sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Honra e preconceito

Na noite de Inverno, o vento e a chuva calaram-se pouco depois do pôr-do-sol; só os cães, as aves nocturnas e os balidos e chocalhos dos rebanhos, nas cortes, quebravam o silêncio que se abatera sobre o povoado.

A quietude e a escuridão adensavam de tal forma a atmosfera que não havia nariz que ousasse arriscar-se fora das portas.

Até as tabernas da terra fecharam, bem cedo, as portas, pondo na rua os últimos bêbedos que podiam pedir ainda mais um copito e embrulhar um paivante, aumentando o rol.

Umas duas, ou três horas depois de se recolher, o Zé da Ti’Ana, já com a carraspana meio curtida, precisou de sair para se ir baixar junto da parede do quintal, debaixo da videira que trepava na figueira despidas de folhas.

Ao olhar para os lados da Estrela, arrepiou-se todo; não havia qualquer clarão de luar e em vez de reflexo e vento, a serra mandava camadas sucessivas de borrasca e um frio de cortar à faca.

Não se enxergava, através do nevoeiro, mais de meia dúzia de metros; nem sequer se via até à outra parede do quintalzito.

Os paus das árvores pingavam e as pedras que procurou, aos apalpões, para se limpar, estavam geladas e molhadas.

Não chovia, mas a humidade era tanta que atravessava a roupa e enregelava até os ossos mais escondidos do corpo.

Voltou a entrar em casa e deitou-se.

Ao clarear do dia pouco mais luz se fez; o nevoeiro e a humidade, ajudados pelo frio, não deixaram nascer o sol.

O Zé levantou-se e foi pensar o burrito e as duas cabras, trazendo, numa malga encardida, uma pequena quantidade de leite que bebeu, ainda quente, dum trago. Acompanhou com uma côdea de pão espanhol e duas dentadas do queijo amarelo, que davam na sacristia.

Quando corria a tranqueta da porta, o Zé da Ti’Ana pensou na caminhada que teria de fazer, até aos barrocais, lá em baixo, a meio caminho da ribeira.

Talvez estivesse menos frio nas grutas do barroco maior do que ali em casa, onde a telha vã não vedava frio nem humidade e só a poder do peso da roupa, na cama, se arranjava algum calor; já que o da fogueira das giestas, se tinha acabado umas horas antes, engolido pela invernia.

Mas, ainda faltava algum tempo para a hora a que teria de ir cumprir a promessa que fizera a si próprio e ficou-se, um pouco mais, debaixo de telha.

Espreitou, pela janelita, e não viu vivalma.

Pouco depois, saiu de casa, canada fora, rumo aos barrocais.

Esticou o passo e só se deteve às vistas da ribeira, junto ao amontoado de barrocos, que tão bem conhecia, a meias com cães, gatos-bravos, raposas e lobos.

Entrou, procurou o esconderijo onde guardava as escopetas e o fuzil e partiu dali em direcção à casa do Manel Caldeireiro, onde, em permanência, só estava a Rita, filha do Manel que ganhava a vida de terra em terra e fazia ausências de semanas.

A moçoila, na casa dos trinta, de compleição física avantajada, olhos grandes, cabelos pretos e pele morena, recebia os seus amigos, ao que se dizia; todavia, ninguém jamais ousou apontar-lhe fosse o que fosse, mais com receio do mau feitio do caldeireiro que com respeito pela cachopa.

Havia fanfarrões que se gabavam, à boca pequena, disto e daquilo e nunca tinham, sequer, chegado perto da rapariga.

O Zé da Ti’Ana, mais entradote, vivia só, desde que perdera a mãe e sofria, cada vez que as línguas, soltas pelo vinho, se referiam à Rita, ocultando o seu nome, mas sendo suficientemente denunciadores, para cantar façanhas.

De todas as vezes que chegara às falas com a rapariga sempre esbarrara com uma resistência inultrapassável.

Das espreitas e investigações que lhe levaram noites a fio, nada resultou em desabono.

Tomou a decisão de pedir a rapariga em casamento, perguntando-lhe, apenas, se, a partir daquele dia, poderia obrigar, ainda que a poder de sangue, quem dissesse fosse o que fosse, a prová-lo.

A Rita olhou-o nos olhos e jurou total inocência, porque tudo o que pudessem dizer dela ela mentira.

Com a confirmação da rapariga, o Zé passou nas tabernas e disse que se casaria com a Rita.

Jurou que, a partir de então, quem acusasse a sua noiva fosse do que fosse, ou provava, ou morria.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Nunca o diabo mais nos leve

Os pinheiros da Caldeirinha andam a comer de três concelhos; não admira, pois, que aqueles sapeirões gozem mais que os dos vizinhos que, naquela pissara, pouco mais têm que terra para sobreviverem.

Cada uma daquelas árvores vale por uma boa meia dúzia das da courela vizinha.

Só mete ali o ferro quem pagar bem.

Com estas afirmações, o Ti’Alberto entrava na taberna seguido pelo Bento, comprador de resinas por conta das fábricas de Leiria. E, já ao pé do balcão, acenou ao Manuel que deitasse uns copos de vinho, convidando o Chico Alfaiate, resineiro da terra, a beber com eles e a dizer se havia em toda a área das redondezas pinheiros mais leiteiros que os da sua,da Caldeirinha.

O resineiro confirmou que, de facto, não conhecia árvores que melhor fundissem do que um bom magote lá da Caldeirinha, embora também lá houvesse alguns mais fracotes.

Dava gosto passar a mudar os canecos duas ou três vezes, em cada colha. São árvores desenxovalhadas; deviam espalhar-se os pinhões delas por mais lados…

Aqui, entrou o Ti’Alberto: E a terra também a espalhavam, ora não?!...

O Bento que sabia ser verdade tudo o que acabava de ouvir, embora não lhe conviesse a conversa, acercou-se do Ti’Alberto, estendeu a mão e disse-lhe, em surdina: não se fala mais nisso; são os dez mil réis por cada bica da Caldeirinha e pelos seus restantes, o preço de toda a área: seis mil réis.

Está feito?!... O Ti’Alberto acenou ao taberneiro que deitasse mais uns copos e disse: Está feito, homem… mais um ano em que me enganas, mas… nunca o diabo mais nos leve!...

Ao recordar estas cenas, repassadas de uma simplicidade tão pungente e enternecedora, em que em frente do balcão da taberna se faziam os negócios, repletos de arte e manha, mas envolvidos numa ingenuidade pura e sã, não podemos esquecer as premonições da última frase do Ti’Alberto: … nunca o diabo mais nos leve!...

É que, desde aqueles anos sessenta em que muitos de nós, então jovens adolescentes, estudámos fora das nossas aldeias e por esse país além alcançámos lugares nunca pensados pelos nossos avós, à custa daqueles pinheiros que dando mais ou menos resina rendiam os cobres com que os nossos pais pagavam estudos, aboletamento e confortos que nunca tinham experimentado, tudo mudou…

E, infelizmente, tudo o diabo lhes levou!...

As transformações políticas, primeiro; os incêndios, depois, reduziram a nada aquela exploração de uma matéria-prima que, como nos ensinaram na escola, dava origem a uma farta gama de produtos, desde farmacêuticos a químicos e cosméticos e constituía uma riqueza nacional.

Nunca compreendemos como foi possível tal estado de coisas e é com muita mágoa que só na lembrança restam aqueles pinhais, de árvores esbeltas, que, generosamente, vertiam nos canecos a resina que escorria das suas sangrias.

Não se mataram apenas os pinheiros; foram, com eles, muitas gotas de sangue das gentes que viram o diabo levar-lhes tudo, quer ele vestisse a pele dos políticos, quer fosse um qualquer incendiário.

Aquelas gentes, que passaram a depender das esmolas dos poderes públicos, podem até viver melhor, ter melhores acessos e comunicações, desfrutar de alguns confortos das sociedades modernas, mas não são felizes… nunca aprenderam, nem se conformaram, a viver de esmolas; nunca comeram nada que não soubessem como lhes chegava às mãos e sempre se consideraram senhores de si próprios; nunca perceberam as razões dos que, alto e bom som, dizem que lhes vão fechar o hospital, a escola ou o posto médico; nunca aceitaram os que querem proibi-los de beber a água dos seus poços, comer a carne dos seus porcos e a desfrutar da floresta que, impunemente, alguns teimam em queimar-lhes.

Gentes de tanto querer, almas de tanta fé e vontades tão indómitas, deram lugar a populações descrentes, almas sem esperança e velhos resignados; todos sem alegria e esperando, pacientemente, o resto dos seus dias.

sábado, 30 de outubro de 2010

A Ti’Coluna

No cimo do esconso da rua de S. Pedro, onde acabava a calçada de pedras reboludas e escorregadias e começavam os degraus das escadas que iriam terminar frente ao portão do colégio, as casas, de um lado e do outro, eram as do Ferreira Mesquita e da sogra.

