domingo, 22 de dezembro de 2013

Conto de Natal


Edição especial NATAL - com votos de Boas Festas para todos 


Nos meados do séc. XX, começou a debandada das terras do interior para a cidade de Lisboa – normalmente o homem, ou homens da casa deixavam as mulheres a tratar as terras e a cuidar dos filhos e procuravam, na capital, um trabalho na construção civil ou um emprego na Carris, nos Telefones, nas Polícias ou nos Ministérios. Tudo dependia dos conhecimentos.

Nas tardes de domingo, quando não se faziam umas horas extraordinárias, juntavam-se aos magotes nas praças e jardins de Lisboa e arredores, grupos de trabalhadores de cada região. 

Depois da missa e do almoço convergiam em grupos para junto dos conhecidos, para saber notícias da Terra, para procurarem novos trabalhos, para conviver e até, muitas vezes, para vestir roupa lavada e fazer uma ou outra extravagância, no café e na taberna.

O Ti’Alberto Carpinteiro, trabalhava, como mestre de cofragens, nas obras dos prédios que, como cogumelos, cresciam, às dúzias, no meio das oliveiras do local onde viria a ser o futuro Bairro dos Olivais. Pernoitava na barraca da obra, onde, junto com os colegas, faziam as refeições. 

Aos domingos à tarde, saía em grupo, a corta mato, por Chelas e Areeiro até ao Campo Pequeno, para onde puxava a rapaziada da Carregueira, Aboboreira e Alcaravela. 

Estes grupos passaram, mais tarde, a organizar excursões que saíam de Lisboa, depois do trabalho de sábado e regressavam na noite de domingo. Dava para ir levar a roupa suja, trazer alguma coisa para comer e ver mulher e filhos.

O Ti’Alberto, carpinteiro de apelido e de profissão, não era homem de grandes jogatanas nem sociedades de copos. Andava por ali, vendo montras, tirando ideias e pensando na vida. Não puxava para grandes falas, mas não queria andar por fora das novidades e umas vezes ficava lá pelo Campo Pequeno, outras ia até ao Terreiro do Trigo, ao Jardim da Parada, ao Príncipe Real, ao Rossio, etc. 

Tinha muitos conhecimentos na arte e não eram raros os pedidos que recebia dos que procuravam trabalho, porque queriam mudar, porque tinham sido dispensados, ou porque acabavam de chegar da Terra.

Um domingo de Novembro, depois de estar a ver uma partida de sueca, numa mesa do Jardim da Parada, resolveu dar uma volta pelas redondezas para aquecer os pés e ver as montras. 

Em frente duma loja, pensou, de repente, em levar ao neto, uma coisa que nunca tinha tido: um brinquedo para pôr no sapato do Joãozito, na noite de Natal. Havia ali de tudo: bonecos articulados, piões, coisas para fazer barulho, camionetas de carga, de bombeiros, etc.. Andavam pelos dez escudos…Mas havia coisas muito bonitas e bem-feitas!..

Terá ficado ali a mirar a montra, mais de meia hora. Até que um colega se chegou a ele e perguntou: o amigo está a sentir-se bem? É que está aqui há tanto tempo, que já estávamos em cuidados!...

Nada, nada. São cá coisas minhas. Nunca tive brinquedos assim e lembrei-me que o meu netito, havia de gostar de ter uma camioneta daquelas… mas a loja está fechada e durante a semana não posso vir cá buscá-la…além de que nove mil réis é quase meio dia de trabalho!..

Ora, ora, Ti’Alberto, o dinheiro é para se gastar. Vir cá buscá-la é que custa quase outro tanto. Mas, sempre se ouviu dizer que o mestre é um grande artista na madeira… Com uma perna às costas, tire aí uns desenhos e faça uma coisa melhor que a que estamos a ver. Até o seu neto irá gostar mais se souber que o avô é que fez a camioneta de madeira. Pense nisso!...

Já nessa noite o Ti’Alberto teve dificuldade em adormecer. Madeira arranjava com facilidade. Ferramenta e tudo o resto, também. Habilidade, não havia nada como tentar e nas três semanas seguintes juntou tudo o que precisava, serrou, limou, lixou, furou e quando tinha tudo pronto pediu ajuda a um pintor e os dois acabaram a pintura e montagem da camioneta. Tinha marca, matrícula, volante e até uns pneus de borracha. 

Uma verdadeira obra-prima, disseram todos os que a viram. Até diziam que, se quisesse, podia ganhar dinheiro a fazer coisas daquelas, pois eram muito melhores que as das fábricas. Media a camioneta 40cm de comprimento pelo que não havia, lá pela obra, uma caixa para meter a peça. Até que um vendedor de ladrilhos lhe trouxe uma caixa de cartão, sem quaisquer nomes nem desenhos, para guardar o brinquedo. O último trabalho foi, pois, pintar e embrulhar a caixa. 

Mas, antes de fechar o embrulho, lembrou-se de dois pequenos chocolates que lhe tinham saído numa rifa e que ele guardava, ciosamente, para dar ao neto, como prenda de Natal. Embrulhou, cuidadosamente, os doces e colou-os na caixa de carga da camioneta. Era o primeiro transporte que ela fazia….

Nas últimas semanas antes do Natal, na viagem à Terra, conversou muito com o neto, levando a conversa para brinquedos, para camionetas, carrinhos…para ver quais as reacções do pequenito, ao tempo nos seus nove anitos. 

Soube que era muito bom aluno, lá na escola, que tinha escrito uma carta ao Menino Jesus a pedir que lembrasse o Pai Natal que não se esquecesse dele… Então e o que pediste de prenda, João?

O Ti’Alberto ficou atónito quando o neto lhe disse: uma camioneta grande, para poder levar e trazer mercadorias e poder ganhar dinheiro suficiente para o avô e o meu pai não precisarem de sair da Terra. Mas devem ser tantos os meninos a pedir assim coisas importantes que, certamente, como nos outros anos, só vou receber algumas meias, ou alguma coisa que precise para a escola. 

Ouvi dizer que uma camioneta como eu gostava custa muito dinheiro e também pensei se depois não era preciso tirar a carta antes de poder trabalhar com ela. Logo se vê, avô, mas olhe, se não for, paciência…

Dali em diante não sabia o Ti’Alberto qual dos “meninos” andava mais ansioso pela chegada do Natal: se o neto, se o avô!... Tinha dificuldade em adormecer, imaginava como devia ser a cena da chegada do embrulho ao sapato do neto, como havia de disfarçar os chocolates, se devia ou não pôr alguma marca, etc…

Até que chegou o dia da consoada e quando chegou a camioneta da excursão com os homens de Lisboa, um dos que os aguardavam era, nem mais nem menos que o João Carpinteiro. 

Agarrou-se ao avô e mirou-o, de alto a baixo, estranhando um saco, maior que o normal, que o avô trazia às costas. E dirigiam-se para casa, quando o Ti’Alberto disse: João, ali o Ti’Manel do Ribeiro tem estado doente e não pôde vir. Pediu-me que lhe trouxesse aqui umas coisas para a Tia Amélia. Vai andando para casa que eu vou por lá deixar o recado e já te apanho em casa. E separaram-se.

O Ti’Alberto foi a um palheiro esconder a encomenda e depois dirigiu-se para casa. 

Como quando chegou o volume do saco era mais pequeno e a mulher lhe perguntou se o compadre Manel estava melhor, tudo passou despercebido e ainda que agora mais ansioso que o próprio neto, foi até à taberna e depois de conversas de ocasião, meteu a mão ao bolso e vendo as horas, despediu-se, pois ainda tinha umas coisas que ultimar, porque no dia seguinte era dia de consoada. Estava inquieto…

Foi, por cima do telhado, até à chaminé. Tirou o novelo de guita do bolso e atou-lhe uma pedrita na ponta. Meteu o cordel por uma das aberturas e deixou cair até chegar à lareira. Fixou o cordel pelo lado de fora da chaminé e entrou em casa, dirigindo-se à lareira. Escondeu a ponta do cordel dentro da chaminé, por cima das varas dos enchidos e pronto, não se falou mais no assunto. 

Cearam, fizeram-se as filhós, e foram todos para a cama.

Nessa noite o Ti’Alberto não se conteve e, como se fosse ele que estivesse para receber um presente muito desejado que nunca tinha tido, contou à mulher todo o enredo da prenda que preparara para o Joãozito e do que tinha planeado para o dia seguinte:

Depois da ceia o João ia buscar uma das suas botas e punha-a, na lareira para que o Pai Natal, mandado pelo Menino Jesus, viesse trazer-lhe alguma prenda e ia para a cama. 

