia em que deixaram a encomendinha nunca mais voltaram aqueles sítios, nem ninguém mais deu por eles, nas redondezas e feiras mais chegadas. 

Tinha uns meses a menos que o Jorge e fora recolhido pelo abegão, que ao entrar na Herdade ouviu chorar e apeando-se deu com o menino embrulhado nuns panitos brancos.

Levou-o para casa, onde a mulher ainda amamentava o filho e, com o consentimento do senhor Lavrador, foi criado lá pelo Monte.

Registado como filho de pais incógnitos, nascido em parte incerta e encontrado no Monte do Vale da Lameira, aos dezanove dias do mês de Maio de mil novecentos e quarenta e três, foi-lhe dado o nome de Alfredo Azinheira. Nas notas da Cédula constava: Sexo masculino, sem defeitos físicos e de raça cigana.

Na gíria era conhecido pelo "cigano papa-açorda", não tanto pelas qualidades já descritas, mas por um velho hábito de andar sempre de boca aberta. Aliás era por este nome que respondia, normalmente, às chamadas.

Depois de recolhido foi alimentado pela mãe do Jorge que aproveitou os últimos tempos de mama do filho e repartiu o leite com o achado do marido.

Depois, uma pastora que tinha perdido um anjinho, deu o peito ao Alfredito que, por essas razões, dizia que era muito mais rico que a maior parte dos amigos: tive três mães: a que me pariu e, não tendo que me dar, me deixou para que alguém me apanhasse; a mãe Deolinda, mulher do pai António, que me deu leite e criou, enquanto esteve entre os vivos, e a pastora Amélia que me acabou de criar, quando se acabou o leite da mãe Deolinda. E agora até tenho, como maior amigo, um senhor doutor.

Podem chamar-me de papa-açorda e podem continuar certos de que ainda está para nascer quem goste mais da gente deste Monte que o Alfredo Azinheira. Mas, enquanto por cá estiver o meu amigo doutor, não quero compromissos com ninguém; estou cá para o que ele precisar. Para ele e para o pai António!

O doutor Jorge Ventinhas concorreu ao lugar de Veterinário da Câmara de Elvas e foi lá colocado. Abriu um consultório de veterinária em Santa Eulália e arranjou uma vasta clientela entre as herdades da região.

Alguns anos depois, já passados os trinta, casou com a filha do senhor Lavrador, e única herdeira da Herdade da Azinheira e passou a ter além do trabalho na Câmara e no consultório, a gestão de uma grande casa agrícola, cuja cabeça era a Herdade e o Monte do Vale da Lameira. 

Tinha casa nos arredores de Lisboa e no Algarve, junto da praia do Alvor. Nunca deixou uma vida cheia de trabalho, no Alentejo, embora a mulher e os três filhos, residissem, normalmente em Lisboa, onde os filhos estudavam. 

O Pai António, abegão até aos últimos dias de vida, tinha já partido, o sogro, senhor Lavrador, vivia numa moradia na linha de Cascais, o doutor, sempre que podia ia dormir ao Monte.

Porém, estivesse onde estivesse, sempre teria, por perto, o seu motorista privativo, como que secretário particular e homem de confiança, senhor Alfredo Azinheira, que desde aquele dia em que recebeu o senhor doutor, lá no caminho de Santa Eulália e foi a correr ao Monte anunciar a sua chegada, poucos dias terá o sol alumiado a terra sem que o Alfredo não estivesse por perto do amigo, quase irmão e, mais que isso, seu grande mestre, pela vida fora.

O Alfredo nunca casou; era impossível tirar algum minuto ao seu patrão para assuntos pessoais. Aprendeu a arte de boas maneiras, teve lições não só de cultura geral, mas de administração de negócios, elementos de contabilidade, ajuda nas actividades profissionais do senhor doutor veterinário, compras e vendas de maquinarias, sementes e bens da terra, produzidos nas propriedades da casa agrícola. 

Aprendeu a cavalgar, conhecia os rudimentos das principais maleitas dos gados, as febres mais vulgares, mas, principalmente, banhava-se, barbeava-se e vestia roupa lavada todos os dias. Tanto entrava numa tasca como num casino, acompanhando o patrão. Tratava de assuntos com gerentes bancários, comprava e vendia, dispondo a seu belo prazer. Porém, num ponto, nunca cedeu:

Caro amigo, doutor, irmão, ou lá o que quiser: a mim ninguém me quis, salvo o Pai António e a Mãe Deolinda. Eu também nunca quis mais família e um ponto fica assente, entre nós: não quero ter nada de meu. Quero ter tudo o que tenho, quando precisar e mais nada.

Não há ordenados; nunca, até aos vinte e cinco anos, quando andaste a estudar os tive, nem precisei deles. Depois disso muito menos. Espero morrer antes de ti, mas se isso não acontecer deixa as tuas ordens de forma que, quando eu não te tiver por perto, tenha o que precise e quando me for embora nada tenha que interesse seja a quem for.

Ainda viveram bastantes anos. O doutor Jorge, na sua actividade de Veterinário, deslocou-se várias vezes ao estrangeiro e ganhou muito dinheiro.

Nas casas agrícolas das suas herdades, graças aos bons negócios e administração correcta do feitor - chamemos-lhe assim - Alfredo, também se gerava bom pecúlio. 

As avultadas heranças do sogro e do pai foram boas ajudas. Tudo somado era o suficiente para que, sem qualquer exagero, fosse classificado como um rico património, mais que suficiente para a família viver faustosamente.

Porém o doutor Jorge nunca tomava grandes decisões sem consultar o conselheiro e também a esposa se habituara a passar primeiro pelo aval do senhor Alfredo quando precisava de alguma coisa para si, ou para os filhos.

O senhor doutor foi primeiro e quando o Alfredo foi perguntar à senhora quais eram as ordens, ouviu em resposta: o senhor continuará junto de nós, na minha casa e de meus filhos, com as mesmas funções que tinha em vida do senhor doutor.

Isto se não quiser ir para sua casa, no Monte do Vale da Lameira, conforme explica meu marido nas suas últimas vontades. 

E estendeu uma carta ditada pelo marido, no notário, com as suas determinações:

O Alfredo Azinheira ficará ao serviço de minha mulher e nossos filhos, como sempre esteve. 

Residirá onde achar melhor. 

Tem posse e usufruto, até à morte, do Monte do Vale da Lameira e ser-lhe-ão dados todos os meios de que necessite. 

Um abraço, irmão. Espero agradecer-te quando voltarmos a encontrar-nos.



quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Caminhos da vida


 (À guisa de introdução da II série de Histórias de gente simples)

As relações de trabalho nos anos 60 e 70 – antes do 25 de Abril -, passavam por profundas transformações, a que não eram alheias as estruturas sindicais da Farmacêutica, dos Bancários e dos Motoristas.

Destes movimentos acabara por emergir a Intersindical e sucederam-se as convenções colectivas de trabalho a um ritmo alucinante.

Era a alvorada de novos tempos.

Um professor, regressado da guerra na Guiné – são e salvo, na aparência -, acabado de casar e pai de uma menina e em vias de segundo filho, desempenhava as funções numa escola do centro de Lisboa, onde era Director, Secretário de Zona e leccionava o Ciclo Complementar – 5ª e 6ª classes.

A esposa, igualmente professora, tinha sido colocada, por nomeação ministerial, no recém inaugurado bairro social dos Olivais-Sul, onde o casal habitava uma casa atribuída num concurso de habitações, em regime de propriedade resolúvel, pela Caixa de Previdência do Ministério da Educação Nacional.

Uns tempos depois de estabelecido este enquadramento familiar e social, chegou uma carta da Legião Portuguesa a convidar o tenente-miliciano, na disponibilidade, para instrutor – aos domingos, de manhã, com uma remuneração mensal de 600 -.

Nem sequer respondeu, não porque fosse a Legião, não porque não desse muito jeito a remuneração que, ao tempo não era nada desprezível; apenas porque na sua cabeça estava implantada uma forte aversão por tudo que fossem fardas e militares. Que, aliás, se manteve pela vida fora e era de tal forma marcante que sempre se lhe afigurou como uma das marcas mais evidentes que a guerra lhe deixou.