Por ali andavam sempre os garotos, ranhosos e reveladores de falta de cuidados, à mistura com galinhas, gatos e um cãozito, pouco agressivo para os passantes e com as carraças nas orelhas, bem visíveis.

Uns metros mais abaixo, à direita de quem descia, numa casita térrea, com frente de uma porta e uma janela, telhado de uma só água, a correr para a rua e com um quintalito nas traseiras, morava a Ti’Coluna, mais conhecida por “comadre Coluna”, devido aos inúmeros nascimentos a que havia já assistido.

Mulher corpulenta, de idade bastante avançada, capaz de satisfazer as suas necessidades, passava os dias à janela, a ver os estudantes, e uma vez por dia, descia até à praça, com a alcofa das compras.

Parava, normalmente, ao cimo do primeiro lance de escadas e sentava-se num pequeno patamar à porta da casa do sr Luís Catarino, a seguir à torre do relógio.

Descansava, ouvia e dava as notícias, tomava fôlego e lá arrancava, rua acima até chegar a sua casa.

Quando calhava dar-lhe uma ajudinha no transporte da alcofa, quer fosse o António Agostinho, filho da Ti’Mari’Bela, quer fosse um dos seus hóspedes, entre os quais eu me incluía, havia sempre uma pequena história e duas ou três ervilhanas, um rebuçadito, ou uma bolacha que já estava preparada junto da porta de casa, numa pequena terrina, sobre a mesa da salita.

Quando descia, voltava a parar na torre do relógio, cumprimentava os que passavam, pois era conhecida d os estudantes, que subiam e desciam, duas ou quatro vezes por dia, a rua mais inclinada da vila, no dizer da Ti’Coluna.

As histórias da velhota prendiam-se com as três gerações que compunham a sua vida, como dizia. Reportavam aos tempos da Monarquia e aos anos que se lhe seguiram, nos atribulados primeiros percalços da República.

Falava das saudades do rei D. Carlos que tivera oportunidade de ver, em Lisboa, das dificuldades que a velhice lhe revelou: mãe de vários filhos, nunca quis encostar-se a nenhum, apesar de todos viverem bem.

Mas, sozinha, vivia contente por ver tanta gente nova a fazer pela vida, subindo e descendo a ladeira de S. Pedro que, durante décadas foi rua pacata e morta, onde raramente passava alguém e agora fervia de gente e vida.

Desde que veio o colégio, foi uma alegria, um rejuvenescer para as gentes daquela rua cuja vida corria toda no sentida da praça e agora era ao contrário.

Mulher devota e cumpridora dos seus deveres de cristã, ajudava nos arranjos das igrejas e não faltava às principais cerimónias religiosas.

Era especialista na assistência a partos e tratava, como ninguém, um doente acamado. Ajudava, sempre que sentia necessidades e até onde as forças lhe permitiam.

Nunca consegui saber a idade da Ti’Coluna, mas parece-me que seria quase centenária.

Na base das suas opiniões, as coisas não acontecem por acaso e ia explicando o que a vida lhe ensinara:

- Estás a ver esta ladeira, a maior da vila, que todos os dias tens de subir para chegares ao colégio? E, depois, quando chegas lá ao cimo, tens a vila a teus pés, olhas e vês lá longe as terras de Gavião, ou se olhares para o outro lado, as serras do Bando e, mais longe, os montes já da Beira Baixa quase toda!

Na vida, os caminhos mais difíceis levam-nos às coisas melhores.

Quantos há que nunca subiram a ladeira da rua de S. Pedro, porque só havia lá eucaliptos e para chegar ao Calvário iam dar uma volta.

E que bom teria sido, se tivessem subido a rua, para o colégio: teriam hoje melhor emprego, teriam sido alguém diferente do que são, poderiam chegar mais alto.

Não achas que vale a pena subir a rua?

Até eu, que sou muito mais velha, gosto de morar cá em cima: vejo mais longe!... Já aprendeste o que é o horizonte? Gostas de estudar Geografia?...
Mas, cuidado: é preciso força e determinação.

Vês os do Ferreira Mesquita, não sobem até ao cimo da rua, espalham-se por ela abaixo à espera que lhe dêem alguma coisa para comer.

Também não têm quem os mande estudar, mas isso não é o caso dos meninos a quem os pais não querem que nada falte. A esses ninguém perdoaria que não aproveitassem bem as oportunidades que lhes estendem à frente.

Lembrem-se, pois, que há que subir e descer a rua, tantas vezes quantas for preciso e quanto mais depressa deixarem de subir, porque chegaram ao cimo, melhor. Uma coisa é certa, desistir, nunca!...;

É para os fracos e dos fracos não reza a História.

Porém, cá a velhota quer deixar-te um último aviso: quando se chega ao cimo das ladeiras temos de continuar a andar; o mundo não para e a vida não se esgota ali.

Atrás duma subida vem sempre outra e, por vezes, até mais íngreme; porém as forças aumentam com o exercício e as dificuldades diminuem com a força da nossa vontade.

Lembrem-se do que lhes diz a velha Coluna e, se puderem, cheguem à minha idade, rijos como eu; a vida deixar-se-á dominar e as coisas boas vão fazer-vos esquecer o que parece mais difícil e complicado, em cada dia que passa.

Vou pedir a Deus que vos satisfaça todos os vossos desejos, mas não se esqueçam de ajudar sempre a consegui-los!... A vossa ajuda é para lá de meio caminho andado!...

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

As onze casas

Quando a menina ainda mal sabia contar, contou, um dia, aquelas casas e encontrou onze.

Nunca mais esqueceu que algures, num lugar que muito pouca gente conhecia – o que achava uma pena – havia onze casas, onde tinham nascido, crescido e morrido muitas pessoas. Gente tão engraçada e importante, ainda que a maior parte deles nunca de lá tivesse saído e bastasse o nome de baptismo, ou uma alcunha, para a sua identificação.

A casa do Ti’Serafim, imponente, resistindo de pé e mostrando a sua varanda de madeira, sobre os cómodos dos animais; a da Ti’Deolinda, onde ainda restavam os alegretes e restos de cravinas brancas que tantas vezes alegraram os altares da capela; a da Rosita, reduzida a um monte de pedras, onde a parede da janelita – a da Rosita – se mantinha de pé, por entre as silvas e ramos de um sabugueiro que ali medrava; a da Ti’Perpétua, que só a memória podia imaginar; lá no cimo da cumeada, a da Ti’Leonor, decepada pelo alargamento da estrada e, virada a poente, a da Tia Carmina, de onde tantas vezes a menina tinha visto descer o sol abaixo do horizonte.

A da madrinha, Tia Maximina, donde trazia cotos de velas retirados da igreja, para prolongar as leituras nos longos serões de inverno, às escondidas da mãe; a da Ti’Augusta, limpinha e a cheirar a lavado e a qualquer coisa exótica que ainda hoje excita o olfacto da menina; pelo contrário, a da Ti’Rosa, baixinha, de telha vã e com algumas telhas levantadas, por cima da lareira para deixar sair a fumarada que dava um ar sombrio, pesado e bafiento, na cozinha; e a da Ti’Ana, que um dia voltou, lá de S. Simão, para os lados de Litém, onde sempre fizera vida, com a madrinha, criada de padre.

Finalmente a casa da Boxa, onde estavam as raízes da menina, e marco de várias gerações de gente especial, que apesar da exiguidade de meios e estímulos, sempre soube olhar para cima, cultivar o espírito ao lado das terras e servir de pólo de muitas das actividades da terra. Desde as festas e acontecimentos na eira, à casa da escola, onde aprenderam as primeiras letras muitas crianças, passando pelos bailes e festanças, quer por ocasião de ceifas, malhas, recolhas de milho, feijão, chícharos e outras novidades… gente diferente, voltada para coisas diferentes das do dia-a-dia da terra.

Falta referir as de Lisboa, onde morou o Ti’Manel e por onde passou a menina, quando foi em busca de mais saber, maiores horizontes, melhores meios e mais, muito mais discernimento e cultura, de que trazia o gérmen lá da casa da Boxa e dos seus avoengos directos e colaterais.

As casas não eram as únicas da Terra.

Havia outras sem ninguém especial para a pequenita. E havia também casas de ninguém, que já tinham sido lares de alguém, assim como outras que ainda podiam ser ocupadas e algumas de que restavam sinais de terem sido. Era confuso de mais e por isso a menina iria ficar-se por aquelas onze, cujas pessoas, simples, lhe diziam mais.