Algum tempo depois ele prendia a caixa que tinha no palheiro à ponta da guita e içava-a para dentro da chaminé de modo que não se visse de dentro da cozinha. Nessa altura a avó ia chamar o João, dizendo que estava à lareira mais o avô e ouviram uma restolhada na chaminé, pelo que o avô foi lá fora ver o que se passava. E ela também tinha ouvido qualquer coisa dentro da chaminé, pelo que deviam ir ver o que se passava.

A cena seguinte é indescritível: A caixa de cartão, descendo lentamente na direcção da bota e finalmente pousando sobre ela, depois o fio caindo e finalmente ouviu-se a voz do avô, gritando:

Ouça, senhor Pai Natal, venha cá, não fuja que não lhe quero fazer mal. Só queria que o meu neto lhe agradecesse e que dê um grande abraço ao Menino Jesus que o mandou. Adeus, Até para o ano….

E, ainda o João não tinha tido coragem para começar a abrir a caixa de cartão, já o avô chegava para contar o que se tinha passado. 

Mas, atalhou o neto: foram as nossas conversas avô. Eu comecei a acreditar que era possível e fiz muita força. E conseguimos avô!...

E abraçou-se aos avós e aos pais, entretanto também chegados, pois ouviram o avô aos gritos em cima do telhado e vieram ver o que se passava.

Patético!... O João não sabia por que ponta havia de começar. Quando abriu a caixa e viu a camioneta, nem queria tocar-lhe…iria sujá-la!... Seria verdadeira? Estava acordado? Seria aquilo um sonho? Depois deitou-se no chão da cozinha, olhou a camioneta de todos os ângulos, apalpou os pneus... verdadeiros! Torceu o volante…rodava!... Não, Não podia ser verdade… Até que adormeceu…

O Ti’Alberto apenas disse: recebi, hoje, com mais de cinquenta anos de vida, o melhor brinquedo da minha vida!...

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O TRUTA DO CÔA - Continuação

Capítulo II
O Côa é um rio de margens rochosas e alcantiladas, traiçoeiro, para quem não o conhece e respeita. Nos Invernos leva tudo o que encontra, num tropel de forças hercúleas que arrastam paus e pedras de muitas toneladas; nos Verões quase se extingue e deixa ao abandono parte da moldura verde, das margens, que aproveitou alguma nesga de terra para brotar.

Nascido na serra das Mesas, um dos contrafortes portugueses da serra espanhola da Gata, lá para os lados dos Fóios, tem uma infância feliz e calma, mesmo quando atravessa as abas da Malcata, até jusante da sua primeira grande referência – o Sabugal – que deixa na margem direita, dirigindo-se para norte, onde vai entregar-se ao soberbo Douro, depois de percorridos os seus cento e trinta e cinco quilómetros.

Recebe, na passagem, o contributo, por vezes generoso, de algumas ribeiras – de Alfaiates, de Adão, de Noemi, de Gaiteiros, das Cabras, de Massueimi – as duas primeiras na margem direita, o lado de Espanha, e as restantes na margem esquerda. 

Faz a delimitação das terras de Ribacôa, entregues, definitivamente, pelos Castelhanos, a Portugal e ao rei D. Dinis, no ano de 1297, com a assinatura do tratado de Alcanizes.

Durante o seu acidentado percurso, desce de uma altitude de 1.060 metros – na nascente –, até 180 metros – na confluência com o Douro –. 

Serviu de protecção natural a muitas vilas acasteladas, das suas imediações. Estão neste caso, para apenas referirmos algumas mais conservadas na actualidade, Castelo Mendo, Almeida e, menos próximas, Pinhel e Vila Nova de Foz Côa.

Habitado desde tempos imemoriais, o vale do Côa apresenta um vastíssimo e não menos rico espólio cultural de que um dos maiores conhecedores será personagem central desta obra, necessariamente ficcionada sobre o imaginário de gentes e legados daquelas terras.
No tempo dos Romanos, a região foi cobiçada pelas possibilidades de utilização de águas e explorações mineiras, mas os Cudanos e Transcudanos – como eram chamados os povos que por ali viviam –, sempre se mostraram pouco permeáveis e difíceis de dominar e, muito menos, domar, pelas legiões dos César e de outros invasores.

De uma agressividade telúrica, as margens do Côa, por alturas de Castelo Mendo, entre a ponte de caminho de ferro e a rodoviária ponte do Côa, nas imediações de Leomil, antes de Castelo Bom, quando se vai, pela velha estrada, da Guarda para Vilar Formoso e Espanha, eram o habitat do Jaime.
A água corre em goleiras, projectada de pedra em pedra, com vigor e força de corrente. Ali, entre pedras soltas e bulideiras, é o local ideal para as trutas que aos saltos de vários metros se projectam rio acima, no sentido contrário ao da corrente. São raros os açudes e represas, pois a sua necessidade e justificação não existem neste troço – não há veigas e lameiros nas margens, formadas, apenas, por barrocos, penedias e escarpas alcantiladas –. São bastas as zonas onde o único percurso possível é o leito do rio.

Os freixos e amieiros, os tufos de juncos e as touças de castanheiros, cresceram sob os olhares do Jaime, para quem aqueles quilómetros de rio serviram de berço e horizonte e são, além disso, ícones do seu culto pela Natureza, partes de um todo ao qual pertence, com o qual vive e respira, do qual se alimenta, física e mentalmente.

Povoam este cenário, fantasmagórico e feérico, diversas aldeias, inclinadas sobre o Côa e que milagrosamente se mantêm sobre as escarpas, vendo as poucas terras aráveis de que dispõem ser arrastadas lá para baixo, indo jazer e alimentar os lameiros das margens do rio. Essas terras ribeirinhas são bastante férteis, pois a essência, maioritariamente arenosa, que as compõe, é rica em detritos, estrume, húmus e dejectos, arrastados pelas águas.

Gentes e animais vivem ali desde a mais remota antiguidade; sobrevivendo no limite das leis da natureza e a sua subsistência vai além, muitas vezes, da destreza humana e animal. São, porém, muito raros os casos de acidentes ocorridos em tão inóspitos cenários. Descer do cimo dos morros até ao rio exige arte e equilíbrio, por veredas ou caminhos usados por carros e animais, onde não há qualquer margem para desvios, distracções ou erros.

Todos aqueles percursos eram familiares ao Jaime que, sem distinguir noite e dia, se movimentava pelos trilhos usados por pastores e feras, conhecendo pelo toque a solidez duma pedra dura, ou a consistência de um carreiro arenoso. Por vezes, descalçava as botas e pendurava-as ao pescoço, aumentando a sensibilidade dos pés, na determinação da dureza, secura, vegetação e temperatura do que ia pisando. Todas essas componentes eram determinantes para definir os trilhos que o levariam a este ou aquele patamar e às grutas onde se acolhia, onde habitava e onde guardava os seus pertences: roupas, vitualhas, livros, lenha e outros combustíveis. Dois ou três desses locais privados do Jaime eram verdadeiras casas fortes, protegidas por sistemas de defesa e detecção de intrusos, altamente eficazes.

A par destes santuários, onde guardava os haveres e onde pernoitava em tempos de maior rigor meteorológico, o Jaime tinha, mas margens do Côa, entre as duas pontes, uma meia dúzia de locais de repouso e contemplação. Dali via a outra margem, os amieiros e freixos que cresceram sob os seus olhos, os pássaros que voaram, pela primeira vez, à sua frente, ainda que a centenas de metros e no local menos previsível.

Um dos seus observatórios, num ponto avançado, a uns quinhentos metros da muralha de Castelo Mendo, sobre os barrocos que faziam a guarda a norte de Paraizal e protegido a nor-noroeste pelas cercaduras da Misarela, dispunha mesmo de um instrumento óptico, baseado em lentes, tubos e espelhos, de construção rudimentar, com que olhava o céu e podia observar todos os movimentos de qualquer animal ou pessoa, na margem direita do rio, no seu leito e nos lugares mais expostos da própria margem em que estava.

Nunca conseguiu dotar o dispositivo de meios e capacidade de visão nocturna e lutava com dificuldades em dias de maior luminosidade.

Os locais que queria controlar, onde tinha guardados os seus haveres, estavam enquadrados por um sistema de espelhos reflectores, para ver e não ser visto, cujo principal objectivo consistia em ver o que se passava e também criar reflexos e luzes dissuasoras de qualquer humano, ou bicho, que se acercasse.

Tinha um sistema de enxames nas entradas de alguns locais e podia provocar a fúria das abelhas, por mecanismos e armadilhas que qualquer intruso accionava, inadvertidamente, quando se aproximasse.

Pescadores e caçadores furtivos, viandantes duvidosos, casalinhos amorosos, vítimas de estupros e violências diversas, assaltos e tantos outros cenários, próprios e impróprios do ser humano, estiveram sob a observação do Jaime.