Convém, no entanto, esclarecer, que durante os quase dois anos de guerra, por diversas circunstâncias - nos impedimentos do capitão - teve funções que exorbitavam as de um simples alferes-miliciano, assumindo o comando interino da Companhia a que pertencia.

Também, em operações, com ausência de um capitão, assumiu o comando de vários outros alferes e respectivos pelotões.

Passados quarenta anos, arrisquemos uma análise daqueles tempos, não para falar de sindromas pós traumáticos, não para lamentar a falta de apoio dado pelos sucessivos governos aos ex-combatentes que foram obrigados a ir fazer a guerra. Apenas, e tão só, para enquadrar a disposição daqueles que foram mandados fazer a guerra e tiveram, pelo menos, um privilégio: voltar.

Sempre à luz da determinação, espalhada dentro e fora da Companhia, esperando que tal disposição chegasse, mesmo, ao conhecimento do inimigo:

Era provável, seguro mesmo, que não ganharíamos a guerra… o que estava longe de significar que pensávamos que iríamos perdê-la. As populações sofreriam muito, os militares fariam enormes sacrifícios e, ao fim e ao cabo, acabaria por nascer mais um país, onde tudo iria faltar, pois eram fracos os recursos daquela parte de África e das terras com dimensão de pouco mais da terça parte de Portugal Continental, albergando mais de uma dúzia de etnias, desde politeístas a crentes em Deus, de monogâmicos a possuidores de tantas mulheres quantas o dinheiro e as vacas lhe permitissem comprar.

Nós nada tínhamos que nos meter com usos e costumes, tudo faríamos para ter as populações ao nosso lado e uma vez que não solicitáramos a nossa presença nessa guerra, não a desejáramos, nem acreditáramos nela, seguiríamos um único objectivo:

Cumpriríamos e faríamos cumprir as ordens do poder militar instituído, salvaguardando, até às últimas consequências, a integridade física dos que comandávamos e das populações que connosco colaborariam e seríamos inflexíveis no uso da força, usando todos os meios ao nosso alcance, sempre que fossemos provocados, atacados, ou molestados no desempenho das missões que nos fossem atribuídas. Seria, pois, nossa prioridade a defesa da saúde e integridade física de militares e civis que tínhamos sob o nosso comando.


E, felizmente, tudo acabou, no dia em que, já no princípio da madrugada, terminou o espólio dos militares que regressaram sob o comando do Alferes-miliciano, ao quartel da Amadora, tendo o capitão ficado em Bissau, a resolver os últimos assuntos relativos à Companhia regressada no Uige.

Em vez de pernoitarem numa caserna reservada para o efeito, foi dada a possibilidade de fazer a quitação durante a noite e nem um só dos mais de cem militares quis ficar mais uma noite na tropa.

Na companhia de familiares, amigos ou, simplesmente, em grupos, cada um foi ao seu destino, devidamente documentado e quite com as autoridades militares.

Quanto mais depressa terminasse o pesadelo, melhor. Muitas vidas esperavam e muitas esperanças geradas longe de tudo e de todos os que deixaram dois anos atrás, aguardavam aqueles homens que se iriam espalhar pelo País e seguir os seus caminhos.

E, relembrando as palavras do alferes-miliciano: quem resistiu a tudo o que nós passámos, está preparado para atacar a vida e será isso que vamos fazer!... O meu conselho é que comecemos todos por esquecer!…

Passados os vinte e poucos dias, de licença de desmobilização, o professor apresentou-se ao serviço, retomando o seu lugar na escola que deixara, para se apresentar, em Mafra, no curso de oficiais milicianos, quase três anos antes.

Havia que seguir a lista das prioridades, entre os diversos caminhos, maduramente seleccionados, nas longas noites de vigília, sob o peso do silêncio das matas africanas e o aperto das incertezas e vicissitudes da guerra, que se avolumavam na razão inversa dos dias que faltavam para deixar tudo aquilo para trás das costas.

Todos sabíamos que aquela guerra não era nossa e o primeiro objectivo de todos era ver-lhe o fim. Era preciso saber voltar para as terras e as vidas que não viviam havia perto de dois anos, período em que muitos não saíram das matas, nunca viram uma pessoa branca, a não ser militar, e nem sempre receberam as melhores notícias da família e amigos. Era preciso ter força para encarar e seguir o melhor caminho.

De certeza que todos aqueles cérebros estavam cheios de planos de vida a curto prazo, mas localizados bem longe do que todos desejavam esquecer como pesadelo. Cada dia aumentava a ansiedade e havia que gerir, da melhor forma possível, o comportamento de grupo.

Três ou quatro ideias submergiam todas as outras: definir qual a vida que iria substituir a de mestre-escola; definir o rumo e investimento a fazer em estudos; arranjar casa e condições para casar e poder ter filhos; preparar a escola para a esposa; aumentar os proventos enquanto tivesse que continuar a leccionar.

Continuar no ensino, ainda que liceal, não foi opção; havia outras maneiras de ganhar a vida e criar rendimentos mais compatíveis com a vida de família que ambicionava e que pensava ao seu alcance.

Investir cinco ou mais anos num curso de acesso a advocacia, economia ou gestão, passando pelo então emergente curso de Psicologia Aplicada, foi também posto de lado; queria trabalhar, progredir numa carreira e ganhar dinheiro.

Bancário, oficial da GNR ou GF, nunca. Pelo menos com as marcas da guerra ainda tão verdes. Havia uma coisa que era bem remunerada e com possibilidades de progressão: Propaganda Médica e Vendedor Especializado, nas farmácias.

A aquisição de casa começou a ser tratada quando, pouco depois de retomar o lugar na Escola nº10, na Costa do Castelo, em Lisboa, soube de um concurso para 100 fogos, em casas de renda resolúvel, que a Caixa de Previdência do Ministério da Educação Nacional tinha aberto, no Bairro de Olivais-Sul.

Foi imediatamente fazer a inscrição e as probabilidades analisadas até à exaustão. A condição de solteiro era, efectivamente, um dos maiores óbices; porém se a situação se alterasse antes de resolvido o concurso, as novas condições seriam tomadas em conta. Havia, pois, em primeiro lugar que casar.

A colocação, em Lisboa, de uma professora com a idade e tempo de serviço da noiva, era difícil, mesmo atendendo à lei de cônjuges. Todavia, pelo menos o lugar de professora agregada, ao abrigo da referida lei, era viável. Mais uma razão para casar.

E foi assim que, três meses depois do regresso da guerra, se realizou o casamento, na igreja do Rochoso, de um casal de professores, que à falta de casa própria foi residir numa parte de casa, em Moscavide.

No início do novo ano lectivo, arrendaram casa em Benfica e a esposa colocada numa escola de Campolide. Esperava já, nessa altura, uma filha.

Esse facto levou à primeira diligência junto da Caixa de Previdência no sentido de alterar a composição do agregado familiar do concorrente que passou ao estado de casado e esperando o nascimento de um filho.

No início do segundo ano de actividade a esposa foi colocada por nomeação ministerial numa escola do Bairro dos Olivais e foi atribuída a casa de renda resolúvel no mesmo bairro.

Pouco tempo depois, a candidatura e selecção para um curso de preparação para Delegado de Propaganda Médica, foram passadas com êxito e, diariamente, durante vários meses, das seis às onze horas da noite, foi frequentado e concluído, com óptima classificação, o referido curso.

O promotor era o Grémio dos Industriais de Especialidades Farmacêuticas e a lista de candidatos foi distribuída a todos os Laboratórios que trabalhavam em Portugal, desde que fossem sócios do Grémio.

Um parêntese para lamentar que não se tenham repetido iniciativas desta natureza: curso de elevado grau de exigência e alto nível técnico, inteiramente custeado por uma associação industrial e que apenas visava oferecer aos associados candidatos escolhidos, preparados e capazes de desempenhar uma profissão útil aos sócios da corporação. Pelo menos, não temos conhecimento de outros casos semelhantes.

Nos meses seguintes surgiram os convites de cinco Laboratórios, três estrangeiros e dois nacionais. Opção por um dos estrangeiros, com ingresso e preparação, em Setembro de 71.