As ligações entre as casas e os nomes que de lá respondiam, resumiam a história da terra e das gentes que, em cada época, foram o povo do lugar.

As casas eram o bilhete de identidade de quem lá vivia, ou lá tinha vivido.

As pedras de xisto, lousinhas muito bem arrumadas no barro que as une, as padieiras das portas e janelas, as lajes mais compridas e meticulosamente travadas, resistiram a intempéries, mexidas da Terra e agressões naturais, mantendo os cunhais perpendiculares e as traves e barrotes, mais velhas que todos os do local, conservavam os telhados todos alinhados. As soleiras das portas e os parapeitos das janelas, ouviam ainda o ranger dos gonzos ferrugentos e das taramelas há muito cerradas.

Por trás de portas e janelas as trancas fechavam o que, de um modo geral, se mantinha aberto; os da terra não mexeriam no alheio e qualquer estranho era imediatamente referenciado e vigiado, tornando assim dispensáveis as chaves e fechaduras.

Até os cães tinham o registo olfactivo e visual de toda a gente da terra e evidenciavam logo, a qualquer forasteiro, o seu estado de alerta, mostrando os dentes, com ar de desprezo e mirando, pelo canto do olho.

As pernadas mais direitas de castanho, eram utilizadas para barrotes e traves dos telhados. As madeiras melhores e mais grossas, serradas nas burras e cavaletes, aplicavam-se nos sobrados, nas arcas de cerejeira, laranjeira ou nogueira, nos estrados das camas de ferro e nas cómodas, das casas mais abastadas, que ostentavam, na parte superior, um oratório.

Na cozinha, os cântaros e outros utensílios de barro vermelho, estavam arrumados na cantareira e, num dos lados, debaixo da chaminé, que se elevava acima do fumeiro, estava a lareira, onde sobre as trempes ferviam as panelas de ferro, de arco ou de três pés, as caldeiras de cobre e os tachos de folha.

As talhas do azeite, do mel e das azeitonas curtidas, bem como a salgadeira, guardavam-se na despensa.

A cozinha era a principal divisão da casa. Ali se comia, guardava a lenha, no respectivo canto, se guardava a masseira com a farinha para preparar o pão que, semanalmente, se cozia no forno da casa, ou, no comunitário, usado por toda a aldeia. Estava ainda a francela dos queijos e suspensa dos barrotes do telhado a tábua onde, depois de feitos, os queijos faziam a primeira seca, antes de serem vendidos, ou guardados em azeite, para conduto de todo o ano.

Na casa “grande”, também dita “de fora” estavam os pertences para a higiene das visitas: lavatório, com bacia, jarro da água e toalha de linho. Duas ou três arcas com roupas, ou cereais, onde se guardava o pão cozido, bolos, algumas frutas e não raro a bolsita do dinheiro para mercearia, peixe e farrapos que os tendeiros iam vender, de porta em porta.

Muitas vezes, na cabana anexa, havia uma lareira que poupava a da casa e lá se passavam os serões das longas noites de inverno.

O pucarinho sobre o asado, que ocupava a prateleira inferior da cantareira, juntamente com o cântaro, estava sempre preparado para dessedentar quem precisasse.

Sob o sobrado viajavam os gatos, que mantinham o espaço livre de ratos e outros hóspedes indesejáveis e para lá se esgueiravam pela gateira, aberta junto da porta e acabando por sair do lado oposto, junto ao canto da lenha.

Os campos, as hortas e o aproveitamento de tudo o que fosse terra arável e possível de ser regada pelas levadas feitas e conservadas a preceito, bem como as cortes de animais, as estrumeiras nas ruas das testadas das casas, onde se preparava o esterco com que se adubavam as terras menos férteis, eram outra parte dos rituais da vida rural das aldeias.

A iluminação por candeias e lanternas de azeite e, mais tarde, pelos candeeiros de petróleo, viria, muitos anos mais tarde, a ser substituída pela electricidade que a menina conheceu, pela primeira vez, quando foi à vila e utilizou, anos depois, quando foi para a cidade grande, para casa dos tios, à procura de mais vida, que só poderia encontrar em salas maiores que a da casa da Boxa, onde o pai ensinava os meninos e meninas da terra.

Porém, quanto mais ia compreendendo que afinal o mundo já era diferente e que todos os dias caminhava para coisas mais sofisticadas, mais os olhitos se encantavam com o bucolismo dos campos, a serenidade das gentes, a simplicidade daquelas casas, a beleza dos campos, o chilrear dos passaritos nas árvores dos quintais e das tapadas.

Depois, o balido dos cordeirinhos, os chocalhos e o chiar das rodas das carroças, davam lugar ao pesado silêncio que, com o escuro, se abatia sobre as casas da aldeia. Só o ladrar dos cães quebrava o encanto, a serenidade e o misticismo da noite que voltaria a despertar o carinho e apreço por aquelas gentes que elevavam tão alto o espírito ao falarem com Deus, não para se lamentarem, mas para agradecerem.

Anos depois, já no bulício da grande metrópole, com a influência de muitas leituras e tendo contacto com todo um manancial de recursos que a vida lhe não mostrou logo ao acordar para ela, as reminiscências da infância seriam capazes de descrever pedra por pedra, planta por planta e até latido por latido, tudo o que deixara entre aquelas onze casas, que continuavam a ser um mundo, independente de todos os mundos que viessem a cruzar-se na sua vida.

E, não raro, relembrava tudo o que temporariamente deixara para trás, no tempo, mas mantinha bem presente na sua memória. Na cidade tinha pouca Natureza para sentir e amar, mas a sua imaginação substituía-se à realidade e cada vez eram mais fortes os sentimentos de apego às realidades que lhe eram queridas e recordava com tantas saudades..

As casas, que não eram estendidas e encaixadas nos desvãos das terras, mas todas encostadas umas às outras, como cogumelos de favos de colmeias, com imensas janelas de vidro, casas de banho, luz eléctrica, telefone, rádios e, pouco depois, televisão, não fizeram esquecer as da terra. Eram mais feias.

Ao contornar o jardim dos animais, para apanhar o eléctrico até à escola que lá em Benfica, ali nas barbas da mata de Monsanto, se erguia, imponente sobre as terras da quinta, onde ainda pastavam as vacas, minoravam, em silêncio, as carências de tudo o que de bom deixou para trás.

Respirava o cheiro dos bichos lá no jardim, ouvia os gritos das aves de rapina e outras vozes familiares, deleitava-se com o rebanho que nas terras da Estrada da Luz aparecia, aos fins de tarde, nos baldios onde ainda não tinham feito casas.

Na mata de Benfica, à sombra de árvores seculares, onde esvoaçavam pássaros, cujos trinados levavam a menina para os contrafortes da serra, sentada num banco de ferro, iludiu, muitas vezes, as saudades das onze casas e, fechando os olhos, deixava-se transportar até ao pé da ribeira onde a azenha rodopiava e de onde sairia o moleiro, empurrando o burrito, ladeira acima, levando os taleigos de farinha.

Até que foi morar mesmo ali para ao pé da mata; e, já havia um espaço para jardim, um cãozito para guardar a casa e um maior espaço para flores. O sol entrava dentro de casa que ainda cheirava a nova. A figueira e o limoeiro eram um faz de conta de pomar e quando se regavam as flores já se sentia o cheiro, tão característico e chamativo, de terra regada.

Para ir para a escola não era preciso ir “a cavalo” nos transportes e ao atravessar as ruas de vivendas até chegar junta da estação de comboio de Benfica ia contemplando as casas e os jardins que ainda no começo faziam adivinhar agradáveis vistas no futuro.

Nos dias de folga podia ir à mata de S. Domingos de Benfica, ali nas abas da Serra de Monsanto e, no primeiro Natal que passou no Bairro, lembra-se de um lindo presépio, à maneira da sua infância, feito com belos tufos de musgo da mata de S. Domingos.

Quando caminhava pelas ruas da cidade, não esquecia os regatos que atravessavam as ruas da aldeia, das manhãs de inverno em que o taró soprava cortante e o codo espalhava um lençol branco e quebradiço, sobre todas as terras.

Sentia a falta do brilho, do calor e do crepitar da lareira; estranhava a iluminação nocturna e o ruído dos motores dos carros e fazia-lhe falta o barulho dos cães para lhe trazer o sono.

Numa palavra o bulício do dia-a-dia da cidade provocava-lhe nostalgia e solidão. E, quem olhasse direito para aqueles olhos acabaria por ver neles uma ligação ao imaginário da arte, da contemplação e da distância que a menina associa e, talvez com fundamento, às suas ancestrais raízes da casa da Boxa.