Lutas entre animais, artes de pesca e caça, sementeiras, bens legais e ilegais escondidos, cargas de contrabando e patrulhas de guardas, assaltos e bandos de malfeitores, foram seguidos pelo Jaime, durante horas.

Mas a natureza era o motivo da maior parte das observações e ocupações do Jaime: via brotar nas fontes a água que bebia, lavava-se sempre com água na mesma temperatura, comia frutos acabados de colher, seguia as tarefas dos animais, desde a formiguita ao predador, descia às aldeias para ganhar alguma coisa, para arranjar algo que comer, para aceitar um prato de sopa ou um naco de pão. Trabalhava nas suas artes e não enjeitava qualquer ajuda que lhe pedissem, recebendo fraca paga – preferia os créditos às dívidas, como dizia –. Nos trabalhos da ponte, lá ao horizonte do Paraizal, acompanhou o movimento anormal de homens e equipamentos. Foi lá que conseguiu recolher uns binóculos, esquecidos no chão, e um aparelho com manual de instruções, que leu cuidadosamente e permitia calcular a distância até aos objectos que focava. Nunca conseguiu, porém, saber a que distância estava da Freineda, ou quantos metros distava a nova ponte do seu local de observação. Também nunca chegou a saber o estado do tal telémetro.

Depois das máquinas cavarem num e no outro lado do rio, foi estendida a linha de comboio até às proximidades das duas margens e começaram a chegar os milhares de blocos de pedra, cortados nas pedreiras, desde o Rochoso, no lado da Guarda e para lá de Freineda, no lado da fronteira.

Apesar de não ser pedreiro, canteiro ou carpinteiro, o Jaime conseguiu arranjar trabalho nas obras da nova ponte, chegou a capataz e manteve-se ali durante quase dois anos. Acumulou um razoável pé-de-meia e arrendou uma casita, no Paraizal – a sua eleita entre as aldeias das margens do Côa –.
No final da obra, o Jaime assistiu à passagem do primeiro comboio sobre a nova ponte, rumo a Espanha e, a partir de então, todos os dias a nova passagem ferroviária era atravessada, nos dois sentidos, por vários comboios, carregados de passageiros e mercadorias. O Jaime tinha, assim, nova vida no seu cenário habitual; havia comboios e gente, onde antes só o mais atrevido dos animais quebrava a quietude da paisagem agreste e pedregosa.

A passagem pelos trabalhos da ponte e a vida gregária que partilhou com os companheiros, nas malhadas, nas refeições, nas tarefas de grupo, nas escalas de trabalho, na conjugação de esforços e na orientação de grupos, começaram a desenvolver no Jaime um sentimento de solidão, a necessidade de arranjar uma companheira e a vontade de ter um filho a quem ensinaria as artes de viver nas margens do rio e os segredos do seu mundo, dos seus “deuses”, da sobrevivência e da sua felicidade. 

E tinha agora um meio de transporte para poder sair dali e voltar quando lhe apetecesse…
(Continua)

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O TRUTA DO CÔA

Capítulo I

Desde que naquele fim da tarde de quarta-feira – último dia da feira de Trancoso – deram pela falta da Rosa, não mais houve sossego entre os ciganos do arraial e, muito menos, no clã dos Mendes, a que a moçoila pertencia.

As respostas à pergunta “viste a minha Rosa?”, repetida até à exaustão, de barraca em barraca, por todo o campo da feira, não foram além de negativas redondas, do “não me lembro de a ter visto”, “ainda hoje não dei por ela”.

A mãe, que pai já não havia na família, mobilizou os três filhos mais novos, recorrendo aos impropérios que encontrou e ameaçando que os rachava se voltassem sem a irmã.

Os três rapazes, cada um por seu lado, revistaram todo o acampamento, mas da irmã, cigana na casa dos vinte e cinco anos, sempre próxima da família e com porte a que não havia nada a dizer, nem sinal – não era tida nem achada e nenhuma boca se abriu, quanto a tê-la visto sair do acampamento, ou do recinto da feira –.

Os mais chegados, vieram com os consolos do costume – “pode ter-se sentido mal e estará a dormir para qualquer lado”, “estará para aí, de derriço, com algum farsola”, “o que for, soará! … a terra há-de dá-la! …”

A ti’Amélia, pareceu mais sossegada, quando os filhos voltaram e garantiram que não faltava nenhum cigano no arraial; sozinha não iria longe e com alguém fora da sua raça não acreditava que fosse a algum lado.

Porém, ao aperceber-se que faltavam algumas roupitas da cachopa, entrou em transe; ao conferir que também uns dinheirinhos que a Rosa tinha de seus, não estavam no esconderijo, quase explodiu; e quando confirmou que algumas das poucas peças de ouro, da família, não estavam na trouxa, inquietou-se ainda mais e lançou o pânico pelo arraial cigano de Trancoso. Fez constar que a Rosa se tinha ido embora e levado arranjo.

Nas feiras seguintes – Sernancelhe, Meda, Pinhel, Celorico, Moimenta, Lapa e Aguiar da Beira – ainda se falou bastante do desaparecimento da Rosa cigana, mas, com o passar dos meses e como ficou certo que nada de grave sucedera, uma vez que nada de anormal foi referido, o caso acabou por ser esquecido.

Só a mãe nunca se conformou e manteve sempre a esperança de voltar a ver a filha e talvez poder retribuir-lhe todo o desgosto que não esquecera e não perdoara nunca à rapariga.

Chegaram, ao longo dos anos, muitos boatos, muitas notícias não confirmadas e até muitos falsos alarmes e pistas, anunciando a presença da Rosa, na companhia de alguém, na próxima feira, de aqui ou acolá.

Porém, a ti’Amélia acabou por morrer sem voltar a ver a filha, ou dela ter notícias concretas.

Acrescente-se, apenas para sossego do leitor, que mãe e filha se cruzaram algumas vezes, nas estradas e andaram por perto, embora sem nunca se terem encontrado; melhor dizendo, a Rosa nunca se tenha dado a conhecer.

A Rosa, que não mais usou o apelido Mendes e deixou de vestir os trajes ciganos, viveu sempre perto do local do seu desaparecimento – Trancoso –.

Nas terras da alta Beira e ao longo de toda a fronteira, a vida era muito difícil naqueles primórdios do século passado; o dinheiro escasseava, embora, por vezes, as arcas e os celeiros estivessem atulhados de centeio e batatas e a castanha, em anos de boa novidade, ajudasse também a cobrir as necessidades alimentares básicas, de homens e animais.

Escasseava o trabalho: as minas, por um lado, e uma ou outra obra pública nas estradas e nos caminhos-de-ferro, por outro, não chegavam para ocupar toda a força de trabalho disponível na região.

A pastorícia e o arroteio das terras, a par das escapadelas aos trabalhos agrícolas de Castela, ou das ocupações ligadas ao contrabando e à candonga de produtos de e para Espanha, mal chegavam para matar a fome da família e comprar alguma coisa para vestir.

Era nestes ambientes de penúria que decorriam as feiras nos concelhos e comarcas, onde o refúgio nas tabernas e uns negociozitos de bestas e bois, a par da venda de castanhas, batatas e centeio, movimentavam muitas gentes, nomeadamente de raça cigana, que quase detinham o exclusivo das bestas, muares e cavalares, sem esquecer os burros.

Havia ainda as barracas de capotes e samarras, com pele de raposa, na gola, safões e outros agasalhos, que, naquelas terras, bem justificados eram, pois o frio e a neve caíam, impiedosamente, no princípio de cada Outono, cheios de rigor, qual castigo para os mais pobres e sem abrigo.

O Jaime, nos seus trinta e poucos anos, mexia, melhor que ninguém, o “junco”, ou a naifa de ponta e mola, que comprara perto de Cidade Rodrigo.

Nunca se separava da “fusca” que, por mais de uma vez, já tivera de exibir, embora sem nunca ter dado um tiro. Adquirira-a, um belo dia, a uns ciganos amigos e apesar de já ter ouvido bom dinheiro por ela, não era sua intenção separar-se dela, enquanto vivesse.

Vivia, de terra em terra, desde a margem do Douro, até ao termo do Sabugal e recantos da Malcata, por todo o vale do Côa. Fazia biscates da sua arte, como dizia, e não rejeitava um ou outro negócio de besta, ou burrito. Nunca se lhe conheceu companheira, embora caminhasse para os quarenta.

Batia toda a raia e ia até aos contrafortes da Marofa, onde, segundo constava, teria nascido, de mãe cigana e pai espanhol, que bem cedo o entregaram aos cuidados de um morgado da zona de Almeida.

Aí, nas terras de D. Mendo, aprendeu a arte de pastorícia, da tosquia, de que viria a ser um verdadeiro artista, e sabia ferrar uma besta. 

