terça-feira, 21 de setembro de 2010

O “drama”no Rochoso

Assisti, na aldeia da minha mulher, na Beira Alta, entre a Guarda e Vilar Formoso, a um espectáculo inédito, para mim, mas com profundas tradições na região e representativo e mobilizador das gentes daquelas paragens.

Foi anunciado, à boa maneira dos antigos arautos e pregoeiros, um “drama” que teria lugar na sala da casa paroquial, no sábado seguinte, uma hora depois das trindades, logo a seguir à reza do terço na igreja da terra.

Eram convidadas todas as pessoas da aldeia e amigos, para assistir ao “drama – Dª Inês de Castro”, representado pelas pessoas da terra e ensaiado pelo senhor Antoninho, como habitualmente.

Os “dramas” representados na terra, tinham tradição: contavam os mais velhos que desde que se lembravam e segundo o que sempre ouviram, eram muitíssimo antigas aquelas representações lá na aldeia.

Visavam histórias e cenas do tempo dos Romanos, autos de Gil Vicente e outros autores portugueses, especialmente Almeida Garrett e, quer se tratasse de tragédias, comédias, ou histórias de final feliz, eram sempre “dramas” para o povo.

Nos tempos mais remotos da memória dos mais idosos, eram, invariavelmente, representados no cabanal do senhor vigário, ao tempo Cónego Domingos, tendo daí passado para a casa das almas, quando deixou de funcionar lá a escola primária e, mais tarde, para a casa paroquial.

Havia, ainda, vários ensaiadores vivos, embora, nos últimos anos, fosse o senhor Antoninho o mestre de serviço, recebendo, todavia, uma mãozinha, muito útil, da irmã Ritinha que, ao tempo, estava no colégio da Cerdeira.

Os actores, cujas idades variavam entre a meia dúzia e as muitas dezenas de anos, incluíam estudantes, funcionários, emigrantes, gente da terra e outros de boa vontade, como costumava dizer o ensaiador.

Os textos eram levados a preceito e passados, à mão, pelo senhor Antoninho que os distribuía aos “actores” a quem dava os seus conselhos e orientações e depois ia corrigindo nos ensaios, de modo que no dia (15 de Agosto) tudo estivesse afinado para que ninguém fizesse figuras tristes.

Ah!... É bom não esquecer que antes da representação pública e quando tudo já estava mais ou menos apresentável, era feita uma sessão, à porta fechada, para que o senhor Cónego Domingos pudesse aferir o conteúdo dos textos e a moralidade dos desempenhos dos actores, censurando o que, do seu ponto de vista, devia ser retirado e tudo o que ofendesse a moral e os bons costumes.

Poucas vergonhas, não!... Gritava o senhor Cónego; pelo menos enquanto eu por aqui estiver e for responsável por vós. E tu, Antoninho, vem aqui para ao pé de mim e toma bem nota:

A Inês e as suas damas de companhia serão representadas por rapazes que, com a tua habilidade não será difícil caracterizar. Não são necessárias cenas que envolvam e impliquem contactos físicos entre as pessoas. Os senhores Conselheiros serão pessoas de bem e, em respeito pela nossa História, não são religiosos, nem nas outras cenas há padres e freiras, que nunca se misturaram naquelas tristes andanças.

Os filhos de Inês não precisam estar presentes no drama. E agora vê lá o que tens de corrigir e prepara tudo como acabo de te dizer. Verás que não ficarás mal e toda a gente perceberá o drama e não verá imoralidades.

Bem, o senhor Antoninho nem queria acreditar no que acabava de ouvir: O que o senhor Cónego queria mudava quase todos os actores, alterava muitos papéis que tinham de voltar a ser escritos e acabava por falsear a verdade histórica.

Ainda pensou em mandar recolher os prospectos que tinha mandado afixar nas aldeias das redondezas, mas também não era com ele dar parte de fraco e optou por meter mãos à obra e fazer as alterações exigidas por quem, afinal de contas, sempre saberia mais que ele.

Começou pelas personagens: Dª Inês, que estava a ser ensaiada pela Dulce, passaria para o Acácio; D. Pedro continuava a ser representado pelo Ti’ Alberto Martins, as aias também não eram muito importantes e, se fossem rapazes bem vestidos de mulher, também haveriam de guardar as distâncias e evitar as brejeirices que não podiam aparecer no drama.

Afinal tudo se havia de arranjar e ele passava agora a ter de desempenhar um papel muito importante: convencer que as novas personagens estavam mais conformes com a verdade da História. Por isso, as meninas iam ser trocadas. Pareceu-lhe, todavia, que as açafatas mais velhas, que serviam no paço, poderiam ser representadas por mulheres idosas e respeitáveis e, para isso, acabou por ter a anuência do senhor Cónego Domingos. E atirou-se ao trabalho.

