quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Pena de Talião

Pelos anos cinquenta não era fácil a vida no centro do País; no campo era difícil – havia pouco dinheiro para pagar as jornas, a propriedade muito dividida era amanhada pelos proprietários e filhos e os trabalhos especiais (ceifas, mondas, malhas, azeitona, podas ou vindimas) eram sazonais e, por vezes, comunitárias.

Para se conseguir um lugarzito como factor da CP, guarda freios ou condutor na Carris, servente ou pedreiro, nas obras de Lisboa, e guarda na GNR ou PSP, era preciso bons empenhos, de alguém bem colocado, a troco de um bom cabrito ou de uns garrafões do bom azeite da região.

Numa dessas voltas da vida, o ti Manel Bento dirigiu-se a casa do doutor Martins – onde era jornaleiro, tal como fora seu pai –, para lhe pedir que arranjasse qualquer coisa para o filho Mário, que daí a dias seria licenciado da tropa e não tinha muita compleição física para cavar com ele no campo ou nos poços e minas.

Muito bem recebido pela Senhora, que chamou logo uma criada para guardar o recheio da cestinha do ti Manel Bento, constituído por um frasco de mel, um galo capão, ainda vivo, e duas garrafas de azeite. E, enquanto a criada não voltava com a cestita já vazia, lá foi assegurando ao jornaleiro, conhecido da casa havia muitos anos, que o seu compadre de Lisboa alguma coisa haveria de arranjar – recomendaria o rapaz para a GNR.

Foi assim que, daí a seis meses, depois de feita a preparação, o Mário Bento foi colocado, como guarda, no posto da GNR, da vila.

Na primeira patrulha que fez, passou pela sua aldeia, onde levantou vários autos – coisas comezinhas, como entulho deitado nos caminhos, caiação de casa sem licença, poço sem vedação e carroça mal arrumada, foram objecto da atenção do guarda Mário, que, passeando a sua farda nova, tomou a iniciativa de autuar o próprio pai, por uma transgressão de somenos importância.

O ti’Manel Bento, foi ao posto da GNR e ignorando a presença do filho quando por ele passou, dirigiu-se ao graduado de serviço – o sr. Cabo –, a quem apresentou a autuação e se prontificou a pagar a multa. Ao mesmo tempo tirou da algibeira das calças uma bolsita de trapos, onde guardava o dinheiro e, pegando nos vinte escudos, correspondentes à coima, entregou-os. Aceitou o recibo e saiu.

A coisa serenou: não havia que censurar o filho por cumprir o seu dever. Todavia, na cabeça do ti’ Manel continuava a interrogação sobre o que quereria o filho mostrar, com aquela atitude. Não encontrava resposta e custava-lhe mais conter-se, quando ouvia os comentários de vizinhos e amigos sobre o zelo do filho.

A mágoa no coração custou mais a passar; indo para lá do casamento do filho e baptizado dos netos, onde o ti’ Manel fingiu que não mais se lembrava da mágoa que sentiu, quando se viu autuado pelo seu próprio filho, no primeiro trabalho que fez na guarda.

Muitos anos depois, pelo Natal, o ti’ Manel chamou os seis filhos e, à volta do alguidar das filhós, de uma pratada de tremoços, uma bacia de azeitonas retalhadas, pão e queijo, regados com vinho da casa, todos comeram e beberam, à vontade.

Antes de partirem para suas casas, o velho pai puxou da mesma bolsita de pano que usara no posto da GNR, trinta e três anos antes, e tirando cinco notas de quinhentos escudos – quantia que nesse tempo correspondia a mais de dois meses de jornas –, deu uma a cada filho, menos ao Mário, ainda guarda da GNR.

Disse que queria deixar as coisas equilibradas; que aquelas notas não eram mais, nem menos, que os vinte mil réis que tinha pago de multa, trinta e três anos atrás, valorizados a um juro normal de dez por cento ao ano. Não havia mais nada a dizer e só queria acrescentar que já podia morrer descansado.

Cada um desapareceu para seu lado, rapidamente, só o Mário, junto do pai, o abraçou, sentidamente e em silêncio total. Não se sentiu injustiçado – recordou-se de qualquer coisa que lera, sobre a “pena de Talião”.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Don Pepe & Doña Maria

A festa de Alcaravela, que, em cada ano, tinha lugar num fim-de-semana de Agosto, era um dos pontos altos na vida da aldeia, sobretudo entre as gentes mais jovens.

De cariz, genuinamente, popular, tinha início no sábado, com os encontros entre familiares e amigos. Continuava, com uma forte "alvorada", de foguetes e morteiros, ao pôr-do-sol e, depois, à chegada do conjunto musical que, se revezava com o acordeonista, começava o baile.

No domingo, durante a manhã, percorriam-se as ruas, ao som da banda de Sardoal, fazendo o peditório, para a igreja. Seguia-se a missa, na igreja matriz de Santa Clara, apinhada de gente.