Antes da idade das sortes, agradeceu ao seu senhor e fez-se à vida, errante e nómada, de caldeireiro, tosquiador e ferreiro, percorrendo todo o vale que considerava a sua casa e que conhecia melhor que ninguém. 

Sempre que lhe calhava visitava o maioral de D. Mendo e, às vezes, ficava uns dias a ajudar, mas o seu espírito errava constantemente e não aceitava prisões, ou quaisquer constrangimentos de disciplina.

Não se entende, pois, muito bem, que tenha aguentado quase cinco anos na marinha mercante, embarcado num petroleiro, a bordo do qual percorreu uma boa parte do mundo e, na condição de servente-ajudante do oficial de máquinas e manutenção do navio, aprendesse tantas coisas e técnicas que tanto influenciaram a sua vida e vivência no vale do Côa.

Provavelmente aguentou todo aquele tempo, porque queria saber coisas que noutras circunstâncias nunca teria sequer imaginado. Para ele era como se estivesse internado numa qualquer escola superior.

Segundo o comandante Santos, o Jaime era um rapaz muito interessado e muito estudioso. Tinha muitas qualidades a nível intelectual e, se tivesse estudado, teria sido um brilhante engenheiro de máquinas e manutenção, mecânico, ou especialista de materiais e equipamentos.

A bordo leu tudo o que apanhou a jeito e bebeu, com extraordinária avidez, tudo o que lhe foi ensinado pelos camaradas da tripulação, pelos oficiais e, particularmente, pelo seu chefe, de quem sempre foi pupilo dilecto.

Aprendeu, além das artes de mareante, Física e Geografia. Interessava-se, particularmente, por medidas, grandezas e instrumentos; materiais, especialmente metais e equipamentos electromagnéticos; técnicas de chaparia, caldeiraria, soldadura, rebitagem e tratamento e manutenção; as comunicações e instrumentos de marear, foram-lhe explicados pelo seu chefe e a técnica de atracagem, lançamento e amarração de cabos, verificação de forças e tensões, bem como as técnicas de emergência e primeiros socorros, foram estudadas e perfeitamente assimiladas pelo tripulante.

Conseguia localizar outras embarcações que navegavam à vista e aprendeu a determinar as coordenadas, distâncias, velocidade de deslocação e rumo seguido. Parecia que tinha nascido para o mar, gracejava o oficial de máquinas.

Orientava-se tão bem de dia como de noite, nunca perdia o “norte” e detectava, imediatamente, qualquer batida anormal das máquinas.

Nunca adoeceu e era particularmente resistente a enjoos e males de mar, mesmo nas condições mais agressivas, caso das passagens pelo Cabo, ou por alturas da Gasconha, rumo a Roterdão. A única vez que se sentiu meio tonto, cruzava o Estreito de Magalhães, rumo ao Chile. Numa palavra gostava de mar e sentia-se muito bem na solidão dos oceanos e, dias e dias, na companhia e convivência de uma pequena comunidade.

O comandante Santos, velho lobo-do-mar, tirou-lhe as medidas e convidou-o para se inscrever na escola e vir a ser alguém na marinha mercante. Porém a resposta do Jaime foi elucidativa: 

Agradeço ao Senhor Comandante, aos Senhores Oficiais e a todos os tripulantes presentes e aos que foram passando; porém a minha vida não há-de acabar aqui e o que queria aprender já vai chegando ao fim. Na próxima vez que atracarmos em Lisboa, deixo o seu navio e faço-me à vida. Nunca esquecerei, nem lamentarei o tempo que aqui passei, mas também não voltarei a falar destes tempos… É melhor assim!...

O Comandante comentou a atitude do tripulante que, ao jantar, foi gabado por todos os oficiais e, mandou que se apressasse a lembrança que queria que fosse oferecida ao Jaime quando ele deixasse o navio – um conjunto de livros, sobretudo de Física e Geografia, que há muito vinha a ser adquirido, por sugestão do oficial de máquinas e com a completa concordância e a expensas do Comandante. 

Segundo um manuscrito encontrado, mais tarde, pelo Jaime dentro de um dos livros, foram as seguintes as palavras do comandante, ao jantar:

O Jaime é o que se conhece. Uma força da natureza, que ama como sua mãe, acima de tudo. É cioso da sua liberdade, se bem que nunca tenha posta em causa a ordem e a disciplina a bordo. Não é ave para ficar sempre no ninho. Quer fazer experiências, voar, conhecer, experimentar, viver.

Vai partir, não sem antes estar já a deixar saudades; pela forma como sempre se portou a bordo, particularmente nos momentos mais difíceis. Será capaz de viver em qualquer lado, em qualquer ambiente, por mais hostil que seja.

Vai levar a prenda que mais deseja na vida: estamos a preparar-lhe uns trinta ou quarenta livros de Física e Geografia, entre outros. Não vamos fazer cerimónia na sua despedida – não seria do seu agrado –, porém todos ficam como testemunhas que vai sair desde navio um dos homens que mais me impressionaram durante a minha já longa carreira.

Mas, voltemos ao Côa. Ali, junto do seu “deus”, passava o seu tempo. Não dava pelo passar dos dias e qualquer gruta, ou abrigo, lhe dava melhor sono que a malhada do morgadio, ou o celeiro do solar. 

Conhecia as golas, os vaus, os pegos, as solapas e as alpoldras de todo o rio. Acompanhava as trutas que, aos saltos, subiam a corrente e apenas pescava quando a fome o obrigava.

Acamaradava com os pescadores e vivia quer com os contrabandistas, quer com os carabineiros, quer com os nossos republicanos. Comia com os pastores, de quem conhecia a maior parte dos cães e orgulhava-se de dizer que respeitava e era respeitado pelos lobos. Numa palavra, nunca constou que tivesse feito mal a alguém, ou que alguém o tivesse molestado.

Havia, todavia, uma relação que merece ser mais aprofundada: a sua maneira de “estar bem com gregos, troianos e ciganos”, de que se orgulhava.

Por mais de uma vez foi tentado pelas polícias de Espanha e de Portugal, quer para servir de guia, quer para ajudar a capturar contrabandistas. Sempre se manteve neutro, salvo nas ocasiões, aliás raras, em que andava mais necessitado e aceitava, levar e trazer, umas cargas de contrabando. Nesses casos, é claro, até actuava como guia de contrabandistas e, orgulhava-se de nunca ter deixado apanhar qualquer elemento dos seus grupos.

Homem de poucas conversas e bom vinho, isolava-se, nas malhadas, ou andava só, pelos caminhos, de terra em terra, e, sempre que podia, junto “da sua Côa”, como sempre dizia. De preferência andava durante o dia e passava horas deitado nos lameiros, junto dos açudes, durante as horas de calma, ou pela noite dentro. No Inverno era um autêntico homem das cavernas, onde não tinha frio nem fome – atempadamente guardava lenha e víveres –.

Nunca se lhe ouviram referências à sua passagem pela marinha mercante. Durante os anos que andou embarcado, nunca recebeu, nem enviou correio e, nos seus pertences não tinha nada que o ligasse a terra. Pouco dinheiro gastou, nas raras saídas a terra.
Desse tempo, ficaram os livros que eram, religiosamente guardados e bastas vezes consultados.

Trigueirão, de cabelos muito pretos, olhos grandes e avantajado de estatura. Tinha uma força hercúlea e, dada a vida que levava, era muita ágil de movimentos e tinha sentidos muito apurados – via muitíssimo bem, ouvia o mais pequeno ruído e distinguia os sons de todos os animais, com quem convivia –. Tinha um olfacto apuradíssimo e seguia o rasto de qualquer animal, ou pessoa, até aos confins do mundo, se preciso fosse.

Falava bem português e castelhano e seguia, à risca, os dialectos. Durante os anos em que frequentou a escola, em Almeida, aprendeu muito bem o que lhe ensinaram e era mesmo dos melhores da aula; depois do exame da quarta classe cansou-se e disse que queria guardar gado e não estudar, como seria gosto de D. Mendo.

Dizia-se que nascera junto ao Côa e a mãe, de origem cigana o teria levado para Espanha e aí lhe fez o registo, já o ganapo teria à volta de seis meses. Mas, para as más-línguas, tinha também papéis portugueses, que o dariam como nascido no termo de Almeida, junto à fronteira. Esta conjectura, uma vez que ao certo não se saberá, livrou o Jaime nas “sortes”, para o serviço militar, em ambos os países.