Na altura as filhas tinham dois anos e meio e um ano e meio. A esposa continuava na sua actividade de professora, no Bairro dos Olivais e o novo delegado de propaganda médica foi trabalhar nas Av. Novas, em Lisboa e no Algarve, onde se deslocava, por períodos de duas semanas, seis vezes por ano.

Porém, entre ordenado e comissões sobre vendas, no primeiro ano, os rendimentos foram mais de seis vezes os do último ano de professor.

Vários cursos de aperfeiçoamento profissional, iniciação às teorias de marketing, que na altura dava os primeiros passos, e ao terceiro ano é convidado para organizar e chefiar uma nova equipa comercial, visando a promoção e venda dos produtos comerciais do Laboratório e de outros a lançar no mercado nacional. É que o novo contrato colectivo de trabalho impedia os delegados de propaganda médica de fazerem vendas directas nas farmácias.

Nos sete anos seguintes, foi Supervisor, Chefe de Vendas e Chefe de Serviços Comerciais. Escolheu, treinou e chefiou, várias equipas de vendas, esteve ligado a lançamentos de produtos e acções de marketing e merchandising que ainda hoje, passados mais de trinta anos, se podem ver em exibição em muitas farmácias.

Viu progredir e atingir grande destaque no mercado, muitos técnicos de vendas que consigo deram os primeiros passos e orgulha-se de ter colaborado na expansão de marcas como Vick Vaporub, Clearasil, Nani, Graviteste, Nicoprive, Milton, Bledine, Nutribem, Saltratos Rodel, Myrbane e muitos outros que ajudaram a desenvolver o conceito de produtos OTC nas farmácias de Portugal.

Uma passagem pelo mercado da Grande Distribuição, durante oito anos e retorno ao mercado farmacêutico, onde acabou de fazer o resto de uma vida de 46 anos de trabalho.

Muito trabalho, muita gente ajudada a ganhar a vida e progredir nas carreiras, muitas acções de formação e reciclagem e muitos amigos espalhados por diversas áreas de actividades.
Também muitas compensações e a certeza de que não era preciso emigrar para conseguir fazer carreira e ganhar bem a vida, honesta e honradamente.

Sempre seleccionou aqueles que consigo trabalharam numa perspectiva de futuro. A todos pedia que lhe dissessem, claramente, o que desejavam da actividade que se propunham desenvolver.

Viu partir muitos para voos mais altos que os seus e sempre se sentiu honrado com isso. Despertou muitos do atavismo e imobilismo em que se tinham acomodado, ou para onde os tinham empurrado.

Tem orgulho naqueles que subiram mais alto do que ele e lamenta as injustiças que tenha cometido, quer promovendo uns, quer preterindo outros. Sempre se bateu pelos melhores e nunca gostou de gente acomodada e resignada.

Há dias, sentiu orgulho ao olhar para um relógio que um vendedor, que consigo trabalhou, ganhou, em 74, no lançamento de um produto.

Titular de uma zona difícil, com poucos recursos e menos receptiva a um produto inovador, parecia que o JB estaria condenado a apresentar-se na reunião de final de ciclo, resignado aos piores números da campanha, embora se tivesse multiplicado em esforços para inverter aquilo que parecia inevitável.

Efectivamente em números absolutos, não foi o melhor vendedor; porém, em distribuição, conseguiu colocar o produto em mais de oitenta por cento das farmácias da sua zona, do centro do País.

E, parece que estava a ver os olhos do JB ao ouvir anunciar que, independentemente dos prémio de quantidade fora criado um prémio de distribuição e que esse prémio lhe fora atribuído.

Mais um embaixador, como chamava aos que partiam para novos rumos quando deixavam as suas equipas em busca de novas oportunidades, umas vezes reais, outras, infelizmente, falaciosas.

Quem partia, continuava amigo; porém não havia retorno. Esta premissa nunca foi ocultada a ninguém.

Essas histórias de gente simples, que calcorreou as estradas deste país, desde Bragança à ilha do Corvo, não têm fim. Ao cabo de mais de 7500 dias de trabalho nessa actividade, resta a convicção de que muitos erros houve, mas por desconhecimento, incapacidade, ou impedimento de resolvê-los; nunca por prazer ou menos desejo de ajudar.

Serão mais de cento e cinquenta embaixadores, ensinados nas diversas equipas e apoiados e estimulados no desempenho das suas funções.

Podem ser também considerados a verdadeira semente e fermento, capazes de criar e alimentar inúmeras personagens que povoam as histórias de gente simples que vão nascendo e tomando forma.

É a homenagem de uma vida de trabalho aos companheiros de muitas lutas, muitas alegrias e algumas frustrações.

Uma vida cheia de compensações, não apenas materiais mas também pessoais e humanas: quando se faz o que se gosta e em proveito de quem se gosta, é-se, com certeza, feliz.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Os pinheiros e a vida


Ainda o sol não tinha aparecido sobre o cabeço do moinho, já o Ti Zé Lourinho trazia aberta a água do açude da Ribeira e regava as belgas de batatas, no chão do meio, da Cabeça Gorda. 

Água de partilhas é para abrir logo ao sol-nado, dizia o meu avô.

Se só se tiver meio-dia, também pode calhar ao sol-posto.

Sentiu uma restolhada, ali perto, e assomou-se, do meio da horta, para ver o que se passava. 

Era o Ti’Jorge, encarregado da Firma de madeiras Carvalhos & Aparício, de Alferrarede, que acabava de parar a bicicleta motorizada e se dirigia na direcção do meu avô.

Atravessou o chãozito de cima e deu a salvação, da ponta da parede: Bons dias, Ti’Zé Lourinho! Deus o guarde!

Depois de ouvir a salvação de resposta, o Ti Jorge foi dizendo que já tinha mandado recado e também já o procurara lá na taberna, mas ainda não tinha calhado encontrarem-se. 

Sabe, Ti’Zé Lourinho, é que vamos hoje começar a cortar o pinhal, ali na Travelinha, na do Zé Pardal e, ao lado, na do Augusto Marques. 

É pouca madeira para o que precisamos e pensei que seria boa altura para vender os seus, aqui destas cinco que me parece que estão todas ligadas e pegam com a área que vou cortar. 

Podemos juntar o Lavadouro, cabeço do Vale das Lousinhas, Lomba, Brejinhos e Brejos. O seu pinhal está em bom corte e talvez seja boa altura para vendê-lo.

Era sobre este assunto que queria dar-lhe umas palavritas. Se estiver vendedor e achar que é altura de falarmos. 

Ah! Quando dei parte ao "patrão velho - Sr. Aparício" que vinha procurá-lo, ele desfez-se em cumprimentos para o senhor e mandou dizer que um dia destes vem por cá ver se os seus chouriços ainda são dos melhor apaladados e na sua adega ainda há do bom, daquele que na última vez o deixou de gatas.

Obrigado, Ti’Jorge, por tudo: Dos pinheiros falaremos todos juntos, pois quero que o meu genro esteja presente; sabe, estas coisas já são mais com ele e até o meu neto mais velho, que agora está cá de férias do colégio, gosta de ouvir.

E não quer lá ver que o diabo do moço se péla por uma boa negociata.

É verdade que o Aparício é um velho amigo: amizades feitas e vindas das ceifas de Santa Eulália, onde andámos os dois.

Ele safou-se, tem uma bela firma, é um senhor! Mas merece tudo o que de bom possa ter e vir a alcançar!

Eu, para aqui fiquei, a regar estas batatas, arranjando para comer, para mim e para os meus. Um homem, aqui, nunca sai da cepa torta.

Sabe, é disto que quero desviar os meus netos; desta vida, mais ou menos desafogada, com um cento a mais, ou a menos, de contos de réis, e, no fim de contas, vendo só até onde os olhos alcançam. 

Os meus netos hão-de ir mais além; hão-de subir até onde os outros são capazes de ir e não hão-de gastar os dias, os meses e os anos, a regar batatas, a comprar mais uma, ou outra courela, e a vender por mais dez ou quinze tostões as bicas do pinhal, ou as árvores, para corte.