As idas às onze casas são cada vez mais espaçadas. E são bem visíveis as mudanças que, conformados, aceitamos como sinais dos tempos. As transformações, porque as pedras se desagregassem e os telhados acabassem reduzidos a um montão de barrotes podres e telhas partidas; porque o progresso implica alargamento de ruas e acessos e leva na voragem as recordações e relíquias; porque um estrangeirado, ignorando a sensibilidade, da menina das onze casas, e de todos os espíritos que por lá pairam, passou um dia, por lá, e decidiu restaurar uma daquelas casas para passar o resto dos seus dias; ou, ainda, porque alguém a que o povo chama “cão do hortelão”, significando o que não come nem deixa comer, não repara, nem deixa reparar e não vende, não troca nem dá, como que perpetuando recordações que talvez não lhe sejam muito gratas, mas em que estão envolvidos os seus avós.

Nessas idas, as onze vão sendo dez, depois serão nove e, quem sabe, até quando haverá alguns vestígios do que foi ninho de amor, de sofrimento e também última morada, de muita gente que durante séculos e séculos foram os expoentes da massa anónima de onde brotaram e sobressaíram as elites que construíram a cultura e identidade de um País, com dez séculos de história.

Restarão, pelo menos enquanto a nossa geração sentir o apelo das raízes mais profundas da cultura e vivência que nos viram crescer, umas quantas casas da Boxa, que, sejamos razoáveis, hão-de ser cada vez menos, pois, parafraseando o nosso estimado poeta A. Aleixo…

Quem prende a água que corre
É por si próprio enganado.
O ribeirinho não morre
Vai correr para outro lado.

E, nada melhor que contar, ainda que sem a arte e engenho necessários, um pouco da sua história e das suas raízes, para homenagear aquela gente simples que, como a menina da casa da Boxa, viram aquilo que somos e o que podemos ser, embora sabendo, como o poeta, que a vida não vai mais parar… o ribeirinho, da vida, não morre.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

O “drama”no Rochoso

Assisti, na aldeia da minha mulher, na Beira Alta, entre a Guarda e Vilar Formoso, a um espectáculo inédito, para mim, mas com profundas tradições na região e representativo e mobilizador das gentes daquelas paragens.

Foi anunciado, à boa maneira dos antigos arautos e pregoeiros, um “drama” que teria lugar na sala da casa paroquial, no sábado seguinte, uma hora depois das trindades, logo a seguir à reza do terço na igreja da terra.

Eram convidadas todas as pessoas da aldeia e amigos, para assistir ao “drama – Dª Inês de Castro”, representado pelas pessoas da terra e ensaiado pelo senhor Antoninho, como habitualmente.

Os “dramas” representados na terra, tinham tradição: contavam os mais velhos que desde que se lembravam e segundo o que sempre ouviram, eram muitíssimo antigas aquelas representações lá na aldeia.

Visavam histórias e cenas do tempo dos Romanos, autos de Gil Vicente e outros autores portugueses, especialmente Almeida Garrett e, quer se tratasse de tragédias, comédias, ou histórias de final feliz, eram sempre “dramas” para o povo.

Nos tempos mais remotos da memória dos mais idosos, eram, invariavelmente, representados no cabanal do senhor vigário, ao tempo Cónego Domingos, tendo daí passado para a casa das almas, quando deixou de funcionar lá a escola primária e, mais tarde, para a casa paroquial.

Havia, ainda, vários ensaiadores vivos, embora, nos últimos anos, fosse o senhor Antoninho o mestre de serviço, recebendo, todavia, uma mãozinha, muito útil, da irmã Ritinha que, ao tempo, estava no colégio da Cerdeira.

Os actores, cujas idades variavam entre a meia dúzia e as muitas dezenas de anos, incluíam estudantes, funcionários, emigrantes, gente da terra e outros de boa vontade, como costumava dizer o ensaiador.

Os textos eram levados a preceito e passados, à mão, pelo senhor Antoninho que os distribuía aos “actores” a quem dava os seus conselhos e orientações e depois ia corrigindo nos ensaios, de modo que no dia (15 de Agosto) tudo estivesse afinado para que ninguém fizesse figuras tristes.

Ah!... É bom não esquecer que antes da representação pública e quando tudo já estava mais ou menos apresentável, era feita uma sessão, à porta fechada, para que o senhor Cónego Domingos pudesse aferir o conteúdo dos textos e a moralidade dos desempenhos dos actores, censurando o que, do seu ponto de vista, devia ser retirado e tudo o que ofendesse a moral e os bons costumes.

Poucas vergonhas, não!... Gritava o senhor Cónego; pelo menos enquanto eu por aqui estiver e for responsável por vós. E tu, Antoninho, vem aqui para ao pé de mim e toma bem nota:

A Inês e as suas damas de companhia serão representadas por rapazes que, com a tua habilidade não será difícil caracterizar. Não são necessárias cenas que envolvam e impliquem contactos físicos entre as pessoas. Os senhores Conselheiros serão pessoas de bem e, em respeito pela nossa História, não são religiosos, nem nas outras cenas há padres e freiras, que nunca se misturaram naquelas tristes andanças.

Os filhos de Inês não precisam estar presentes no drama. E agora vê lá o que tens de corrigir e prepara tudo como acabo de te dizer. Verás que não ficarás mal e toda a gente perceberá o drama e não verá imoralidades.

Bem, o senhor Antoninho nem queria acreditar no que acabava de ouvir: O que o senhor Cónego queria mudava quase todos os actores, alterava muitos papéis que tinham de voltar a ser escritos e acabava por falsear a verdade histórica.

Ainda pensou em mandar recolher os prospectos que tinha mandado afixar nas aldeias das redondezas, mas também não era com ele dar parte de fraco e optou por meter mãos à obra e fazer as alterações exigidas por quem, afinal de contas, sempre saberia mais que ele.

Começou pelas personagens: Dª Inês, que estava a ser ensaiada pela Dulce, passaria para o Acácio; D. Pedro continuava a ser representado pelo Ti’ Alberto Martins, as aias também não eram muito importantes e, se fossem rapazes bem vestidos de mulher, também haveriam de guardar as distâncias e evitar as brejeirices que não podiam aparecer no drama.

Afinal tudo se havia de arranjar e ele passava agora a ter de desempenhar um papel muito importante: convencer que as novas personagens estavam mais conformes com a verdade da História. Por isso, as meninas iam ser trocadas. Pareceu-lhe, todavia, que as açafatas mais velhas, que serviam no paço, poderiam ser representadas por mulheres idosas e respeitáveis e, para isso, acabou por ter a anuência do senhor Cónego Domingos. E atirou-se ao trabalho.

Num dos ensaios em que a Dª Inês apareceu sem ser caracterizada, a irmã Ritinha que tinha vindo ajudar, sorriu-se ao ver o Acácio. Porém, vendo o bom desempenho e enlevo com que o rapaz assumia a personagem, dirigiu-se ao senhor Antoninho e, com um sorriso nos lábios, disse-lhe:

Deixe lá, tudo há-de correr bem e acabaremos por fazer o que pode não ser o mais correcto, mas, pelo menos, respeitamos a vontade do senhor Cónego.

Do Jornal “A Guarda”: A representação do “drama”, na casa paroquial do Rochoso, foi um dos momentos em que a cultura do povo se elevou a tal nível, que temos dificuldade em classificar este espectáculo tão autêntico e genuíno, pois ele, por si só, já conquistou a nota máxima.

O senhor Antonino foi um homem de grande influência na terra, onde controlava a maior parte do que se passava e ia pautando o pulsar da vida e vivência no povoado.

Homem de teres e haveres, acumulava a função de guarda-rios com a gestão dos negócios que iam da taberna à recolha e venda do leite da maioria dos proprietários de vacas, e à arrebanha e venda, para Lisboa, de muitas arrobas de batatas produzidas no Rochoso e anexas.

Homem de fino faro por tudo o que se passasse na terra, conhecia e geria muitos interesses de gentes que a ele recorriam, para um bom conselho ou intermediação numa demanda. Movia influências de paz e concertação entre desavindos; sabia fechar os olhos ao que lhe convinha e ser duro e rigoroso, quando era conveniente. Usava o bom senso e dava-se ao respeito; coisas que muito agradavam às gentes dos meios rurais.

Era intransigente na defesa dos interesses da família e sempre colocou numa das suas primeiras prioridades a educação e instrução dos quatro filhos.

Quando foi arrastado para a esfera do genro, difícil de conciliar com a sua experiência e nível de instrução, conduziu-se com habilidade e perícia, usando cautelas e ousadias, retirando os dividendos possíveis para a família, mas preservando o núcleo duro dos interesses e património da casa.