Ninguém se metia com ele, nas festas e arraiais; mirava tudo e todos. De aspecto tímido e respeitador, aceitava um copo e uma bucha, que lhe oferecessem e agradecia, educadamente. Tinha os seus locais próprios de pernoita e não se misturava com os mendigos que andavam pela zona. Cuidava do seu próprio vestuário, que lavava regularmente; barbeava-se todas as semanas e, às vezes, assistia à missa, nas capelas dos povoados. Trazia, invariavelmente, nos seus parcos haveres, jornais e livros que lhe davam os que sabiam que gostava muito de ler e escrever.

Cosido com um barroco, camuflado num tufo de amieiros, ou encostado a um carvalho, não havia quem conseguisse lobrigá-lo. Surpreendia os próprios bichos e era bem recebido em todos os locais por onde passava.

Constava-se que, para os lados de Roque Amador, um lavrador de Rapoula do Côa, fora salvo da fúria das águas pelo Jaime, numa noite de Inverno, em que ambos vinham da Ruvina, depois de terem estado na feira de Alfaiates. 

Também se dizia que, numa tempestade, salvara do Côa três cabeças de gado que eram arrastadas pela torrente; o Jaime agarrou uma com a mão direita, outra com a mão esquerda e a terceira com os dentes.

Esta e outras histórias alimentavam o imaginário popular sobre a vida do Jaime; certamente, na maior parte das vezes, mais por imaginação e, quiçá, fantasia das gentes, que por qualquer acção, ou intervenção, do próprio.

Com passagens mais ou menos regulares, subia e descia o Côa, ganhando uns patacos quando não era por amor de Deus a paga do seu trabalho. Mas, suspeitava-se que tinha pé-de-meia, uma vez que não se via gastar os dinheiros que recebera, durante mais de vinte anos que vivera e biscateara por terras do Côa e da raia. E era muito solicitado para os trabalhos das suas artes.

De qualquer modo o Jaime era desprendido e desinteressado dos bens materiais; vivia com frugalidade, vestia o que lhe iam dando e o que tinha estava distribuído e guardado, discreta e recatadamente, em diversos locais que só ele conhecia.

Até que um dia…
(continua)

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Elogio do amor...


Nas oliveiras da tapada, atrás de nossa casa, havia grande quantidade de pintassilgos que ali faziam os ninhos, disputados pela garotada, que se considerava altamente recompensada cada vez que achava um.

Os pintassilgos eram os regulares ocupantes das gaiolas do Zézito, que nos seus treze anos, ali passava as férias.

Um dia, porém, o rapazito ficou impressionado e incomodado com o comportamento dessas aves.

Ao verem os filhotes nas gaiolas, alimentavam-nos, nos primeiros tempos, estudando-lhes o desenvolvimento motor, a capacidade de se alimentar, o tamanho e cor das penas, para definirem a sua iniciação no voo.

Porém, ao verificarem que os filhos, já na altura de voarem, não os acompanhavam, por estarem presos, entravam em trinados esquisitos, mais agudos e rápidos e menos harmoniosos – semelhantes a choro – e, uns dias depois, procuravam gramíneas venenosas e davam-nas aos filhos, libertando-os, pela morte.

Este episódio, que o garoto de então não mais esqueceu, levou-o a não mais usar as gaiolas e guardou aquele exemplo, pela vida fora, como verdadeiro hino à liberdade.

Um verdadeiro elogio do amor…

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Don Pepe & Doña Maria

Igreja de Santa Clara - Alcaravela 
A festa de Alcaravela, que, em cada ano, tinha lugar num fim-de-semana de Agosto, era um dos pontos altos na vida da aldeia, sobretudo entre os mais jovens, que ali começavam, ou continuavam, os seus derriços.


De cariz, genuinamente, popular, tinha início no sábado, com os encontros entre familiares e amigos. Continuava, com uma forte "alvorada", de foguetes e morteiros, ao pôr-do-sol e, depois, à chegada do conjunto musical que, se revezava com o acordeonista, começava o baile.

No domingo, durante a manhã, percorriam-se as ruas, ao som da Filarmónica de Sardoal, fazendo o peditório, para a igreja. Seguia-se, a missa, na igreja matriz, de Santa Clara, apinhada de gente.

Terminada a procissão, que se seguia à missa, fazia-se o leilão das fogaças e comiam-se as merendas, levadas por cada grupo de romeiros.

Da Serra ia sempre uma grande comitiva: uns com destino à missa e procissão, outros para encontrar familiares e amigos, beberem uns copos e falarem de negócios. Os mais jovens esperavam, com impaciência, a animação e o baile.

Os rapazes compravam os bilhetes para as séries de três danças, tomavam lugar junto ao estrado e logo que se iniciava a música convidavam, por sinais, ou de viva voz, as raparigas que mais lhes interessavam. Quando se notava insistência na escolha de um par, os outros afastavam-se, discretamente.

Nas mesas, à volta do "dancing", as mães, tias, mirones e raparigas não convidadas, nessa dança, seguiam, atentamente, tudo o que se passava e iam coscuvilhando. Os homens bebiam cervejas e copos de vinho, enquanto conversavam com os amigos.

Alta madrugada, organizavam-se os grupos, de regresso às aldeias: os "moços soltos", os "casalinhos apalavrados" e os que aproveitavam a calada da noite para "pedidos de namoro".

Num dos regressos das festas de Alcaravela, um par de namorados – a Maria do Cimo da Eira e o Zé, da Tojeira –, afastaram-se do grupo, para irem à vontade. Queriam começar naquela noite uma fuga de vinte e cinco anos.

No Vale das Onegas, os rapazes deram pela falta do “casalinho”, mas não ligaram ao assunto; a terra havia de dá-los. À chegada à Serra, não apareceram.

De manhã, espalhou-se a notícia: a Maria do Cimo da Eira não voltara para casa. Vieram, mais tarde, notícias da Tojeira que confirmavam a falta do Zé. 

Ao fim de uma semana, o padrasto da rapariga comunicou na GNR o desaparecimento da enteada, que tinha sido vista, pela última vez, no regresso das festas de Alcaravela, na companhia do namorado, um rapaz da Tojeira, que também estava desaparecido. Passaram anos sem sinais dos desaparecidos. Acabaram por cair no esquecimento.

Vinte e cinco anos depois, apareceu, na festa de Alcaravela, um casal de meia-idade, num imponente automóvel de matrícula estrangeira e sinais ostensivos de luxo: anéis, pulseiras, relógios, cordões, brincos e correntes de ouro.

Todos olhavam, deslumbrados e interrogavam-se: Quem serão? De onde virão? O que os traz até aqui?

Por entre a agitação e falatório, um irmão da Maria do Cimo da Eira olhou a estrangeira de frente e exclamou: Por onde tens andado, Maria?!... Afinal, és tu e estás viva!... Dá cá um abraço, mulher!... 

Espalhou-se a notícia, juntou-se o povo e todos afirmavam ter já desconfiado que se tratava do Zé da Tojeira e da Maria do Cimo da Eira - os desaparecidos de há vinte e cinco anos. 

Os forasteiros, entre beijos e abraços, explicaram que acabavam de chegar, da Argentina, onde estavam há mais de vinte e três anos. Lá, no outro lado do Mundo, Don Pepe & Doña Maria – como eram conhecidos –, tinham mais terra que toda a freguesia de Alcaravela, mais de três mil cabeças de gado e uma "finca" nos arredores de Córdoba, no centro do país. Nunca tiveram filhos e resolveram vir agora a Portugal, agradecer a Santa Clara e ao Senhor dos Aflitos, da Serra, as ajudas nas horas difíceis.

Nos dois meses de férias, que repartiram entre as aldeias da sua naturalidade e diversos passeios pelo país, fizeram bem a muita gente. Regressaram à Argentina sem falar no seu desaparecimento. Levaram dois sobrinhos que iriam preparar para lhes suceder na administração da firma de Import & Export, Pepe & Maria , S.A., nos arredores de Córdoba, na Argentina.

Antes de partir, deram meios e instruções ao irmão da Maria do Cimo da Eira para que mandasse construir uma imponente vivenda, na Serra, onde pensavam voltar para passar o resto dos seus dias. 

Muitos anos mais tarde, foi encontrado, nas ruínas da casa, um caderno de duas linhas, com uma série impressionante de nomes de localidades, de diversos países, contas de transportes e até uma caixa, de lata, com um rolo de notas de dólares e pesos argentinos, que havia ali ficado por esquecimento.

Os apontamentos acabaram por desaparecer e as notas extraviaram-se, pois, um pedreiro, que trabalhava em Lisboa, levou-as para tentar cambiá-las no Banco de Portugal e não deu mais conta delas. Exibiu um recibo, dizendo que se tratava de notas sem curso legal e já sem qualquer valor.

