O palheiro – construção rudimentar, formada por quatro paredes de pedra e barro, tecto de telha vã de uma só água, porta de tábuas de pinho, presa por dois gonzos e uma fechadura do ferreiro da terra -, ainda estava, há poucos anos, em razoável estado de conservação.
Todavia, o incêndio que por ali passou em meados dos anos 90 transformou o palheiro num monte de cinzas e telhas, deixando de pé as paredes, para, mais tarde as estevas e as balças acabarem por desfigurar o local, que está, praticamente, irreconhecível.
O palheiro da Renda, com uma dúzia de metros quadrados de área, era usado para guarda de fenos e pastagens, especialmente como local de arrecadação de emergência, quando as trovoadas de Maio não davam tempo para levar mais longe o ferrejo que secava ao sol.
A chave, guardada num requebro da parede, do lado direito da porta, era usada apenas por quem sabia do seu esconderijo e, portanto, devidamente autorizado pelos seus donos.
O lugar não era, propriamente, um local de passagem, pelo que só as pessoas conhecedoras, ou intencionadas, faziam uso do palheiro.
Um dos hóspedes habituais do local era o guarda-rios que, ou por não lhe apetecer montar a bicicleta pasteleira e ir para casa, nos confins de Alcaravela, ou por não sentir já o equilíbrio suficiente, ia até ao palheiro, curtir a bebedeira e passar a noite.
Para mais que, como dizia, sendo o local do palheiro a uns escassos vinte metros da ribeira, pernoitava no local de trabalho.
Sempre foi insuspeito o uso dado ao palheiro; só na cabeça do moleiro que passava
nas redondezas para ir para a azenha do Ferrugento, ali ao fundo do Cabecinho Agudo, se arquitectou uma maneira de pregar um cagaço ao guarda-rios, depois de lhe ter contado histórias sobre o local, atrás de uns copos, na taberna.
Um dia, ao pôr-do-sol, o moleiro viu o guarda-rios ficar na taberna, quando se dirigia para a azenha.
Pelo caminho, atrás do macho carregado de taleigos, foi arquitectando o susto que pregaria ao guarda-rios no palheiro. E passou aos factos:
Foi à azenha, pôs tudo a trabalhar, encheu a tremonha de grão, regulou a água, fechou o cãozito, para que o não seguisse, pensou o macho e esperou que baixasse o escuro para ir rondar o palheiro e acagaçar o guarda-rios.
O silêncio pesava sobre o escuro de breu e apenas um ou outro pirilampo cruzava o ar e interrompia o ladrar longínquo dos cães, lá ao cimo, na aldeia.
De uma fresta da porta do palheiro saía um ténue clarão; sinal de que o lugar já estava habitado. Aproximou-se, espreitou, mas não conseguiu ver nada. Ouviu vozes surdas e imperceptíveis, apercebendo-se, de imediato, que o guarda-rios não estava só.
Foi por trás, onde o palheiro era mais baixo, devido ao desnível do terreno, arredou, muito lentamente uma telha e olhou para dentro do palheiro, onde ardia, junto à porta, uma fogueira muito suave, de cujo lume se espalhava uma luz ténue que deu para ver dois corpos, sobre uma manta, aberta sobre um molho de palha.
Guarda-rios e companheira estavam muito juntos; o moleiro, apenas olhou mais uma vez, depois de fechar os olhos, e, com milhares de ideias na cabeça, retirou-se e dirigiu-se, cabisbaixo e acabrunhado, para a azenha.
Ali, sentou-se, com a cabeça entre as mãos e meditou…
Nas muitas vezes que havia provocado o guarda-rios, caçoando do seu aspecto e lembrando-lhe que há testos para todas as panelas e ele ainda encontraria o dele; que afinal dentro do género dele até havia muito pior, e outras coisas do género.
Agora sentia-se incomodado com a calma e bonomia com que o guarda-rios ouvia todos os impropérios do moleiro e acabava por sorrir, como se nada fosse com ele.
Percebia, agora, o gozo que deviam dar ao guarda-rios as palavras com que pensava achincalhá-lo.
Vieram-lhe à mente todas as vezes que olhou para aquela figura insignificante, com um olho sempre vesgo e meio cerrado, uma perna arrastada e meio cambado de ombros, os trejeitos da boca e, não raro, uma baba ao canto do queixo.
Não sentia pena dele; considerava-o infeliz e nada fazia para o aliviar e, todavia, parecia que nada incomodavam o guarda-rios tais impropérios.
Agora entendia, agora sentia o ricochete de tudo o que lhe dissera.
Sem se dar pelo passar das horas, olhou o céu e reparou que a moagem estava quase no fim. Era preciso tratar do macho e abrir o cão que continuava fechado, preparar tudo e partir para casa; onde, certamente, a mulher, já consolada pelo guarda-rios, tinha tido tempo de voltar e esperava, por ele, na cama.
A vida continuou e nem o moleiro, nem o guarda-rios, nem a mulher, alguma vez denotaram qualquer atitude estranha, quando se falavam, ao cruzar-se, na aldeia, ou na taberna.
O moleiro resolveu não deixar a mulher só, quando pressentia o guarda-rios por perto; a mulher e o guarda-rios, provavelmente, atribuíram ao acaso a falta de oportunidades para se encontrarem.
Só um pequeno papel, rabiscado pelo moleiro e misturado num rolo de documentos escondidos num buraco da azenha e encontrado anos depois da morte do moleiro, deu conta dos remorsos do seu autor e permitiu imaginar o cenário descrito.
Nunca, da boca dos três intervenientes, saiu qualquer palavra sobre o assunto.