Navegou à vista e aproveitou o que as circunstâncias lhe permitiram; soube, no entanto, ficar imune a tudo o que interpretou, correctamente, como contrário aos princípios e ofensivo daquilo que considerava sagrado: o seu bom nome e o bem-estar e segurança da família e do seu património.

Tive o privilégio de conviver com o “padrinho Antoninho” e muito aprender com ele, sobre os usos, costumes, hábitos e maneiras de ser das gentes daquelas terras.

Sempre apreciei a sua inteligência prática e objectiva e sempre o vi como indefectível zelador dos seus interesses e dos dos seus. Essas eram as motivações básicas da sua conduta, pondo a família acima de tudo.

Nos tempos conturbados dos anos setenta e oitenta, esperou, deixou assentar a poeira, tirou os azimutes e pairou. Soube estar por dentro, sem se comprometer e sacudir o pó, sem se enxovalhar. Mais uma vez foi exímio na defesa dos seus familiares e até dos interesses da sua terra.

Esteve sempre bem com gregos e troianos, nunca se comprometeu abertamente, comungou das mesas de fartura e benesses, mas como as enguias da ribeira, quanto mais escorregadio mais desejado.

Parecia movimentar-se, qual actor, num “drama”: pode correr melhor ou pior; o que importa é que na memória das pessoas fique o final e, esse sim, deve ser, invariavelmente, feliz.

E fez isso e foi assim sem nunca ter ocupado cargos políticos; movia-se melhor na sombra.

Mas porque realço desta forma a personagem que ensaiava os dramas? Então o sucesso, ou insucesso, resultam mais do desempenho dos intérpretes ou do trabalho do ensaiador, por natureza débil e difícil?

Por duas razões: porque me parece justa esta singela homenagem e porque, sem ele, muita coisa que se fez teria ficado por fazer. A maior parte dos textos acabava por ter a sua intervenção, pois sabia suprir as carências académicas com a sua experiência e o sentido censório do senhor Cónego.

Dizia-me, quando lhe espicaçava a memória e me sentia verdadeiramente interessado em conhecer e compreender as verdadeiras motivações que o levavam a pôr de pé realizações culturais dignas de qualquer compêndio de Cultura e Arte Popular Portuguesas:

Os maiores dramas, cujo autor (senhor Cónego) dificultava mais o meu trabalho que os escritores que tinham os nomes nos livros, eram os que faziam cabelos brancos.

Sabe lá, afilhado, o que era aquele senhor Cónego Domingos!.. Era capaz de tudo o que possa pensar!... Chamava, do púlpito, os homens que tinham ficado fora da porta da igreja!.. Mas, tinha razão nalgumas coisas!... Deus lhe tenha a alma!... Bem-haja pelo que me ajudou e ensinou!...

sexta-feira, 16 de julho de 2010

O descante do brasileiro

No descante do “brasileiro”passou-se algo, que ficou, para sempre, como o segredo mais bem guardado da terra. E, sessenta anos depois, o segredo já virou esquecimento e assim ficará, porque os principais possíveis actores de cena, já cá não estão para que algo se possa adiantar ao relembrar episódios que mais não serão que isso mesmo: lembranças.

Lá nos fundos da aldeia, no lugar chamado Vimeirinho, entre dois riachos, que pouco depois se juntam para começar a ribeira da Pedreguina, foi levantada uma das melhores casas da Serra. Era, pelo menos, a mais vistosa e espampanante, que antes de qualquer outra dava nas vistas a quem entrava na povoação, vindo dos lados do Casalinho, logo depois da “Arrompida”.

O “brasileiro” tinha ido para fora, com despedidas da família e tudo, havia mais de trinta anos, e não mais voltara. As notícias, raras e circunstantes, não foram suficientes para que alguém tivesse uma ideia clara de tantos anos de ausência.

Chegou, finalmente, uma carta, com carimbo de “Belgique”, não muito pródiga em explicações e quase se limitando a dizer que chegava dentro de uma semana e se demoraria à volta de seis meses, para se casar.

Chegou, para exibir o resultado de muitos litros de suor, carradas de privações de toda a espécie e tilintando bastantes libras nos bolsos.

Histórias infindáveis e buscas porfiadas para encontrar noiva que o acompanhasse, mais uma ou duas dezenas de anos, pelas terras do Congo, onde duas ou três dúzias de lojas continuavam a fazer dinheiro todos os dias. Entregues aos encarregados, que passariam a ser chefiados por alguém que estivesse à altura e disposto a acompanhar o casal e começar vida em África.

Passeou pela terra e arredores as várias novidades: o carro, tipo espadalhão americano, marca “Pontiac”, com matrícula diferente das dos poucos automóveis que já tinham estado na terra e uma coisa nunca antes vista, por ali: tinha uma telefonia na parte da frente, ao lado do volante de pau.

Tudo muito bem, só que o diacho do espada também ficava atolado, como os mais fraquitos e por umas três vezes foi tirado dos atoleiros pelos bois dos Tios Henrique e Joaquim, que faziam o trabalho ao sobrinho, com a maior boa vontade.

Umas lunetas, em riba do nariz, com cabos de tartaruga e vidros meio pretos. Num dos dedos um grande anel de ouro, com uma meia libra em cima. Na roupa, a novidade ia toda para as camisas, de tecido muito fininho e com mangas cortadas – vestia uma lavada todos os dias, embora não trabalhasse para a sujar - e para o chapéu, de palhinha, meio acastanhado. Quando ia até ao meio dos pinheiros levava na cabeça uma coisa parecida com um capacete da tropa, feita de canas entrançadas.

Mas o que mais impressionava e atraia os homens, nas tabernas, para além das rodadas que o “brasileiro” alardeava, eram as histórias que o diabo do homem contava.

A começar que, lá pelas terras onde tinha os seus negócios – para cima de trinta lojas -, cada homem podia casar com quantas mulheres quisesse, desde que tivesse dinheiro para comprá-las.

É obra, Manel! Dizia-lhe um primo. E são como as de cá? Então e como é que um homem dá a volta a tudo aquilo? Acaba por não haver mulheres para todos! Mas que fartote!...

Depois, ao comentar o caso durante a ceifa, dizia o Abílio: Então, com tantas lojas, há-de ter e trazer muito bago. Porque não escolhe o homem umas três ou quatro das melhores em vez de vir cá tão longe procurar uma mulher? Certamente já andará enjoado daquilo de lá.

Também já lhe ouvi dizer que as de lá são todas pretas e quando elas são pequenas lhes rasgam o “biquinho da palolita”de forma que ficam com pouca garra para o serviço. O que é verdade é que alguma coisa há-de haver, mas também a chegar aos cinquenta não sei o que irá arranjar, por cá!

Salta de lá o Lampanas: ora, ora, com o pilim no bolso e tudo o resto, arranja o que quiser. Estão todas de bico no ar, é só escolher! Podes crer!

Em verdade, trinta anos de isolamento e um homem na força da vida, não ajudarão muito a manter-se sem contactos com mulheres.

Assim, a primeira coisa que o “brasileiro” fez, depois de chegar a Lisboa, foi dirigir-se a um médico, cuja recomendação trazia de um grande fornecedor das suas lojas, e manifestar o desejo de fazer todos os exames sobre possíveis doenças que tivessem qualquer implicação com o casamento e vida sexual que esperava vir a fazer com a futura mulher. E, durante oito dias fez dezenas de análises ao sangue, à urina, às fezes, ao esperma, à saliva. Sujeitou-se a radiografias, electrocardiogramas e electroencefalogramas.

Ao fim dos resultados de todos os exames, recebeu os parabéns do médico e um certificado negativo de todos os exames efectuados. Foi, pois, cheio de confiança que partiu em busca de companheira para levar com ele para África.

Como seis meses passavam depressa e não havia tempo a perder, alguém, chegado, lhe fez elogios da Professora que estava na terra havia perto de vinte anos, toda a gente conhecia, era de gente humilde mas honrada de uma aldeola do concelho de Proença-a-Nova e, nada havia a apontar-lhe.

Devia andar pelos quarenta anos, talvez um pouco menos o que ainda devia permitir um ou dois filhos. Mas, nestas coisas, sabes como é, sobrinho, é preciso dois quererem e isso só saberás se te chegares. Como ela é visita cá de casa, peço-lhe que chegue cá amanhã e ficará para jantar connosco, se assim quiseres.

Na segunda conversa o Manuel Ambrósio disse abertamente o que queria e convidou a Maria da Conceição a dispor-se a conversar com ele para verem se estariam de acordo em unir as vidas e casarem, logo que fosse possível, pois deveriam, se assim acordassem, aproveitar o tempo o melhor possível e ela deveria, inclusivamente, pedir a saída do serviço, logo que tomasse uma decisão, para poderem tratar de tudo, incluindo o casamento.