Ninguém mais se interessou pelo caso, não passando, hoje, de uma história que todos vão esquecendo.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Zézito e os passaritos


Não havia na Terra, nem nas redondezas mais próximas, quem melhor pusesse o laço a um melro – por mais amarelo que tivesse o bico – ou melhor disfarçasse uma azeitona, na boíz, colocada no meio das estevas e para enganar o finório tordo.


Cosido com os cômoros das levadas, camuflado no meio de uma touça de moitas, ou disfarçado por uma carqueja, o Zézito observava, atentamente, como os pássaros se moviam, de onde vinham, para onde iam, quanto tempo demoravam no voo.

Sabia que um melro que saísse da sombra das parreiras da sua horta, tomaria, invariavelmente cinco destinos, consoante a altura e inclinação do levantar do voo, a posição do sol, a direcção dos ventos, a presença de pessoas nas hortas vizinhas, ou de outras aves na zona. 

A própria hora do dia interferia no voo dos pássaros. 

Sem que disso se apercebesse, passava horas a recolher e trabalhar toda esta informação. 

Distraía-se, muitas vezes, das leituras dos “clássicos” e, não raras vezes, se esquecia do livro que levara, de casa, para ler. 

Mas o gozo destes laços, que a Natureza lhe estendia, era superior a tudo o que as mais belas literaturas lhe poderiam ensinar.

Os cantares das aves têm timbres diferentes, exprimem estados de calma, chamam os filhos, avisam as outras aves do bando da presença de predadores, mas também reconhecem um amigo e convidam um dedicado admirador a ouvir uns trinados harmoniosos, ou uns acordes em nada inferiores aos das maiores obras musicais.

Na altura dos ninhos, sabia de todos os do seu raio de acção – da Ribeira, por alturas da ponte, à Renda, junto da azenha, passando o Lavadouro, Brejos e Vale das Lousas, até à Portela da Casinha –.
Mesmo os das carriças – os mais difíceis de localizar –, tão bem camuflados nas paredes da ribeira, ou no meio do musgo das árvores, não lhe escapavam. 

O passarito, que é o mais pequeno daqueles sítios – pesará entre os 8 e os 10 gramas –, solta, invariavelmente, um trinado prolongado e inconfundível, sempre que sai da porta da sua casa. 

Depois, é só procurar com paciência a abertura do ninho, ou aguardar o regresso do inquilino.

Muita confusão lhe causava o cuco que parecendo brincar, ia anunciando “cucu”...”cucu”... cantando, ora à direita, ora à esquerda; umas vezes no alto da Lomba, outras nos Brejinhos.

Havia que esperar, verificar se não seriam dois pássaros diferentes, um de cada lado da ribeira.

Este “passarão”, que além de grande, assim poderá ser classificado por ser pouco escrupuloso, deita fora dos ninhos os ovos que encontra, colocando em seu lugar os seus próprios ovos, transformando, assim, as bem intencionadas avezinhas em amas dos filhos alheios.

Na época dos taralhões, entre os meados de Agosto e de Outubro, o Zézito saía, ao romper do dia, com o molho das costelas e espalhava-as, de árvore em árvore, nos sítios mais frequentadas pela passarada que, daí a pouco, despertaria, com o sol. 

As maresias daqueles finais de Verão e começos de Outono, davam mais brilho aos primeiros raios do sol e faziam luzir as asas das formigas - agúdias – que atraíam os passaritos para as costelas, mal sabendo que seria o último bichito que já nem chegariam a comer.

Estariam, isso sim, na argola de arame, pendurados pelos biquitos, como troféus de caça, exibidos, com todo o orgulho, aos primeiros agricultores que começavam a chegar às hortas, para fazer as regas, ou apanhar as hortaliças.

Na sementeira do milho, pelos fins de Abril, depois de ceifado o ferrejo e levado para fora da horta, onde ia secar, para poder ser guardado no palheiro, fazia-se a lavoura da terra. 

Os torrões e as leivas, de barriga para cima, para arejar e curar as terras, permitiam a uma infinidade de pequenos vermes, formigas, ratitos e doninhas, apanharem um pouco de sol o que para muitos era o fim, acabando na moela das arvéolas, dos melros, das megengras e das toutinegras, além de muitos outros passaritos, atraídos, das redondezas, pelo cheiro de terra húmida, ou pelos avisos dos habitantes. 

Dava gosto ver aquela passarada a fazer pela vida.

Depois de dessorada a terra, gradava-se e fazia-se a sementeira do milho, por duas ou três pessoas; uma coveando, outra semeando e uma terceira tapando as covas e alisando a terra. 

Pela tarde, depois do jantar – a refeição do meio-dia tem este nome, nesta região – e respeitada a sesta, tudo ficava calmo. 

A terra semeada, tomava o aspecto de seca e um ou outro bago de milho, escapado na sementeira, brilhava ao sol e, visto pelas rolas, logo as atraía ao repasto.

Lá estava, novamente o Zézito, estudando-lhes os movimentos, vendo os trejeitos do voo, a direcção do arrulhar e a inclinação do sol. 

Depois espalhava pela horta uma meia dúzia de costelas grandes, onde aplicara um bago de milho furado, bem polido para brilhar ao sol.

Sentava-se, a alguma distância, debaixo da copa duma árvore, que, além da sombra, lhe servia de camuflagem, e esperava... agora sim, lendo mais algumas páginas do livro que levava, ou, olhando, indefinidamente, em redor, ouvindo o marulhar das águas na ribeira, ou saboreando simplesmente a calma e serenidade dos campos, agora que a azáfama dos trabalhos abrandara.

Pelo pôr-do-sol chegava a casa com uma ou duas rolas penduradas na argola de arame, onde pendurava os troféus de caça.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O “minhoto”



Tinha altura abaixo de mediana, cabelos muito pretos e fartos, ombros anormalmente largos e rosto comprido, de que sobressaía o nariz, muito afiado. 

Os olhos, muito negros e de expressão mais melancólica que triste, brilhavam por cima de uma barba negra e farta, mal cuidada e confundindo-se com a cabeleira. 

O mais notório, todavia, era o tamanho dos pés – grandes e largos, com sinais de há muito não conhecerem calçado e encardidos pela sujidade acumulada –.

Caminhava com passo curto e apressado e não se misturava com os outros pedintes. 

Vinha à aldeia todos os meses, visitando todas as casas como esmolante e, com algum laconismo, apelava à caridade alheia.

Terminada a volta, sentava-se na taberna e ia descarregando, da esmoleira para cima da balança, os nacos de pão, as batatas e cebolas, uma ou outra peça de fruta e uns pedaços de toucinho. 

O azeite era pago à parte e, se aparecia algum enchido, diferente de farinheira, era retirado do conjunto da venda.

O Ti Manel, taberneiro e merceeiro, pagava tudo ao mesmo preço: quase sem olhar para a balança, abria a gaveta do dinheiro e retirava duas ou três moedas, que dariam para duas ou três “metades” de vinho. 

E ia logo enchendo o copo que, ainda antes de ser lavado, havia de servir para a segunda e terceira doses. 

Aí pelas duas horas, havia sempre uma ou outra alma caridosa que vinha trazer a melhor esmola: uma malga de caldo quente. 

Depois disso “o minhoto” falava, ralhava consigo próprio, interrogava-se e acabava por cair em sonolência, até que, pouco depois do pôr-do-sol, se recolhia à “malhada”. 

No outro dia, ao romper do sol, já andava a dar a volta noutra aldeia.

Dizia-se, desta personagem enigmática, que tinha sido homem de letras, transtornado por algo, muitos anos antes. 

Teria à volta de sessenta anos – para mais – e, quando sóbrio, o que era raro, ainda acertava no que dizia e discorria, com os estudantes da terra, sobre Geografia, História e Ciências; deixava escapar conhecimentos de francês, espanhol e inglês, até que... 

Calava-se, de repente, quando se apercebia que estava a falar de mais.

Corriam mais de uma dúzia de histórias sobre a “biografia do minhoto”: que era casado e tinha filhos; que a mulher o tentara envenenar e expulsara de casa; que uma fraqueza das ideias o fizera “variar” e abandonar tudo; que era senhor de meios de fortuna, mas preferia a vida de ermitão e pedinte, etc.

A verdade, porém, é que ninguém ousava interpelá-lo, sobre a sua identidade ou vida. 

Se era apanhado pela guarda, fazia-se de parvo e apoucado e, ainda antes que conspurcasse e infestasse os calabouços, era posto em liberdade. 

Quando não reagia violentamente a uma ou outra pergunta, respondia: sou o minhoto, não tenho terra, nem família, nem sei mais nada a meu respeito... ponto final e acabou-se a conversa!...

Um dia, já com os copos, outro mendigo ameaçou-o de dizer tudo a respeito dele. 

Conheço-te, bem sabes, a ti e a tua família; não és do Minho...