Da última vez que estive com o seu patrão, dei-lhe, num particular, conhecimento destas minhas ideias, que, cá na Terra, não são muito bem aceites pela maioria dos meus compadres, sobretudo os que com algum esforço, podiam até arranjar meios para mandarem estudar os filhos e os netos. 

Fiquei encantado com o que me disse e nunca mais poderei esquecer que até se prontificou a ajudar-me, se de ajuda vier a precisar.

Não esperava menos do velho amigo Aparício.

Veja se o traz cá um dia destes; é que têm andado para aí uns diabos, algures aí de cima, a falar com o meu Amorim, sobre o pinhal e, que fique bem claro: pelo mesmo dinheiro, quem os irá pagar é a firma Carvalhos & Aparício, mas, negócios são negócios e quem mais nos der, mais amigo é, como se costuma dizer, sem que isso venha alterar a nossa velha amizade.

Gosto muito de ouvi-lo; até dá gosto ouvir gente da sua idade falar como o senhor fala. Subiu muito na minha consideração, embora já o tivesse como homem honrado, inteligente e bom zelador, coisa que não fica mal a ninguém. 

Mas, o que aqui me traz, mesmo, são os seus pinheiros, que me parece rondarão o milheiro, nestas cinco courelas; as daqui e as outras, para lá da ponte.

Podíamos juntar-nos, hoje ao pôr-do-sol, lá em sua casa, ou na adega, como quiser e falávamos do assunto.

E quem sabe se não teremos uma surpresa?

A mim parece-me bem. Lá os esperaremos, cheios de coragem, porque os do Chão de Lopes não querem perder estes pinheiros e, segundo um zunzum que me chegou aos ouvidos, estão alguma coisa em riba dos que disse que vai começar a cortar hoje.

O meu Amorim ainda só ouviu, não pediu nada!

Eu já lhe tinha dito para ir procurá-lo, mas ele nem tem tempo para se coçar.

E, segundo me parece, o Jorge não tem andado por estas bandas.

Então, o mais tardar até mais logo, por volta do sol-posto. Vou ter que ir lá à Serra, à do Manel, falar para o escritório e, se por lá estiver o patrão, aproveito para falar com ele e chamá-lo, pois nestes negócios maiores gosto de tê-lo ao pé de mim.

E, tratando-se de velhos amigos, ainda mais razão para dar cá um salto, acompanhado pelo filho, patrão Zé, se não estiver fora.

Depois passo palavra, logo que saiba alguma coisa. Fique com Deus, Ti’Zé Lourinho!

Vá com Deus, Ti’Jorge! Até mais ver!

Logo que acabou de regar as batatas, foi, ribeira acima, ao encontro do genro, dar-lhe notícias da conversa e combinando a estratégia para a noite.

Estou convencido que o Aparício aparece mais o filho e talvez seja bom que venha.

Vê se sabes, ao certo, quanto é que eles deram ao Zé Pardal, ou ao compadre Marques e depois logo vemos que posição devemos tomar. 

Ah! Gostava que o Zé estivesse a presenciar o negócio; ele gosta e só lhe faz bem assistir a estas coisas.

Não é todos os dias, nem sequer todos os anos, que se vendem uns bons centos de pinheiros; acho que eles querem os das cinco lá da ribeira, ali das do Lavadouro, destas da Lomba e Brejinhos e da dos Brejos. 

Mas não metem o machado nos pinheiros do lado de baixo do caminho da Cabeça Gorda; aqueles hão-de estar ali para qualquer coisa de especial.

E, se não estão sangrados, não fazem parte. O negócio é pelos sangrados todos.

Está bem, parece-me boa ideia ir saber quanto deram pelos que andam já a cortar; já se houve para lá o barulho.

Depois talvez fosse bom dar um toque aos do Chão de Lopes, pedindo-lhes a última palavra, se quiserem dá-la; sempre é bom ficar a bem com todos.

Nunca se sabe quando precisaremos deles e até podem ajudar a meter-nos umas coroas bem boas no bolso.

O que vamos vender é todos os sangrados a varrer, alto e mau. Nem precisamos falar naqueles que disse, pois nunca nenhum lhe meteu ferro para resiná-los.

O meu pai, despachou-se e foi para casa, para procurar as informações.

Não precisou de ir muito longe, pois no caminho encontrou o compadre Marques que, sem grande dificuldade, lhe disse que pelos dele deram noventa mil réis cada um, mas que não fizesse uso, pois pensava que ao Zé Pardal não deram à conta certa.

Confirmavam-se, assim, as palavras que o Zé Pardal já dera ao tio João: acho que deram, ao meu sobrinho, oitenta e sete e meio por cada um, disse o vizinho João Pardal, tio e tutor do Zé.

Ao jantar o meu pai deu as notícias ao meu avô e sugeriu que tinham de começar na nota certa., para poder discutir até aos noventa e cinco, ou noventa e seis.

Os nossos têm mais madeira, no geral, é claro, pois também há lá fracotes, estão muito bem situados e sem arrancar do mesmo sítio têm ali, à mão, mil, cento e cinquenta e quatro pinheiros. 

Já estive a ver, mais o Zé, e foi esse o número de sangrias que pagou o Manel Padre, na campanha da resina.

Pela nota certa, seriam cento e quinze contos e quatrocentos mil réis, mas podemos pedir, os cento e vinte contos.

Dá, por cada pinheiro, cento e nove escudos e nove tostões.

Depois podemos baixar à nota certa, mas vamos a ver o que dizem aqueles diabos lá do Chão de Lopes. 

O Zé vai ter no bolso um papelito com as contas já feitas e também papel e lápis, para fazer outras se for preciso. O que lhe parece?

Está tudo bem pensado; dá um jeito ali na casa da adega, para estar tudo preparado, se eles por aí aparecerem.

E não te esqueças de avisar o Zé, para estar por aí, preparado para o que der e vier.

O Ti Jorge, foi lá a casa, informar que falariam no dia seguinte, pois o patrão fazia questão de vir negociar com o velho amigo e, afinal, era o maior negócio na Serra, desde que se lembrava.

Mas hoje não podem vir; estarão cá, amanhã, antes do pôr-do-sol, se não virem inconveniente.

Antes de partir, molhou a garganta e despediu-se.

Meu pai chegou às falas com os homens do Chão de Lopes que disseram que estavam interessados em cinco ou seis centos de pinheiros e podiam mesmo comprar todos, mas neste caso cerca da metade só será cortada dentro de meio ano. 

A última oferta é de noventa e seis escudos cada, ou noventa e sete e meio, no caso de comprarem todos com o corte dentro de meio ano e pagamentos na altura dos cortes.

Foi, com base nestas ideias, que o meu avô, à ceia., disse para o meu pai: Ouve lá, Amorim, quanto é que se pode arranjar de juros? Na banca e aí aos habituais?

E se metêssemos em condições, ao Aparício, um prazo de pagamento, em três vezes?

Por exemplo: metade, agora, um quarto, em Setembro e o resto no Natal? Dá os cento e vinte contos e fazemos essas condições de pagamento.

Que te parece? Então e tu, Zé, não dizes nada?

Parece-me uma boa ideia. Se o dinheiro não é preciso já, pode-se valorizar no negócio.

Fazendo contas a juros de dez por cento, pagos aí por particulares, trinta contos em quatro meses e outros trinta em oito meses, dão três contos de juros. 

Ora, se em vez dos cento e quinze contos e quatrocentos, se fizer negócio por cento e vinte contos, há lucro de quatro contos e seiscentos.

É muito boa a ideia do avô, mas deve ser um trunfo que só se joga se for preciso e mesmo assim tem de se começar a pedir cento e vinte e cinco contos para poder vir a baixar alguma coisa, como vocês aqui dizem, quanto às palavras de rei e às rachadelas das diferenças.

Meu pai e meu avô olharam-se, sorriram e parece que muito mais importante que isso foi o bichinho que nunca mais me deixou e que, apesar de ter avançado para Professor, nunca mais perdi o interesse pelos negócios:

Ainda na Escola do Magistério, criei, organizei e dirigi a cantina e o serviço de folhas e fotocópias das lições.