Num dos ensaios em que a Dª Inês apareceu sem ser caracterizada, a irmã Ritinha que tinha vindo ajudar, sorriu-se ao ver o Acácio. Porém, vendo o bom desempenho e enlevo com que o rapaz assumia a personagem, dirigiu-se ao senhor Antoninho e, com um sorriso nos lábios, disse-lhe:

Deixe lá, tudo há-de correr bem e acabaremos por fazer o que pode não ser o mais correcto, mas, pelo menos, respeitamos a vontade do senhor Cónego.

Do Jornal “A Guarda”: A representação do “drama”, na casa paroquial do Rochoso, foi um dos momentos em que a cultura do povo se elevou a tal nível, que temos dificuldade em classificar este espectáculo tão autêntico e genuíno, pois ele, por si só, já conquistou a nota máxima.

O senhor Antonino foi um homem de grande influência na terra, onde controlava a maior parte do que se passava e ia pautando o pulsar da vida e vivência no povoado.

Homem de teres e haveres, acumulava a função de guarda-rios com a gestão dos negócios que iam da taberna à recolha e venda do leite da maioria dos proprietários de vacas, e à arrebanha e venda, para Lisboa, de muitas arrobas de batatas produzidas no Rochoso e anexas.

Homem de fino faro por tudo o que se passasse na terra, conhecia e geria muitos interesses de gentes que a ele recorriam, para um bom conselho ou intermediação numa demanda. Movia influências de paz e concertação entre desavindos; sabia fechar os olhos ao que lhe convinha e ser duro e rigoroso, quando era conveniente. Usava o bom senso e dava-se ao respeito; coisas que muito agradavam às gentes dos meios rurais.

Era intransigente na defesa dos interesses da família e sempre colocou numa das suas primeiras prioridades a educação e instrução dos quatro filhos.

Quando foi arrastado para a esfera do genro, difícil de conciliar com a sua experiência e nível de instrução, conduziu-se com habilidade e perícia, usando cautelas e ousadias, retirando os dividendos possíveis para a família, mas preservando o núcleo duro dos interesses e património da casa.

Navegou à vista e aproveitou o que as circunstâncias lhe permitiram; soube, no entanto, ficar imune a tudo o que interpretou, correctamente, como contrário aos princípios e ofensivo daquilo que considerava sagrado: o seu bom nome e o bem-estar e segurança da família e do seu património.

Tive o privilégio de conviver com o “padrinho Antoninho” e muito aprender com ele, sobre os usos, costumes, hábitos e maneiras de ser das gentes daquelas terras.

Sempre apreciei a sua inteligência prática e objectiva e sempre o vi como indefectível zelador dos seus interesses e dos dos seus. Essas eram as motivações básicas da sua conduta, pondo a família acima de tudo.

Nos tempos conturbados dos anos setenta e oitenta, esperou, deixou assentar a poeira, tirou os azimutes e pairou. Soube estar por dentro, sem se comprometer e sacudir o pó, sem se enxovalhar. Mais uma vez foi exímio na defesa dos seus familiares e até dos interesses da sua terra.

Esteve sempre bem com gregos e troianos, nunca se comprometeu abertamente, comungou das mesas de fartura e benesses, mas como as enguias da ribeira, quanto mais escorregadio mais desejado.

Parecia movimentar-se, qual actor, num “drama”: pode correr melhor ou pior; o que importa é que na memória das pessoas fique o final e, esse sim, deve ser, invariavelmente, feliz.

E fez isso e foi assim sem nunca ter ocupado cargos políticos; movia-se melhor na sombra.

Mas porque realço desta forma a personagem que ensaiava os dramas? Então o sucesso, ou insucesso, resultam mais do desempenho dos intérpretes ou do trabalho do ensaiador, por natureza débil e difícil?

Por duas razões: porque me parece justa esta singela homenagem e porque, sem ele, muita coisa que se fez teria ficado por fazer. A maior parte dos textos acabava por ter a sua intervenção, pois sabia suprir as carências académicas com a sua experiência e o sentido censório do senhor Cónego.

Dizia-me, quando lhe espicaçava a memória e me sentia verdadeiramente interessado em conhecer e compreender as verdadeiras motivações que o levavam a pôr de pé realizações culturais dignas de qualquer compêndio de Cultura e Arte Popular Portuguesas:

Os maiores dramas, cujo autor (senhor Cónego) dificultava mais o meu trabalho que os escritores que tinham os nomes nos livros, eram os que faziam cabelos brancos.

Sabe lá, afilhado, o que era aquele senhor Cónego Domingos!.. Era capaz de tudo o que possa pensar!... Chamava, do púlpito, os homens que tinham ficado fora da porta da igreja!.. Mas, tinha razão nalgumas coisas!... Deus lhe tenha a alma!... Bem-haja pelo que me ajudou e ensinou!...