Não disse mais nada, pois uma paulada bem assente, imobilizou e calou de vez o atrevido pedinte. 

Quanto ao minhoto, com o pau na mão e a tremer de medo, escapuliu-se, sem dizer ai nem ui. 

Presente ao cabo-de-ordens da aldeia, o minhoto, manso como um cordeiro, entregou o cajado e aguardou. 

Depois de passar o raspanete do costume, o ti Manel Mendes, mandou “o minhoto” em paz e avisou que não se metessem com ele, pois em mais de vinte ou trinta anos que passava pela aldeia, nunca provocara desacatos.

Daí em diante, todos os que tentassem, ou simplesmente ameaçassem, identificá-lo, eram avisados que não deveriam fazê-lo, uma vez que, a partir daí, tudo poderia acontecer-lhes... ponto final!....Não gostava que falassem da vida dele e tinha esse direito, acrescentava o cabo-de-ordens.

Correram os anos e “o minhoto” foi passando, tal como tantos outros mendigos, pela aldeia. 

Um dia, porém, chegou a notícia:

O “pobre”, a que sempre chamaram “o minhoto”, morreu, lá para os lados do Codes. O nome verdadeiro – José de Sousa – foi encontrado entre os trastes que guardava no sarrão das esmolas. 

Foi professor e viveu bem, numa aldeia dos contrafortes da Serra da Estrela. 

Esteve emigrado, na Europa e ganhou muito dinheiro na candonga e no volfrâmio. 

Foi atraiçoado pela mulher, conluiada com um sócio dele, acabando os dois por desaparecer, misteriosamente. 

Trabalhou nas minas da Panasqueira, tendo desaparecido após uma pequena derrocada numa das galerias. 

Não mais foi referenciado e, não se sabe bem porquê, não consta que tivesse sido procurado.

Serão dignos de crédito estes elementos referentes “ao minhoto”, ou continuarão a ser peças de uma existência obscura, que nunca conheceremos e que o próprio guardou, até ao fim dos seus dias?

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O Comendador “dos Prazeres”



O Zé da Ti’Prazeres, “Zé Talabim” para todos, era o maior cromo da aldeia e, vamos mais longe, até das redondezas. 

Homem de muitas vidas e poucas falas, tinha, ao que se supunha, percorrido “sete mundos” e “cortava” três línguas. 

Sempre só, pois família nunca teve para além da mãe – a Ti’Prazeres, que ainda na flor da idade foi levada pela pneumónica e o deixou só, ao cuidado duma prima -. 

O pai, ao que constava, ainda estaria vivo, mas talvez noutras vidas e, seguramente, noutras paragens.


Na escola nunca conseguiu fazer o exame do 2º grau; nas duas vezes que foi a exame, veio “Reprovado”, porque, no dizer dos colegas, embora muito bom em contas e problemas, dava mais erros que as palavras que escrevia. 

Ainda acompanhou, como moço, os ceifeiros que no Verão faziam as campanhas no Alentejo. 

Começou a aprender a arte de sapateiro, com um vizinho que achava que o rapazote tinha jeito. 

Mas o forte do Zé eram os ninhos, as pescarias na ribeira do Coadouro e a mão baixa a uma ou outra galinha, mais distraída, que acabava em patuscada, com gente de mais idade.

Aos catorze anos, acabados de fazer, chegou a casa da Ti’Amélia, e disparou, da porta: Oh! Ti’Amélia, o Talabim morreu; trate cá da casita e um dia, que não sei quando chegará, o senhor José há-de voltar e pagar-lhe os favores que me tem feito e as côdeas de pão que me tem dado. Adeus!...

E quando ela se assomou ao portal, já ele tinha desaparecido.

Soube, depois, que, de corpinho-bem-feito, apanhou a camioneta dos Claras, para Abrantes, e não deu palavra a ninguém que com ele embarcou.

Nos primeiros tempos ainda acamaradou com pessoas da Terra, empregadas nas obras, ou noutros serviços, lá em Lisboa. 

Depois, foi visto a rondar o cais onde os navios carregavam e descarregavam. Até que desapareceu…

E durante vinte e cinco anos, ninguém mais deu por ele. 

Acabou, praticamente, esquecido, uma vez que poucos laços deixou na Terra.

Até que, num domingo de Agosto, apareceu à porta do quintalito da Ti’Amélia, batendo as palmas e chamando em alta voz.
Ao ser reconhecido, entrou e foi logo mandado sentar para comer qualquer coisa do pouco que havia. 

Mas inverteram-se os papéis e foi o sr. José que acenou a um homem que ficara junto da entrada, ao lado do automóvel em que se transportavam, para que trouxesse a encomenda. 

E, entregando um embrulho à Ti’Amélia, despediu-se, na companhia do outro homem, para entrarem os dois no automóvel e desaparecerem.

A Ti’Amélia abriu o embrulho e foi olhando cada vez mais admirada: um bonito xaile de merino preto, um lenço para a cabeça, igualmente preto e fino, um fato saia e casaco e um par de sapatos, finos, de pele macia e elegantes. 

No cimo de tudo uma carta aberta, com uma folha escrita e uma nota cujo valor a Ti’Amélia não sabia, pois nunca tinha visto outra igual.

A Ti’Amélia, analfabeta, foi à loja pedir à rapariga do Manel se fazia o favor de lhe ler uma carta que ali trazia e alguém lhe tinha acabado de deixar. 

E mostrou, às escondidas, a nota que tirou do bolso, perguntando quanto valia. 

Ia-lhe dando uma coisa quando soube que valia muito dinheiro – mil mil réis, ou seja um conto de réis -. 

O suficiente para comprar uma pequena hortita.

Foi então que estendeu a folha manuscrita, em papel timbrado e com um cabeçalho que dizia; Comendador “dos Prazeres”- Av. Bandeirantes, 1764 – S. PAULO – BRASIL. 

Leu a Cremilda: Querida Ti’Amélia, desculpe não ter ficado mais uns tempinhos para conversar consigo, mas tenho negócios a tratar em Lisboa e só daqui a uma ou duas semanas conto passar por aí com mais vagar. 

Espero que goste da pequena lembrança que lhe levei e saiba que tive muito prazer em vê-la ainda rija e com saúde. 

Até breve. Do José.

Em Lisboa foi-se fazendo encontrado com alguns dos homens da Terra que por lá trabalhavam e puxavam para uma taberna ali ao Campo Pequeno, nas tardes de domingo. 

Lá jogavam as cartas, o burro ou as damas; aproveitando todos os pretextos para petiscar e beber uns copos. 

Também era ali que se punha a escrita em dia, quanto a novidades da Terra. Pelo que tocava a homens, já que as mulheres tinham as Praças ou a missa para conversarem.

E não tardou que viesse à baila o aparecimento do José Talabim que os mais velhos conheceram até que um dia desapareceu, sem deixar rasto. 

Devia ter sido há perto de vinte e cinco anos, dizia o Ti’Nunes, lembrando que fora nos tempos que esteve hospitalizado, quando teve o acidente no trabalho.

Bem cuidado e bem vestido, traçava o colete, de fantasia, com uma grossa corrente de ouro, que prendia um relógio, igualmente de ouro. 

Nos dedos exibia dois anéis que assentavam bem em mãos pouco calejadas. 

Transportava-se num grande automóvel marca Pontiac, com antena de telefonia e bancos de pele preta. 

Dentro da mala, a que chamava “baque”, trazia vários embrulhos e três ou quatro malas de couro. 

Apesar de ser ele que, normalmente, guiava o automóvel, andava sempre acompanhado por um indivíduo mais novo, fardado e segurando uma pasta, que nunca largava.

O homem trata o José por senhor Comendador e não dá um passo sem ser mandado, ou sem pedir licença. Só larga a pasta preta para ir arrumar o carro, ou para ir fazer qualquer recado ao patrão. 

Que o nosso Zé parece ser o patrão dele. 

Foi assim que o Ti’Manel Mendes, um dos mais veteranos lisboetas lá da Terra, contou, no café da Serra da Luz, a quem o quis ouvir, o seu encontro com o José “Talabim”, que ninguém mais devia tratar como tal, mas antes dobrar a língua, como o motorista que o acompanhava, chamando-lhe sr. Comendador. 

E assim se passou palavra e rapidamente se generalizou o nome do Sr Comendador e não mais se falou no José Prazeres, ou “Talabim”. 

É claro que a ida à aldeia, os encontros lá na taberna do Campo Pequeno e noutros locais ali para os lados do Saldanha, começaram a correr de boca em boca e logo uns louvaram outros criticaram as atitudes do senhor José, como a Ti’Amélia, por um lado e o Ti’Manel Mendes, por outro, recomendaram que todos lhe chamassem, acrescentando este último, Comendador. 