Na escola da Costa do Castelo, fui Director e Secretário de Zona e impulsionador da cantina. Todos os anos se fazia o passeio da escola e outras actividades circum-escolares.

No serviço militar, na Guiné, como alferes miliciano mais antigo e comandante interino da Companhia, era o responsável pela cantina e gestão do rancho.

Depois de voltar ao meu lugar na escola, em Lisboa, comecei imediatamente a programar a aquisição da casa dos Olivais, a procurar alternativas a um curso académico, que apenas me faria passar ao ensino liceal e logo que apareceu uma boa hipótese, segui-a: 

Frequentei um curso, organizado pelo Grémio dos Industriais de Especialidades Farmacêuticas e fiquei muito bem classificado, sendo convidado, por diversos Laboratórios, como Delegado de Propaganda Médica. 

Escolhi um Laboratório com uma organização social exemplar e uma forte vertente comercial. Ao fim de dois anos fui convidado para organizar e supervisionar uma equipa de vendas, em farmácias, de especialidades farmacêuticas e produtos de venda no balcão.

Durante os sete anos seguintes, frequentei dez cursos de aperfeiçoamento e, já responsável de topo, fui para a área da Grande Distribuição, que ensaiava os primeiros passos em Portugal.

Estive, como director comercial numa pequena empresa, que, em sete anos, cresceu vários centos por cento, vindo a acabar por ingressar, de novo, na Indústria Farmacêutica, num dos maiores Grupos Farmacêuticos, onde assumi as funções de director comercial. 

Durante mais de vinte anos, trabalhei em íntima ligação com a Administração até que, aos sessenta e cinco anos de idade, me aposentei.

Visitei muitos clientes e fiz muitas vendas, acompanhei muitos profissionais, desde a selecção, preparação e reciclagem, à promoção. 

Nunca senti grande apetência para trabalhar por conta própria e nunca invejei os lucros que terei acumulado e ajudado a conseguir nas empresas onde trabalhei. 

Nunca senti a minha consciência violentada nos negócios em que participei e dirigi.

Da centena e meia de profissionais que comigo se iniciaram e sob meu comando e orientação actuaram, guardo muito mais recordações positivas que negativas.

Considero muito gratificante a ajuda que pude dar a quem começou nas lides, comigo, e acabou nos altos quadros de multinacionais de topo.

Nunca me senti diminuído pelos que, profissionalmente, subiram mais alto que eu.

Considero-os meus embaixadores e vejo-os com orgulho.

Anos mais tarde; muitos anos mesmo, já o meu avô e o senhor Aparício, nos tinham deixado, estivemos um dia, na adega lá da Serra, juntos com o senhor Zé Aparício e recordámos aquele negócio dos pinheiros da ribeira e a forma como o garoto, que andaria pelos doze anos, arquitectou aquele esquema e explicou aqueles juros de três meses, seis meses, etc., com uma desenvoltura que maravilhou os homens dos negócios.

Eu senti muita honra nos elogios que ouvi, porém, o prazer e sensação de vitória via-se, na cara de meu pai, já então com a visão diminuída e em silêncio. 

Estava ali personificada a vitória da sua vida, partilhada sempre com seu sogro e que ganhou forma e força desde o dia em que decidiram trocar as vidas dos três garotos, transformando gente condenada às condições que os campos podiam proporcionar, em homens cultos e senhores dos seus destinos.

E fazer nascer a esperança, sentir o valor da realização quando se sobem os degraus que a vida vai colocando à nossa frente, dar a mão aos que nos acompanham, sem reservas nem receios que eles venham a passar-nos à frente, é, não só gratificante, como a maneira mais segura de não ter insónias e olhar para trás, com satisfação, alegria e tranquilidade.





sexta-feira, 18 de novembro de 2011

“ Manel” de Alfama



Até ir às sortes, era um rapaz pacato, respeitador e muito metido consigo; lançava mão a qualquer trabalho, era possante e diligente, chegando mesmo a ser um dos jornaleiros preferidos e disputado por quem dava jornas.

Criado aos baldões, sempre foi comendo qualquer coisa e vestindo alguma roupa de lavado graças aos cuidados da tia Lurdes, que se substituiu à mãe, quando esta acabou por morrer na sequência do parto. O pai, madeireiro, ia para onde o serviço assim pedisse e pouca atenção dava ao garoto, mesmo quando estava por casa.

Dizia-se, na vizinhança, que lhe atribuía as culpas, pela morte da mãe, acusando-o de nascer grande de mais. Frequentador e freguês assíduo das tabernas, passava dias que nem via o filho.
Chegada a altura, o Manel lá foi à inspecção e, apurado para todo o serviço militar, apresentou-se no quartel de Abrantes, onde viria a completar a recruta, com elogios dos instrutores e louvor do comandante da Companhia.

Transferido para Portalegre, por lá andou quase dois anos, sem voltar à Terra. Até que um pinheiro desgovernado, caiu para o lado contrário ao desejado e o pai do Manel Eugénio acabou esmagado, quando cortava árvores, no pinhal do Cabeço Pião, já a vistas da Aboboreira.

Passada parte ao Manel, então ainda em Portalegre, veio o rapaz no dia do enterro e, sem falar a ninguém, nem nunca levantar os olhos do chão, voltou do cemitério para casa, metendo-se na cama.

Ninguém mais o viu durante três dias e a Ti'Lurdes, irmã do pai do Manel, só a muito custo conseguiu que engolisse umas malgas de caldo e trincasse uns bocados de pão e queijo.

Chegou ao quartel um dia depois da data devida e acabou castigado com cinco dias de detenção. Além disso nada mais lhe foi apontado na caderneta militar que exibia, com grande satisfação, ao mostrar o louvor que lhe foi feito no final da instrução.

Licenciado ao fim de quase três anos de tropa, passou à disponibilidade, mas não foi para a Terra.

Arranjou amizade com um soldado de Lisboa e acabou convencido que lá é que valia a pena trabalhar e lá é que se podia ganhar e juntar algum dinheiro.

O amigo era natural de Alfama e ia contando ao Manel como eram as pequenas de lá, como o pai chegava a ganhar contos de réis por semana a carregar e descarregar barcos e até se podia aprender um ofício nas obras que naqueles tempos davam trabalho a todos os que quisessem.

Também podia concorrer para a Polícia, Guarda Republicana, Guarda Fiscal, empregar-se na Carris, nos Telefones... Era só escolher.

Mas, para isso tinha de ir para lá e, para os primeiros tempos arranjava-se, lá em casa dos pais, um colchão para dormir e alguém para lhe tratar da roupa.

Cheio de esperança e entusiasmo, o Manel acabou assim por ser devorado por tudo quanto lhe tinha sido dito pelo amigo, antes de abrir os olhos para tudo o que o rodeava e em nada se comparava com a vida calma, pacata e longe da gente ruim que abunda nas grandes cidades e, particularmente, nos meios para onde foi atirado.

O Alberto Costa, conhecido no meio e nas autoridades, por "Bebé", retornou à vida devassa e voltou a ser o meliante que um dia deixara o Bairro para ir cumprir o serviço militar. 

Passavam-se dias que não aparecia e quando o Manel mais precisava dele para o ajudar a procurar trabalho, acomodação e rumo de vida, aparecia a cair de bêbedo, ou quando ia para a cama. Passava as noites nos bares e tinha amigos que não valia sequer a pena conhecer; já no que se referia a amigas, andava sempre com o piorio.

Foi assim, farto das trapaças que tinha visto fazer ao ''Bebé'', que o Manel encontrou um dia, nas imediações do porto de Lisboa, ali por alturas da doca do Beato, uns homens da Carregueira, que se deram por conhecidos e se dispuseram a ouvir o rol de desgraças que o moço da Serra tinha para contar. 

Ouviram-no, compreenderam o caldinho que lhe estavam a arranjar e aconselharam-no a mudar-se o mais rápido possível para bem longe de todo aquele ambiente.

Ficou, logo ali, combinado, que iria viver com o pessoal lá da Terra, para os lados da Pontinha, onde se lhe arranjaria uma cama, lugar para guardar alguma coisa que tivesse, quem lhe cuidasse da roupa e comida. 