Quatro meses depois, estavam diante do Senhor dos Aflitos, na capela lá da Serra, a consumar o seu casamento.

A boda estendia-se por três dias, de que o descante era muitas vezes o começo de novos casamentos. O “brasileiro” contratou o melhor acordeonista das redondezas, para os bailes dos três dias e encarregou o primo e um cunhado de todos os preparativos. A mãe, viúva e já de avançada idade, só dizia: para quê tantas coisas, filho? Nunca se fez uma boda cá na terra em que se tirasse a samarra a mais de três cabeças de gado e tu falas em quatro.

Aí o Manuel Ambrósio chegou-se ao ouvido do primo e disse-lhe: Ai já houve um casamento com quatro cabeças de gado?! Então, para o meu, que sejam oito! Vinho, do melhor e que chegue bem para todos.

De resto, eu me encarregarei de dar uma palavrinha às cozinheiras antes de começarem a trabalhar; Antes quero que sobre vinte a que falte um só que seja. Compreenderam?! Boda é só uma; é festa; é fartura!

E, para o primo, tua mulher e gaiatos, fatos e calçado, para todos, são por minha conta; para o cunhado Xico, minha única irmã e vossas filhas, igual ao que acabo de dizer ao primo. Tratem também das roupas da mãe. Ah! E se na terra alguém disser que não tem roupa para a festa tratem disso e só terão, depois, de me dizer quanto gastaram.

Não se esqueçam que todas as pessoas da aldeia são convidadas para a boda. E, passem palavra: Por ora não teremos casa cá na terra e por isso, ninguém vai dar prendas aos noivos.

Quando um dia voltarmos de África, teremos todo o gosto em receber as lembranças do nosso casamento; até lá apenas desejamos que seja uma boda à altura, onde toda a aldeia, sem excepção, se sinta em família e que fique como nossa recordação, enquanto andarmos lá por longe.

O baile do domingo, segundo dia da boda, foi interrompido a meio do serão para que todos passassem às mesas, descansassem um pouco e ceassem.

Foi avisado que também as pessoas de fora da terra, eram convidadas a partir daquele momento para matarem o bicho e provarem as bebidas.

O Victor Figueira pousou a concertina sobre a cadeira do salão do baile, o primo Manuel desceu o petromax e à frente dos dançarinos, dirigiu-se ao coberto especialmente preparado para servir a todos os da boda, que acabavam por ser todos os da terra e agora, ao serão, ainda os de fora.

Uma meia hora depois, o Manuel voltou com o petromax, já reabastecido de petróleo e uma luminosidade renovada. Entrou no salão, subiu ao estrado do tocador e pendurou o candeeiro. Viu a cadeira do acordeonista vazia e não ligou, pensando que o Victor tinha levado a concertina para qualquer coisa.

Ao regressarem todos, ficaram a olhar uns para os outros, com cara de parvos, à espera que alguém trouxesse o instrumento para continuar o baile. O tocador sobre o estrado, sem perceber o que se passava, encolhia os ombros.

Como o impasse já fosse longo e qualquer brincadeira de mau gosto já tivesse tido tempo de acabar, chegou-se à frente o primo Xico do “brasileiro” e, dirigindo-se a todos, disse:

Sabemos que um qualquer engraçadinho terá escondido a concertina, mas chega de brincadeiras. Vamos lá a trazer o instrumento para continuarmos a divertir-nos em honra dos noivos.

Todos olharam para todos e não faltava ninguém. Também não havia sinais da concertina.

Aí o noivo pediu ao primo que fosse buscar a grafonola e os discos e que ninguém se fosse embora, pois o baile ia continuar, de uma maneira, ou de outra. Colocou-se a caixa na cadeira do tocador e a grafonola começou a tocar passo dobles, tangos, valsas e corridinhos, muito do agrado dos pares dançantes. E, já altas horas quanto se acabou o baile, os rapazes da terra fizeram uma investigação junto de todos os da terra e também aos de fora a fim de averiguar o que se tinha passado com a concertina.

Ali ao lado o “brasileiro” galhofava com o tocador: Oh! Victor, não é a concertina que o ensina a tocar, pois não!? Então não se preocupe! Todos os males fossem o desaparecimento de um acordeão! Quanto lhe custa agora um instrumento um pouco melhor que o seu? E está preparado para tocar um topo de gama? Sabe, por acaso, o que isso é?

Não que se sentisse apoucado, mas antes levando a conversa para o ânimo que o Senhor Ambrósio lhe queria transmitir, disse: Sei, sim senhor o que é um topo de gama. O meu é isso mesmo. Quando o comprei, vai para três anos, era o melhor que o mercado oferecia para amadores de acordeão.

Custou-me muito a pagar o dinheiro que pedi emprestados e só há muito poucos meses acabei de liquidar. Nunca pensei que uma coisa assim me ia acontecer! Valha-me Deus!

Então e seguro, não tem? Estas coisas são de prevenir. Mas estamos para aqui a preocupar-nos quando afinal o mais importante já se passou.

Parece-me, não desfazendo, que o baile até acabou por correr bem, com os discos. E olhe que aquela geringonça, com o altifalante e a colecção de discos, talvez ultrapasse o custo de um acordeão como o seu. Mas não é a mesma coisa e antes de mais deixe-me felicitá-lo pela sua arte; pedi o melhor e, de facto, o meu primo Xico assim fez, pois você não fica atrás dos que por aí se vêm; parabéns!

Obrigado, senhor Ambrósio. Faz-se o que se pode e até à data tenho comprado e ensaiado novas músicas, sobretudo na nossa área – dança -. Graças a Deus não me falta trabalho e, para estar aqui na sua festa, deixei de ir a um cliente certo.

E logo aqui me foi acontecer uma destas!? Se amanhã não aparecer o acordeão, vou-me mas é embora, se me der licença.

Não Victor. Apareça, ou não, o instrumento, não se vai nada embora. Tem alguém conhecido que lhe empreste uma concertina para amanhã à noite? Se tiver, vamos buscá-la, se não, fica no baile connosco, pois só faremos contas depois de amanhã. E, olhe que, se não estiver a tocar… há por aí muitas raparigas… quem sabe! Aproveite, homem; não há-de ser sempre a tocar!

Correram as mais variadas versões; porém nenhuma delas mais verdadeira que a anterior, ou a seguinte, e, todas elas, sem confirmação. Dizia-se que o “brasileiro” quis levar a concertina do seu descante como recordação e mandou guardá-la, quando o salão ficou às escuras. Alguém se aproveitou e roubou o acordeão para o vender depois. O próprio tocador tinha descoberto um defeito no instrumento e tê-lo-ia feito desaparecer, combinado com um amigo, para tentar que o brasileiro lhe pagasse um novo. Tratar-se-ia de um trabalho encomendado por um vendedor de concertinas. Hipóteses!

Contos e lendas – ao certo, ao certo, nunca se soube se alguém terá contado a mais alguém o destino da concertina do descante da boda do brasileiro da Serra. Um verdadeiro segredo.

De concreto, sabe-se que o “brasileiro”pagou uma concertina nova, topo de gama na versão amadores, ao Victor e quando soube que se iria casar, com uma noiva que começou a namorar quando no descante lhe roubaram o instrumento, pediu ao primo que lhe desse, em seu nome, uma choruda prenda de casamento.

O tocador nunca desistiu de encontrar a velha concertina roubada, mas, na opinião dos mais desconfiados, apenas queria deitar poeira para os olhos dos outros, já que sabia, perfeitamente, porque o brasileiro lhe dissera, o destino que teve a concertina. Quem sabe se foi decorar um dos salões da casa que o senhor Manuel Ambrósio tinha em Leopoldville, hoje Kinshasa.

A nova concertina, que fazia a inveja de todos os tocadores concorrentes, de uma sonoridade impecável e com escalas mais evoluídas que as vulgares do mercado, exibia com letras bem grandes e prateadas, o nome do Victor Figueira. Mas na gíria todos brincavam, chamando-lhe a concertina do “brasileiro da Serra”.

O Victor Figueira, não se incomodava nada com isso; passou a ter ainda mais trabalho e a fazer-se pagar melhor. Com ela ganhava a vida e, dupla vantagem: não lhe custou a pagar!

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Tiro aos pratos

Desde os últimos torneios de tiro aos pratos que a comissão de festas fazia todos os anos, na tapada do dr. Aníbal, ali ao campo da bola, não saía da cabeça do sr. Francisco Tapada a ideia de comprar o que fosse preciso para que os filhos, viessem a ser campeões num dos anos seguintes.

Tinha um compadre que já vários anos ganhara taças e prémios e que toda a gente dizia que era uma das melhores espingardas da região.