Soube-se, por intermédio de um rapaz que trabalhava no hotel em que estava hospedado o senhor Comendador, que voltara do estrangeiro, que estava num quarto de hotel perto do Saldanha e andava sempre com um motorista a que chamava secretário. 

Pediu um cofre lá no hotel e falava-se que estava montado no dinheiro. 

Registou-se como José dos Prazeres, português com passaporte do Congo Belga, com 40 anos de idade, residente em Leopoldovile, Comendador e estava no País a tratar de negócios. 

Era proveniente do Brasil – S. Paulo e combinou com o hotel um mês de permanência, com pequeno almoço.

Fazia visitas diárias ao Banco Nacional Ultramarino, mesmo ao lado do hotel e às vezes vinham dois senhores do Banco fazer reuniões com ele a uma sala reservada lá no hotel. 

Mudava todos os dias de fato e roupa de dentro e todos os dias era mandada roupa sua para a lavandaria.

Como se pode ver pela descrição do rapaz que trabalhava lá no hotel era uma figura que dava nas vistas e que despertava a atenção. 

Até porque gratificava, com generosidade, quando pedia algum serviço a alguém.

O Ti’Nunes, que aparecia lá pela tasca do Campo Pequeno, tinha sofrido um acidente nas obras em que trabalhava como carpinteiro.

Um esmagamento entre pranchas de uma cofragem inutilizou-lhe o antebraço que acabou por ser amputado, ao nível do cotovelo. 

Nos últimos vinte anos aprendeu muito no que se refere a dirigir os trabalhos na obra, a verificar o rigor das obras em conformidade com as plantas e sabia ler e interpretar os desenhos. 

Conhecia de materiais, propriedades e variações de estruturas e em soalhos, ladrilhos e estuques, nem os mestres o ensinavam. E, quanto a medidas e cálculos, quase dispensava metros e fitas.

Tinha, também, algum treino e experiência de vendas de prédios, pois já tinha acompanhado esses trabalhos em vários prédios construídos e vendidos pela empresa onde, apesar de deficiente, nunca deixou de trabalhar.

Num encontro com o Ti´Nunes, o senhor Comendador ouviu atentamente um resumo da vida deste homem e depois, através dos serviços do ajudante e dos serviços de um advogado – o dr. Júlio Gonçalves – com quem estabeleceu avença, elaborou o perfil completo daquele auto-didacta, acabando por concluir que precisava dos seus serviços. 

Porém, havia que esconder o jogo e fazer experiências, pois estavam muitos valores em jogo.

E ainda antes de deixar Lisboa, quis o Comendador fazer umas aplicações de dinheiros. 

Acabou por concluir que o mais apropriado era a compra de casas ou andares de rendimento. 

Informou-se com várias empresas, ouviu alguns conselhos e decidiu-se a ir às falas com o Ti´Nunes, chamando-o, um dia, lá ao hotel onde estava hospedado.

Obrigado por ter vindo, Ti’Nunes. Eu antes de partir para o Congo, vou passar pelo Brasil e Moçambique. Por lá vou precisar de tomar algumas medidas que dependem de uns investimentos que tenciono fazer cá em Lisboa. Acho que vou negociar na área da construção civil. Como não sei nada disso preciso de quem saiba. 

Quer trabalhar comigo, ou para mim, se assim quiser? Está disponível para começar, ou tem compromissos com alguém? Não preciso do seu dinheiro, nem do de ninguém, graças a Deus; o que procuro é ajuda, conselho, opinião e serviços de quem saiba de construção e conheça o negócio da construção. 

Que me diz, Ti’Nunes?

Bem, eu sempre trabalhei para o meu patrão e mesmo depois do acidente sempre lá tive trabalho. Tenho a pensão do seguro correspondente ao grau de invalidez que me foi atribuído e o meu patrão continua a pagar-me como se eu não recebesse nada do seguro. E são já trinta anos…

É louvável a sua posição e nos tempos que correm não são muitos os patrões que tratam os trabalhadores como o Ti’Nunes é tratado.

Mas, ao fim de todo esse tempo, o que tem de seu? E acha que lhe fazem algum favor em pagar-lhe como se não fosse deficiente? Acha que a sua incapacidade diminui alguma coisa do seu rendimento no trabalho que faz? 

Pois eu entendo que o Ti’Nunes com uma mão é muito mais válido que a maior parte dos seus colegas com as duas e é por isso que lhe proponho, de imediato, o dobro daquilo que ganha. 

E, para já, numa primeira fase, com muito menos trabalho.

Relativamente, entenda-se; pois eu não o quero para trabalhos físicos, quero-o para aconselhar negócios, dirigir trabalhos, inspeccionar obras e construções. 

Até pode ser que estejamos dois ou três anos sem construir. E até pode ir passar uns meses ao Brasil, ao Congo, a Moçambique…

Tenho lá muitas coisas onde os seus conselhos me poderiam ser muito proveitosos.

Pense bem nisto tudo. Quero ver se nos próximos dez anos invisto uns centos de milhares de contos. 

Para já tem aqui o Alberto que além de meu motorista o ajudará em tudo o que precisar. 

O sr. dr. Júlio Gonçalves é o meu advogado e estará disponível para qualquer ajuda e, na minha ausência providenciará para que disponha de tudo o que precisar para desempenhar as acções que combinarmos – compra, venda, construção, licenciamentos, etc. -

Quero dizer que em tudo o que se refira aos negócios onde estivermos empenhados, o Ti’Nunes será o meu conselheiro. 

Um carro apropriado às vossas deslocações – suas, do Alberto e de mais alguém que venha a ter a empresa que criarei – será em breve adquirido. 

Para os meus colaboradores mais próximos costumo estabelecer prémios anuais e posso dizer-lhe que no último ano distribuí mais de cinco mil contos de prémios. 

É claro que tenho centenas de pessoas a trabalhar nas minhas empresas, desde o Congo Belga, a Moçambique e ao Brasil. E espero que, brevemente, aqui em Portugal.

Na próxima semana vou ausentar-me, mas na segunda-feira seguinte, primeiro de Setembro, estarei de volta ao hotel e espero por si, com notícias frescas sobre o que acabei de lhe dizer. 

Até seria uma boa data para começar a trabalhar comigo. Pense bem na sua vida; e no que podemos vir a fazer.

Foi assim que na 2ª feira, primeiro de Setembro o Ti’Nunes pediu na entrada do hotel que o anunciassem ao Sr. Comendador “dos Prazeres” e se sentou num sofá da sala de espera.

Quase de imediato um funcionário da recepção dirigiu-se à sala de estar e, perguntando pelo Sr. Nunes, convidou-o o acompanhá-lo à sala de jantar, onde o Sr. Comendador o convidava a tomar o “breakfast” com ele.

Já na mesa do Comendador o sr. Nunes encomendou café com leite, pão e queijo e um copo de água. 

O empregado voltou-se para o hóspede e, de imediato, o Sr Comendador disse: O meu convidado será servido como eu: traga o “continental breakfast”.

Foi então que após os cumprimentos, o Ti’Nunes, disse que depois de falar com os filhos, uma vez que era já viúvo, tomou a decisão de trabalhar para o sr. Comendador a partir daquele dia, se assim quisesse e como nada o prendia a lado nenhum estava inteiramente disponível. 

Só esperava nunca vir a ser incapaz de desempenhar as funções que lhe fossem confiadas: oferecia apenas tudo o que a vida lhe tinha ensinado e a certeza de completa lealdade a quem o contratava como trabalhador.

Teria apenas de passar pela empresa para onde prestava serviço, para fazer contas e se desligar de alguns trabalhos que tinha à sua responsabilidade. Coisa de dois dias, no máximo.

O Comendador estendeu a mão e disse: “Bem vindo Mestre Nunes; o Sr. doutor advogado deve estar a chegar aí e já tem todas as instruções para lhe entregar um contrato que contém a descrição das suas funções, os seus vencimentos e regalias.”

Trate de tudo com a empresa onde tem trabalhado e depois de tomar aqui o pequeno almoço na próxima 5ª feira, faremos uma reunião onde lhe direi as primeiras funções que irá desempenhar. 

A sua categoria na Empresa será a de Mestre e o seu chefe serei eu; colaborará com toda a gente, mas depende única e exclusivamente de mim. Concorda?

Perfeitamente, sr. Comendador.

E foi assim que o Mestre Mário Nunes, aos 60 anos, mudou completamente a sua vida. Trabalhou até aos noventa anos, foi a pedra angular do império criado em Portugal pelo José dos Prazeres – mais de uma centena de prédios em Lisboa e arredores - e redes comerciais no Congo Belga e Brasil –. Mestre Nunes deixou bens avaliados em 30.000 contos, quando faleceu, em 1963.