Passou a viver numa espécie de comunidade, onde, de facto, se sentia ao pé dos seus e era ajudado quando precisava e, sobretudo, orientado na procura de trabalho.

Não voltou a ver o "amigo" de Alfama e, dizia, com graça e mágoa, que se eram assim os amigos, era melhor conhecer só bichos.

Começou nas obras de um bairro que se andava a construir em Benfica. Trabalhava bem, fazia horas a mais, chegou a servir de guarda da obra e ao fim de meia dúzia de meses já tinha um pé-de-meia razoável.

Soube duma vaga na estiva e começou a ir ao conto e arranjar trabalho na carga e descarga de barcos.

O trabalho pesava, mas os proveitos aumentavam muito e depressa. Chegou a trabalhar dias inteiros, sem ir à cama e a ganhar doze contos numa semana. Para o tempo era muitíssimo dinheiro; um operário, nas obras, ganharia, com algumas horas extraordinárias, à volta de um conto de réis por mês.

Acabou estivador encartado e nunca foi recusado por qualquer chefe de grupo, ou capataz. Vá-se lá saber porquê; era chamado, no meio, pelo Manel de Alfama. 

Ao fim de dois anos de trabalho duro a que o Manel nunca virou a cara, os companheiros das barracas onde vivia, tentaram convencê-lo a ir à Terra por alturas das festas do Verão.

O Manel disse-lhes que nada o ligava já à Serra, praticamente não tinha lá ninguém, uma vez que a tia que lhe servira de mãe, já tinha morrido e os primos nada lhe diziam. Havia para lá uns casebres e uma tapada que deveriam ser dele, pois nunca teve notícia que o pai os tivesse vendido; Todavia, não queria voltar à Terra antes de ser rico e poder mostrar a quem um dia o deu como perdido, que afinal era gente, estava vivo e era, finalmente, um senhor.

Se perguntassem por ele, que arranjassem as desculpas que quisessem e dissessem que quando fosse oportuno ele lá iria, pois não devia nada a ninguém, e ainda não se tinha esquecido do caminho.

Nos dez anos seguintes, até aos trinta e cinco, andou, sabe Deus por onde: desde a pesca do bacalhau, a meses intermitentes na estiva, servente em navios de carga, emigrado em África, criado de gente rica na Argentina e garimpeiro no Brasil, são uma pequena amostra das aventuras que lhe aumentaram largamente a conta nos bancos e os modos e maneiras de se apresentar. 

Aos olhos de quem o viu aparecer lá pelas barracas dos lados da Pontinha onde tinha vivido, parecia aquele senhor que um dia afirmou esperar vir a ser. 

Mas, no fundo, para quem um dia lhe deu a mão, quando andou quase a perder o pé, lá pelas bandas de Alfama, continuou a ser o mesmo Manel da Serra. 

Petiscaram juntos, foram dar uma volta pela cidade, conversaram sobre os projectos e ideias do Manel e, à porta de uma tasca do Campo Pequeno, vendo o Coxo que continuava ali a vender jogo, cumprimentou-o, convidou-o para beber um copo. 

Perguntou-lhe se ainda tinha algum bilhete inteiro. O cauteleiro disse-lhe que nunca trazia bilhetes inteiros, pois raramente tinha fregueses com os duzentos mil réis para comprar um bilhete, mas era só meter-se no eléctrico e ir buscá-lo se ele quisesse. Tem algum número preferido, freguês? 

O Manel atirou-lhe, como quem não faz questão, com um encolher de ombros: a acabar em setecentos e catorze. Foi o número com que joguei nas rifas, lá em Alfama, e com dez tostões ganhei dez mil réis. Se me trouxer um número desses, inteiro, venha aqui à taberna, pois vamos petiscar por aqui e esperar que cheguem mais uns companheiros para batermos uma suecada, ou jogarmos o burro.

Ainda não tinham acabado de almoçar e já o Coxo entrava portas a dentro, com um envelope na mão, dizendo: aqui tem freguês, o número 28.714. Ainda havia o bilhete inteiro; trouxe-lhe as dez cautelas e, como se trata da lotaria de Santo António, são duzentos mil réis. Mas, se tiver aqui a taluda, como vim todo o caminho a pedir ao meu Santo António, ficará três vezes milionário. 

Nesta semana é a lotaria de Santo António. A taluda são três mil contos de réis; é dinheiro a mais para um homem só, mas Deus permita que não morra sem ver satisfeito este sonho que tenho desde garoto: vender um dia a taluda a um freguês, que depois me venha aqui ver e me dê cem ou duzentos mil réis para comprar um fatito e uns sapatitos.

O Manel deu as duas notas ao cauteleiro, agradeceu-lhe o desejo e disse que na próxima semana ia para fora, por dois meses, mas quando voltasse havia de vir ali dar-lhe o prémio, se lhe tivesse vendido a taluda e não seriam os cem ou duzentos mil réis, mas cinco notas.

O Manel tinha segredado ao Elias da Carregueira que quando esteve na Argentina trabalhou para um intermediário na venda de carnes, por atacado. Vendia carne de bovinos, em carcaça ou como animais vivos.

No último barco em que supervisionou o arrebanhamento, contagem e embarque de duzentas toneladas de carcaças e trezentos animais vivos, ganhou trezentos contos de comissões. Era um negócio muito trabalhoso, com muitos intermediários pelo meio, mas, a calcular pelo que via, envolvia muitos dinheiros e grandes lucros.

Queria ver se fazia mais quatro ou cinco negócios e depois pensava vir para Portugal e comprar uma dúzia de andares para rendimento e, quem sabe, arranjar dois ou três sócios de confiança e começar a construir em Lisboa ou nos arredores. 

Era preciso ir pensando num engenheiro, num advogado, num bom guarda-livros e nuns dois encarregados de obras. O capital era com ele e estava disposto a dar sociedade aos cinco sócios, além de interesses sobre os resultados alcançados. Estava a pensar em ficar com 60% e dar 8% a cada um dos sócios.

Mas, Ti'Elias, o senhor é um destes cinco; os outros quatro ainda não faço ideia de quem sejam. Por enquanto não dirá nada disto a ninguém. Rigorosamente a ninguém! Vá pensando, mas não fale, nem com a sua mulher, neste assunto! 

Nessa altura, o Manel tinha em três bancos quase quatro mil contos e diversas acções e outros papéis de empresas no valor de compra de, aproximadamente, dois mil contos. O dinheiro rendia-lhe à volta de quarenta contos por mês e os papéis valorizavam-se outro tanto, pelo menos. 

Tinha três negócios de carnes em curso, entre Brasil, Uruguai, Argentina e a Manutenção Militar, cujos números poderiam, se tudo corresse bem, atingir lucros de dois mil contos. 

Para ultimar contactos com fornecedores partiria, na semana seguinte, para a América do Sul. E levaria consigo um advogado para o orientar nos contratos que iria ter de assinar. 

O doutor Mendes Baeta viria a ser o seu braço direito e parte interessada nos negócios futuros. Também o escritório do advogado, na zona das avenidas novas, seria a primeira morada referida junto dos parceiros de negócios e o primeiro escritório da Sociedade Ulissiponense de Carnes, Lda., cujas quotas eram divididas em duas partes: uma de noventa e cinco por cento, pertencente ao sócio Manuel da Silva Eugénio e outra, de cinco por cento, na posse de António Mendes Baeta. Era gerente da sociedade o sócio maioritário.

Enquanto se estabeleciam os contactos com os fornecedores pelas terras da América do Sul, o Coxo andava que nem um louco a procurar, na taberna do Campo Pequeno, aquele senhor que tinha estado lá com uns pedreiros no fim-de-semana e disse que na semana seguinte iria para o estrangeiro. 

Não revelava o assunto, arranjando algumas desculpas para encontrar o senhor, dizendo que se tinha enganado no troco e lhe tinha ficado com dinheiro a mais, que queria devolver. Deixou recado para que o avisassem, que logo que ali aparecesse, ou algum dos amigos dele, para falarem com o cauteleiro.