Na maior parte dos torneios das festas dos arredores, o compadre Xico, já tinha ganho para pagar as espingardas que possuía e era muito conceituado pela sua habilidade naquele desporto, cada vez mais em voga.

Ninguém mais indicado que o mestre para lhe explicar o que devia fazer para meter o filho Abel naquelas andanças do tiro aos pratos.

É que já tinha ouvido falar na caça às rolas, nas batidas às raposas, no tiro aos pombos, mas isso não o entusiasmava: atirar a um prato é que lhe parecia bem. Matar ali centenas de pombos, isso não!

Perguntou ao compadre se estavam garantidas todas as condições de segurança e não havia perigo se o Abel, por sinal afilhado dele, se metesse nessas coisas. Qual a arma que recomendava para o afilhado e se arranjava algum tempo e paciência para o ensinar a atirar, pois queria que já no próximo ano fosse um digno concorrente do padrinho.

Olhe, compadre, estamos a tratar de armas e, ainda que a segurança comece em cada um, o perigo pode vir de qualquer descuido. Mas o Abel tem idade e é suficientemente responsável para se meter entre os profissionais e tentar ganhar alguma coisa. Depende das condições de visão adaptadas ao tiro, do gosto pela modalidade e de muito treino e muitas horas, com a mesma arma.

Quanto a armas, há muitas possibilidades e recomendo-lhe que lhe compre logo uma coisa de jeito, como se ele fosse já um grande campeão. Olhe eu gostava de ter uma espingarda francesa, de canos sobrepostos, de cinco tiros, calibre doze e com possibilidade de adaptação de mira.

Um brinquedo desses, se for uma Verney-Carron, custa uma mão cheia de notas e depois acessórios e cartuchos não são nada baratos. Há ainda as inscrições nas diversas competições e eu recomendo-lhe que inscreva o rapaz num clube de tiro – pode ser em Monsanto, lá em Lisboa -, onde vai aprender a usar tecnicamente a arma e, se tiver aptidão, a ser um campeão.

Olhe compadre aquilo que eu aprendi, por montes e vales, atrás de coelhos, lebres e perdizes, pode o rapaz aprender numa carreira de tiro, atirando aos pratos.

Dinheiro não é problema, compadre. O que lhe peço é que dê uma palavrinha ao moço, quando ele por aqui vier e estou cá a pensar que no próximo ano, se Deus quiser, há-de acabar o curso de Engenharia.

Um dos prémios pode ser isso, não acha? Quero saber o que pensa ele e espero que dê uma ajudinha.

Desde que comecei a trabalhar como marçano, lá em Lisboa, tenho-me desunhado e nem férias em condições tenho tido: Os rapazes vão gozando qualquer coisa quando não têm aulas; mas eu e a comadre, além de dois cruzeiritos e uma viagem a Roma, para ver o Santo Padre, pouco gozamos o que tenho andado a juntar. São uns sete prédios a render e, de há uns cinco anos para cá, a Sociedade de Construções, que vai indo muito bem e gostaria que o Abel fizesse um pouco de publicidade daquilo que é também deles.

O compadre podia ir lá a Lisboa e levar-me a um armeiro de sua confiança para comprarmos tudo o que for preciso. Isto depois de sondar o rapaz, mas isso, num dos próximos dias, já nós faremos: eu dou um toque e o compadre mostra-lhe aqui as suas armas e entusiasma-o. Fica combinado!?

O conjunto de arma e equipamentos diversos, uma inscrição e trinta aulas no clube de tiro de Monsanto, incluindo a documentação, custaram para cima de sessenta contos, que naqueles anos cinquenta chegava para um automóvel de gama média. Mas automóvel já o rapaz tinha – era o condutor do pai.

O Abel tinha todas as condições para vir a ser um campeão de tiro. Foi o diagnóstico que lhe fez o mestre, lá no clube de tiro. Os reflexos é que ainda precisavam de muito treino.

Era fundamental que praticasse muito e, se gostasse de caça, poderia desenvolver os reflexos nessa actividade. Podia também inscrever-se num clube de tiro aos pratos e treinar…treinar… treinar.

Um dia o padrinho convenceu o compadre a fazer lá para os lados do campo da bola, não longe do local onde a comissão de festas costumava fazer os fossos para colocar a máquina de lançamento de pratos, umas instalações para praticar essa modalidade. E lá poderia treinar com o afilhado e até com outros atiradores das redondezas. Talvez até cobrariam para as despesas. Até podia nascer dali uma mini associação de atiradores do concelho. E a ideia foi do inteiro agrado do sr Francisco Tapada que aprovaria tudo o que sentisse como estímulo do seu amor-próprio e da obra que, a pulso e com grande sucesso, vinha construindo lá na capital.

No ano seguinte, ainda não funcionaram as competições de tiro aos pratos nas instalações do sr Tapada, junto do campo da bola, mas dois anos depois já havia muito movimento e já se tinha organizado um torneio a que compareceram catorze concorrentes e feitas as contas, afora as taças e menções honrosas, os três primeiros classificados, arrecadaram prémios pecuniários de trinta, quinze e cinco contos de réis.

Evidentemente que a comissão de festas negociou e contratou as instalações do campo da bola, como começaram a ser conhecidas e organizou um dos melhores torneios de tiro aos pratos de toda aquela região, na área do pinhal.

Conseguiu-se juntar, apoios, inscrições, publicidade e bilheteira, um montante de prémios de cem contos para o primeiro prémio, quarenta, para o segundo e dez contos de réis para o terceiro classificado.

Também os sessenta por cento do valor das apostas destinados aos que apostaram nos ganhadores, juntaram cem contos de prémios, que remuneraram quem apostou nos atiradores vencedores. O prémio pela aposta na espingarda vencedora, foi doze vezes o valor apostado.

Foi porém nessa altura que o insólito aconteceu:

Antes de iniciar as provas, são sorteadas as portas dos atiradores, é estabelecida a ordem para cada atirar e, no final, são leiloadas as espingardas, onde cada um faz as apostas que entende até um valor estabelecido, ou não, em quem pensa que vai ganhar, ou ficar entre os melhores.

No final, os premiados, isto é os que apostaram nos vencedores irão receber, proporcionalmente ao que apostaram, sessenta por cento do total das apostas, ficando os outros quarenta por cento para dividir pelos três vencedores.

Cada espingarda é leiloada, depois de anunciado o nome e naturalidade do atirador, últimas cinco provas em que participou e troféus conquistados nessas provas, bem como números de pratos lançados, partidos e total de tiros – uma vez que cada concorrente pode usar dois tiros para cada prato.

Cada apostador toma os seus apontamentos e no fim da informação vai à mesa fazer as suas apostas – mínimo de cem escudos por aposta -. O organizador começa pela espingarda nº 1 e põe a arma a leilão para que todos possam apostar naquela arma, se assim quiserem e quanto quiserem. Os apostadores gritam: arma nº X, Y escudos e depois de entregarem o dinheiro recebem o respectivo recibo, para irem no final receber o prémio se aquela arma for premiada, isto é, se ficar em primeiro, segundo ou terceiro lugar.

Quando o sr. Francisco Tapada, que ainda nem tinha entrado bem na engrenagem das apostas, ouviu: Está em leilão a arma do senhor Abel Tapada, cujo curriculum é muito fácil de explicar: participa pela primeira vez em provas oficiais.

Um tanto ou quanto timidamente aposta de lá um sujeito que tinha ouvido dizer que o rapaz iria fazer surpresa: Dou cinco contos pela espingarda nº 7, do senhor Abel Tapada.

Muito agitado, salta de lá o pai, sr Francisco Tapada, vai ao pé do compadre e grita para a Organização: esperem lá! Deve haver aqui um engano qualquer!

Então ainda há pouco dei quase cinquenta contos de réis pela arma do meu filho e querem agora vendê-la por cinco contos de réis!? Isso não pode ser! Então o que vou fazer, compadre? Eu não quero sustentar ninguém e aquela arma faz falta ao meu filho engenheiro que até vai ganhar, hoje, com ela.

Bem, compadre, se tem tanta fé, aposte na arma do seu filho: se aquele amigo dá cinco contos, ofereça o compadre dez!

Levantou o dedo e disse alto e bom som: quinze contos pela arma nº7, do
meu filho Abel e outros quinze pela arma nº 9, do meu compadre Xico Craveiro. Concorda compadre?

O sr Craveiro encolheu os ombros e pouco depois, um outro apostador oferecia outros cinco contos pela espingarda do eng. Tapada. Aí o pai, cheio de orgulho, levantou o dedo e gritou; mais dez contos pela arma do meu filho, acho que é a nº 7.