Terminada a procissão, que se seguia à missa, fazia-se o leilão das fogaças e comiam-se as merendas, para o que cada grupo de romeiros escolhia uma sombra.

Da Serra ia sempre uma grande comitiva: uns com destino à missa e procissão, outros para encontrar familiares e amigos, beberem uns copos e falarem de negócios. Os mais jovens esperavam, com impaciência, a animação e o baile, que durariam toda a noite.

Os rapazes compravam os bilhetes para as séries de três danças, tomavam lugar junto ao estrado e logo que se iniciava a música convidavam, por sinais, ou de viva voz, as raparigas que mais lhes interessavam.

Quando se notava insistência na escolha de um par, os outros afastavam-se, discretamente.

Nas mesas, à volta do "dancing", as mães, tias, mirones e raparigas não convidadas, nessa dança, seguiam, atentamente, tudo o que se passava e iam coscuvilhando.

Os homens bebiam cervejas e copos de vinho, enquanto conversavam com os amigos.

Alta madrugada, organizavam-se os grupos, de regresso às aldeias: os "moços soltos", os "casalinhos apalavrados" e os que aproveitavam a calada da noite para "pedidos de namoro".

Num dos regressos das festas de Alcaravela, um par de namorados – a Maria do Cimo da Eira e o Zé, da Tojeira –, afastaram-se do grupo, para irem à vontade.

No Vale das Onegas, os rapazes deram pela falta do “casalinho”, mas não ligaram ao assunto; a terra havia de dá-los. Porém, à chegada à Serra, não apareceram.

De manhã, espalhou-se a notícia na aldeia: a Maria do Cimo da Eira não voltara para casa.

Vieram, mais tarde, notícias da Tojeira que confirmavam a falta do Zé.

Ao fim de uma semana, o padrasto da rapariga comunicou na GNR o desaparecimento da enteada, que tinha sido vista, pela última vez, no regresso das festas de Alcaravela, na companhia do namorado, um rapaz da Tojeira, que também estava desaparecido.

Passaram anos sem sinais dos desaparecidos. Acabaram por cair no esquecimento.

Vinte e cinco anos depois, apareceu, na festa de Alcaravela, um casal de meia-idade, num imponente automóvel de matrícula estrangeira e sinais ostensivos de luxo: anéis, pulseiras, relógios, cordões, brincos e correntes de ouro.

Todos olhavam, deslumbrados e interrogavam-se: Quem serão? De onde virão? O que os traz até aqui?

Por entre a agitação e falatório, um irmão da Maria do Cimo da Eira olhou a estrangeira de frente e exclamou: Por onde tens andado, Maria?!... Afinal, és tu e estás viva!... Dá cá um abraço, mulher!...

Espalhou-se a notícia, juntou-se o povo e todos afirmavam ter já desconfiado que se tratava do Zé da Tojeira e da Maria do Cimo da Eira; os desaparecidos de há vinte e cinco anos.

Os forasteiros, entre beijos e abraços, explicaram que acabavam de chegar, da Argentina, onde estavam há mais de vinte e três anos. Lá, no outro lado do Mundo, Don Pepe & Doña Maria – como eram conhecidos –, tinham mais terra que toda a freguesia de Alcaravela, mais de três mil cabeças de gado e uma "finca" nos arredores de Córdoba, no centro do país.

Nunca tiveram filhos e resolveram vir agora a Portugal, agradecer a Santa Clara, de Alcaravela, e ao Senhor dos Aflitos, da Serra, que muito lhes valeram, nas horas mais difíceis.

Nos dois meses de férias, que repartiram entre as aldeias da sua naturalidade e diversos passeios pelo país, fizeram bem a muita gente.

Regressaram à Argentina sem falar no seu desaparecimento. Levaram dois sobrinhos que iriam preparar para lhes suceder na administração da firma de Import & Export, Pepe & Maria , S.A., nos arredores de Córdoba, na Argentina.

Antes de partir, deram meios e instruções ao irmão da Maria do Cimo da Eira para que mandasse construir uma imponente vivenda, na Serra, onde pensavam voltar para passar o resto dos seus dias.

Muitos anos mais tarde, foi encontrado, nas ruínas da casa, um caderno de duas linhas, com uma série impressionante de nomes de localidades, de diversos países, contas de transportes e até uma caixa, de lata, com um rolo de notas de dólares e pesos argentinos, que havia ali ficado por esquecimento.

Os apontamentos acabaram por desaparecer e as notas extraviaram-se, pois, um pedreiro, que trabalhava em Lisboa, levou-as para tentar cambiá-las no Banco de Portugal e não deu mais conta delas.

Exibiu um recibo, dizendo que se tratava de notas sem curso legal e já sem qualquer valor.

Ninguém mais se interessou pelo caso, não passando, hoje, de uma história que todos vão esquecendo.