Até que, passados dois meses, quando o Manel voltou a Lisboa, foi um dia petiscar ali à taberna do costume e foi abordado pelo Coxo que, chamando-o de parte lhe disse: tenho andado louco para o encontrar. Já foi receber o dinheiro?

O Manel nem percebeu bem o que o homem queria dizer e disse: ainda não comprei, não; arranja-me aí meia dúzia de cautelas! Aí o Coxo, como que segredando-lhe, disse:

Então não se lembra daquele bilhete que lhe fui buscar à Baixa, no eléctrico, quando estava aqui com os seus amigos a jogar as cartas?

Olha, nem sei onde o pus, mas deve estar na Pensão onde moro, ali ao Saldanha. Porquê, homem? 

É que eu nunca quis dizer nada a ninguém mas, finalmente vendi uma vez na vida a taluda; o seu bilhete teve a sorte grande - três mil contos -. Já fui informar-me à Santa Casa e ainda não foi recebido o prémio. 

Como havia de ter sido se o senhor nem estava cá, em Portugal Acho bem que vá procurar as cautelas e vá com elas ao Largo da Trindade, ao serviço de lotarias, levantar o seu dinheiro; é que não sei bem mas há prazos para receber os prémios.

Quanto a mim, já posso morrer; já fiz alguém três vezes milionário. E que Deus lhe dê muita saúde e vida para gozar tão grande fortuna. Peço-lhe só que nunca se esqueça de quem é pobre!

O Manel parou, finalmente, para meditar um pouco, no que acabava de ouvir e, despedindo-se do cauteleiro disse que ia tratar disso, quando tivesse um bocadinho e que continuasse a parar ali pela taberna. 

Ia mandar chamá-lo num dos próximos dias, pois iria precisar muito de falar com ele. Meteu a mão ao bolso e deu-lhe cinquenta escudos para almoçar e beber um copo. E seguiu, avenida abaixo.

Foi à Pensão e lá estavam no envelope da Casa da Sorte as cautelas da lotaria de Santo António, que diziam na parte de trás que os prémios teriam um prazo de seis meses para serem recebidos.

Ainda faltava um mês. Mas, nessa altura pensou: será que o cauteleiro não está enganado? O melhor é telefonar para a Santa Casa a perguntar em que número saiu a taluda da lotaria de Santo António.

Pediu a chamada à recepção da Pensão e quando ouviu dizer o número 28.714 e o valor de três milhões de escudos, desceu à rua, meteu-se num táxi e dirigiu-se à Santa Casa, com as cautelas no bolso e um fervilhar de ideias na cabeça.

Bem, o cauteleiro seria empregado no escritório, talvez paquete, ou porteiro. Teria de saber se tinha casa e família, como viviam e quantos filhos tinha. Encarregaria a empregada do escritório de reunir todos esses dados e trataria depois de ajudá-los. Só poria uma condição: nunca ninguém devia saber nada do segredo que ficaria entre um cauteleiro e um freguês que um dia se encontraram.

Chegou ao seu destino sem dar por isso e, já num gabinete da Misericórdia, vieram dois senhores que observaram as cautelas e lhe perguntaram como queria o pagamento. Podiam passar-lhe imediatamente um cheque visado que ele depositaria, depois, onde desejasse. 

Faria apenas o favor de se identificar e aguardar o tempo suficiente para tratar do cheque, que como compreenderia teria de ser assinado pela Administração.

Mandaram servir-lhe, aperitivos e café e dispuseram um conjunto de jornais e revistas, para se entreter, ou, ir dar uma voltinha e regressar, dentro de uma hora, para receber o cheque. 

Aguardou. Vieram os mesmos dois funcionários e entregando-lhe o cheque, felicitaram-no e disseram-lhe que chegaram a recear o pior, pois já tardava a reclamação do prémio e tinham tido conhecimento que um cauteleiro, que vende lá para o Campo Pequeno, já tinha passado, duas ou três vezes, a saber se o prémio tinha sido levantado. Ao ser informado da não reclamação do prémio, mostrava grande inquietação e retirava-se.

Uma vez disse, desalentado: nunca tinha vendido um bilhete inteiro e nesta primeira vez foi calhar a alguém que nunca mais vi e ainda há-de acabar por perder o dinheiro, ou porque tenha deitado fora o jogo, ou porque se esqueceu, ou sei lá que mais poderá ter acontecido. 

Lembro-me só que ele me disse que eu havia de ter umas notitas de recompensa, mas isso é o que menos me interessa; de pobre não passo, mas a fortuna é do meu cliente e vou procurá-lo até o achar.

Passou no banco e depositou o prémio. Pediu uma entrevista com o gerente e um extracto de conta. Acabou por fazer uma transferência de outro banco da concorrência, para perfazer doze milhões de escudos e conseguiu, atendendo à quantia que ficava a prazo, com um pré-aviso de quinze dias, um juro de 1,5% acima da taxa máxima para os depósitos a prazo.

Feitas as contas teria dali um rendimento de quase cento e cinquenta contos por mês. E, como é evidente, crédito alto, para movimentar os seus negócios, cá em Portugal e no estrangeiro.

A década de cinquenta correra de feição aos negócios das sociedades do Manuel e aqueles três mil contos do prémio da lotaria já nem tiveram o significado que seria de esperar; acabaram por ser mais uma ajuda na subida constante e quase vertiginosa na fortuna do já milionário.

Naqueles tempos o termo aplicava-se a quem tinha, pelo menos, mil contos.

Nos anos sessenta, abriu um escritório na Beira - segunda cidade de Moçambique e o maior porto daquela Província Ultramarina de Portugal. Tinha na cidade um entreposto, com câmaras frigoríficas e relacionava-se com as autoridades militares portuguesas. A maior parte da carne de vaca fornecida à Manutenção Militar, passava pelos seus armazéns. 

Discretamente, à medida que o tempo corria, não era insignificante o apoio que dava aos movimentos de libertação, para onde vendia, igualmente toneladas de carne. E este jogo duplo, trazendo-lhe avultados proveitos, não deixava de ter custos enormes, mas era muito positiva a actividade do Entreposto de Carnes, como denominou a Empresa. 

Movia-se muito bem em Moçambique e foi de lá que partiu para uma parceria com uma empresa dinamarquesa, vindo a tornar-se, anos mais tarde, numa das maiores distribuidoras de carne de ovinos, sobretudo borregos, na Europa e em alguns países de África. Outra parceria alargou esse negócio à Índia.

Nos meados dos anos setenta, o senhor Manuel da Silva Eugénio, de sessenta anos de idade, de nacionalidade portuguesa, solteiro e grande amigo de Moçambique, onde tinha prósperas empresas de negócios, foi condecorado, pelo governo de Maputo, com a Comenda de Mérito Industrial e foi-lhe concedida a nacionalidade moçambicana por serviços meritórios no País.

Do elogio ao agraciado, feito pelo seu sócio e companheiro de negócios, doutor advogado António Mendes Baeta, constava um rol de vinte e três empresas, comerciais, industriais, agrárias e de construção civil e dezenas de significativas ajudas a organizações e serviços de assistência social e humanitária, espalhados por todo o País.

Foi ainda revelado que muito proximamente o Senhor Comendador iria criar uma Fundação, com sede na cidade da Beira e escritórios em Lisboa e Luanda e visando, sobretudo, a educação de crianças órfãs e de famílias sem meios, para além dos filhos dos empregados das empresas do grupo. 

Nessa altura estudavam nos diversos graus de ensino, da escola primária às universidades, a expensas do senhor Comendador, quarenta e quatro filhos de empregados nas suas empresas. 

Os estudos eram custeados até à conclusão dos cursos e, no final, cada um podia candidatar-se aos quadros das empresas, ou ir fazer vida onde bem entendesse. 

Não havia quaisquer obrigações por parte dos beneficiados. 

O capital previsto para a futura Fundação Manuel da Silva Eugénio seria da ordem dos cem mil contos. E, no património da Instituição, figuravam dezenas de edifícios e a totalidade das participações sociais do Comendador nas empresas do grupo.

Por morte do fundador, a fundação era sua herdeira universal.

domingo, 13 de novembro de 2011

O moinho da estrema

Quem passava do lameiro dos Salgueirinhos para a Ribeira, atravessava, na portela da Chã, depois dos eucaliptos, o caminho que, vinha dos lados da estrada da Lameira e circundava a aldeia, dando a volta lá por baixo, pela Figueira Regal.

Era por este atalho que, mais adiante, pouco antes do Machoso, se chegava à descida da lajoeira até à ponte, onde, pouco depois, ou se seguia em frente, pelas Taliscas, para o Vale das Onegas, ou se metia pelo vale do Sinhal, para o Monte Cimeiro, ambas já terras de Alcaravela e, como tal, de Sardoal.

Estes caminhos ainda por lá estão; porém a estrada moderna e alcatroada, relegou-os para o desuso e aqueles trilhos que gente e bestas foram abrindo, desgastando saibros e lousinhas que depois as chuvas se encarregavam de drenar até às hortas, são agora, muitas vezes, quase irreconhecíveis. 

Na portelita, entre os eucaliptos do Ti'Manel da Chã e os pinheiros do Ti'Manel Rosa, num altinho quase imperceptível, as águas das chuvas tomavam dois rumos diferentes: as do lado norte, corriam na direcção da aldeia e as do lado sul iam para a ribeira.

Depois, pela chapada de seara, até ao moinho, a linha era mal demarcada, mas via-se a inclinação para os dois lados. 

Junto do carreirinho havia um marco grande, diferente das pedras que separam as hortas e courelas umas das outras, indicando as estremas do que a cada um pertence.

No moinho, lá no cimo do outeirito, estava outra daquelas pedras; bastante grandes, com o cimo muito quadradinho e os quatro lados muito lisinhos.

Eram blocos de cantaria, vindos de Penhascoso onde havia aquela rocha - granito - e tinham letras escritas, com tinta preta, normalmente em dois lados. 

Li, muitas vezes, aqueles dizeres para o meu avô, que depois me fazia as explicações do que aquilo queria dizer. E, analfabeto como era, explicava-me, rigorosamente, o que eram os concelhos, as freguesias e a importância que tinha a delimitação das terras.

No lado das casas, estavam dois números - 34, com algarismos maiores, por cima e 12, com algarismos mais pequenos, numa linha abaixo -; em seguida MAÇÃO e, por baixo, com letras menores, Penhascoso.

E lá vinham as explicações que, sempre com a máxima atenção, eu ouvi diversas vezes:

Estes marcos foram aqui metidos por uns homens das senhoras Câmaras do Mação e do Sardoal. Do outro lado, os números são diferentes e os dizeres das terras são SARDOAL e Alcaravela, não é verdade? O número com as "letras" maiores, é o que nos diz quantos marcos destes há, desde o começo do concelho até aqui. O outro, é o número de marcos desde o começo da freguesia até aqui. 

A palavra de cima, MAÇÃO é o nome do nosso concelho e a de baixo, Penhascoso é o nome da nossa freguesia.

Do lado de lá as coisas querem dizer o mesmo. Em todas as senhoras Câmaras há mapas com os lugares destes marcos e os dizeres deles que indicam, se for preciso, um lugar no terreno.

Mas para que se gastou tanto dinheiro a meter estes marcos todos e depois a escrever estas letras?

É muito importante que cada uma senhora Câmara saiba a terra que tem, para poder cobrar a décima, passar licenças para as obras, cuidar dos caminhos, entregar o correio e muitas outras coisas. 

Não te recordas de um homem de Alcaravela que vinha até aqui ao pé deste marco e esperava que o Ti'Zé Matias, que era sócio dele, viesse falar-lhe e combinar os negócios?

Oh! Avô, e porque diabo não ia o homem a casa dele, lá no Casal, ou à taberna e falavam mais à vontade?

Porque não podia; estava castigado, pelo doutor juiz do tribunal!

Não me diga, avô, que há alguém que castigue outro, obrigando-o a juntar-se debaixo duns pinheiros com quem quer falar!

O castigo não era esse; o tal homem estava proibido de sair do seu concelho, porque tinha estado preso e depois da prisão, dentro de uns tempos não podia ir para fora do limite do concelho. Se não cumprisse essa ordem podia ser apanhado e iria à cadeia fazer o resto do tempo de prisão.

Está bem! Mas, avô, e aquele sítio além chama-se moinho, porquê?

Certamente porque, em tempos, houve lá algum moinho. Eu não me lembro de nada disso, mas contava-me o meu pai, que Deus haja, que ali era o moinho da estrema.

Talvez porque lá houvesse algum moinho e estivesse, precisamente sobre a estrema dos dois concelhos: do lado de cá o de Mação e do lado de lá o de Sardoal. 

E, sempre ouvi dizer que o moleiro não era flor que se cheirasse; era grande como não havia outro homem nas redondezas e pelo lado da velhacaria, também valia bem por meia dúzia. 

Parece que não pagava décima a nenhuma das senhoras Câmaras: aos do Mação dizia que era de outra terra, pois pertencia ao Sardoal e mostrava uns papéis antigos, que nunca ninguém soube o que diziam e onde apenas se lia, por fora, Sardoal.

Quando vinham os do Sardoal dizia que não tinham nada com ele, que pertencia ao concelho de Mação e mostrava uns papéis que não dava para as mãos de ninguém, ficando-se pelas letras grandes de fora: Mação. 

Diz-se que nunca casou, não cumpriu a tropa e, quando morreu, nem uns nem outros o queriam enterrar; mas também há os que dizem que acabou desaparecido.

Eu acho que isso são histórias que o povo vai contando e ainda hoje vão dando para alguns ditos.

Em tempos houve lá qualquer coisa; eu penso que terão sido casas de gente muito antiga, de há muitos anos atrás; há por lá pedras que parecem indicar que ali viveu alguém e até que por lá terá sido enterrada gente.

É um lugar pouco simpático e nunca se ouviu dizer que os pobres ali tenham feito malhada, ou que alguém pensasse aproveitar o lugar. 

Quem o quisesse fazer tinha de se desviar para o lado de cá, para não ficar a morar numa terra onde todos pertencem a um concelho menos uma casa que fizesse parte de outro. Estás a ver aqui um inconveniente dos tais marcos. 

Diz-se que uma vez um moleiro restaurou ali um moinho e na primeira noite em que encheu as velas, veio tamanho "pojino" que não só desfez completamente velas e cobertura, como espalhou as pedras das paredes por muitos metros à roda.

Diz a lenda que uma das mós foi encontrada no meio do mato, no fundo da Pedreguina e a outra - a de cima - nunca foi encontrada. 

À boca pequena, muitos dizem "moinho excomungado", mas assim em público pegou o nome de moinho da estrema e é como tal que sempre foi conhecido.

Mas isso são lendas, que depois se transformam em ditos, para mais tarde passarem a histórias e acabarem, por chegar ao lugar onde pertencem: esquecimento. 

Há uma outra coisa que gostaria de te dizer a respeito dos marcos: entre nós, depois de matar um homem, uma das maiores ofensas que se podem fazer é mudar um marco.

Aliás uma das causas mais vezes verificada em contendas e até mortes de homem é a muda de marcos entre as propriedades.

Cá nos nossos códigos de honra, aquelas pedras toscas, em forma de laje, enterradas, com duas, ou três mais pequenas ao lado, representam como que homens vivos, que só podem ser mexidos na presença de todas as partes interessadas. 

E só se muda um marco em casos muito especiais. Quando desaparecem devem ser repostos, mas nunca só por uma das partes e, de preferência, na presença de testemunhas.

Ora aqui os marcos que separam as freguesias, fazem-no também para os concelhos. Mas aqui limitam também duas províncias: para sul é o Ribatejo e aqui para norte a Beira Baixa. O nosso concelho de Mação é o único do distrito de Santarém que pertence à Beira Baixa. 

Depois, certamente, hás-de estudar essas coisas e ainda me hás-de ensiná-las quando fores professor, como eu gostava que fosses.

E, nos últimos sete anos de vida, teve esse gosto, o meu Avô:

Homem menos que meão, de estatura; mas enorme, de cabeça, coração e alma.