Terminada a prova e feitas as contas, verificou-se que o atirador nº 7 ficou em 2º lugar, em igualdade com o 3º, sr Xico Craveiro. Dizia o regulamento que iria ser feita uma sessão de cinco pratos para cada um, alternadamente. No final, o atirador número 7 partiu os cinco pratos com seis tiros e o sr Xico partiu os cinco pratos, com sete tiros, sendo proclamado em segundo lugar o concorrente nº7 e em terceiro o concorrente nº9.

O sr. Francisco tapada, foi o grande vencedor, pois apostou forte nos vencedores dos segundo e terceiro prémios. Ao certo, ao certo, o sr Francisco Tapadas nem soube quanto iria receber de prémios, pois disse ao filho que guardasse o prémio referente ao 2º lugar e o dele, das apostas, que desse metade para S. Sebastião e outra metade para S. Miguel, santos da sua devoção.

Mais tarde, bebendo um copo na adega do compadre, ainda se riram. O sr Francisco Tapada segredou aos amigos que por ali estavam, na patuscada:

Sabem, é que eu ainda hoje não percebo como é que o meu filho ficou quedo e calado, quando queriam comprar a sua arma por cinco contos, sabendo que eu, ainda não há muito, dei quase quarenta por ela!?

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O ferrador

José da Silva, também conhecido pel’ O-dos-Gagos, foi para ali como meio latoeiro, meio ferreiro e acabou como um dos ferradores de mais nomeada em todas as terras além Jarmelo e raia do Côa.

Oriundo algures das abas do Douro, chegou a terras da Guarda e fixou-se, isto é, começou a percorrer as terras entre a Guarda e o Côa, como latoeiro e mais tarde construiu um tronco, no cimo dum pequeno outeiro, à entrada do Rochoso, não longe do cemitério e paredes meias com a cerca da quinta do padre Domingos. Antes estivera uns tempos nos Gagos, donde lhe vem a alcunha posta pelo povo, e onde aperfeiçoou a arte de ferrador, sobretudo de gado cavalar e bovino, aliás o de maior abundância na zona.

No Rochoso, foi-se apropriando daquele ermo, ali no cimo do cabeço, bastante desprotegido dos ventos frios que sopravam da serra da Estrela e não poupavam as terras mais desabrigadas. Havia, pois, justificação para uma primeira obra – um barraco tosco, onde guardava o burrito, duas cabritas, que também iam tasquinhando ali pelas redondezas e como que conquistando terreno. Ao fim de poucos anos já se assenhoreara do assento e, a troco de meia dúzia de notas, comprou o ermo ao Ti’Lampreia que nunca terá imaginado vir a receber fosse o que fosse por aquilo que não valia nada.

Tratava-se de uns barrocos pequenos e áridos, uma pequena cerca onde parecia que tinham semeado pedras, uns restos de lamaçal, onde, em tempos iam cavar a terra para fazer o barro usado nas paredes das casas mais modestas e meia dúzia de giestas que cercavam a vinha – nada mais, nada menos que catorze cepas, já velhas e muito mal tratadas, que nunca devem ter dado uvas que fizessem meio quartilho de vinho.

Encostados à canada que dali descia até ao caminho de entrada na povoação, havia uns velhos troncos de carvalho e o que restava de uns castanheiros, entretanto desaparecidos. Foi ali, junto dos restos das árvores que o ferrador pensou e construiu um tronco capaz de receber qualquer besta e ferrá-la.

Mais tarde, junto do barraco, fez a primeira casa. Jogando com a inclinação do terreno e fazendo um bom desaterro, construiu ali uma casa digna de se ver: toda a gente comentava o bom aproveitamento dado ao terreno e aos cómodos que nasceram dum esconso daqueles, onde mal se entregava. Casa de loja e andar de cima, cortes para gado e pocilga para o porco, cozinha e alpendre exterior à casa e ao lado do pequeno terreiro em frente da casa, arrasou giestas e restos de vinha e fez uma pequena latada, com mesas de pedra, protegidas do norte pelas terras do outeiro e por um muro de pedra cortada na pedreira e digna de se ver. Era imponente a vista sobre a aldeia, as terras para lá da ribeira, e, até por cima do Calvário se via a senhora do Monte e todo o termo do vale do Noeme, até para lá da Miuzela e terras do Côa.

A casa do ferrador era muito frequentada na terra, porque tinha a melhor vista, acabava por ser acolhedora, estando protegida dos ventos agrestes e virada ao decurso do sol; havia sempre umas bestas para ferrar, ou umas larachas para dizer e ouvir, de que O-dos-Gagos não perdia pitada e era ali que se toscava tudo o que havia sobre negócios, oportunidades, contrabandos e candongas, volfrâmio, etc.

Mais tarde e como o Zé da Silva sabia bem o que queria e aproveitava as oportunidades, comprou o alvará de uma tasca da terra aos herdeiros de um velhote, por uma tuta-e-meia e transferiu o negócio para um anexo que acrescentou ao lado do barracão, mesmo em frente da área do ofício. Passou a ser, dentro de pouco tempo o lugar mais frequentado da terra e visitado por muitos passantes que ali procuravam comida, às vezes dormida, por vezes esconderijo e informações para candongas, ou negócios mais ou menos claros.

Em poucos anos tinha uma das melhores casas da terra, comprou lameiros e tapadas, começou a criar gados, a produzir queijo, a vender batata por atacado para Lisboa e, tudo o que se vendeu no cerro d’O-dos-Gagos e imediações, veio parar-lhe às mãos. Depois fez o milagre: transformou pedras em plantas.

A mulher com quem casou era mais finória que ele para o negócio de porta aberta e para descobrir oportunidades; ele, porém, tinha umas mãos de verdadeiro artista para ferrar uma besta e canelo que fosse das mãos dele para um bovino assentava que nem uma luva. Confiava, cegamente no trabalho que fazia, ao ponto de apostar que reconheceria um trabalho seu, mesmo que a ferradura já andasse nas patas da besta há muitos meses.

A fama espalhou-se e todas as vezes que o experimentaram, tentando ver se era capaz de acertar nas ferraduras que tinha deitado nas patas de uma besta,
nunca falhou. Chegava ao pormenor de afirmar: neste boi, as duas patas da frente e a pata de trás do lado direito, foram tratadas por mim, já a pata de trás do lado esquerdo tem uma ferradura que não foi posta por mim. Por isso o animal sente-se desse lado e anda a dar mau trabalho.

Como naquele tempo havia bastantes roubos de gados que, mais tarde, apareciam nas feiras e era difícil fazer prova de verdadeiro dono de um animal, muita gente começou a ir a’O-dos-Gagos ferrar as bestas para que se, um dia, tivesse, em demanda, de provar que um animal era seu, pudesse levar junto do juiz o ferreiro e este comprovasse que aquele animal tinha sido ferrado por ele e, por isso, não podia ser de quem nunca recorreu aos seus serviços.

Não demorou muito que não fosse indicado ao tribunal da Guarda, como perito, para fazer prova de que uma junta de bois posta à venda da feira de Trancoso, tinha sido ferrada por ele, na sua casa do Rochoso e, perante testemunhas o vendedor afirmava que os bois nasceram e cresceram ali junto de Frexes, nunca tendo ido a tal terra.

Chamado ao juiz o ferreiro disse que, só, com o senhor doutor juiz e em reservado, pois não estava disposto a revelar o segredo da sua arte, comprovaria, a sua excelência, se os animais tinham sido ferrados por ele, ou não. Como os animais estavam apreendidos às ordens do tribunal, foi o juiz com o ferreiro e, passadas umas três horas – pois tiveram que levar os bois a um tronco de ferrador – o juiz condenou a dois anos de prisão, por roubo de gado, o vendedor dos bois, mais custas de processo e diligências e pagamento ao perito de um dia de trabalho especializado e deslocações, no valor de quatro contos de reis, o que naquele tempo era dinheiro de se lhe tirar o chapéu. E os bois foram entregues ao seu legítimo dono, que ainda acabou por gratificar bem o ferreiro e passou a ser, dali em diante, o maior propagandista do ferreiro do Rochoso. Contou o caso do tribunal da Guarda centenas de vezes e sempre deixou de boca aberta quem o ouvia.

Foi a consagração de um herói. Se já tinha muita freguesia, nunca mais teve mãos a medir e, de um ajudante, passou para três: um na forja, onde fazia e temperava as ferraduras e dois nos trabalhos de desbaste, limpeza e preparação das patas das bestas. Os acertos finais e a colocação de ferraduras eram trabalho do mestre, bem como o acabamento das ferraduras e canelos que eram passados da fornalha, em brasa, para um pequeno anexo, onde o ferrador, à porta fechada, dava as últimas pancadas e metia no banho da água para arrefecimento e têmpera. Dali trazia-os para colocar nas patas dos animais, pregava os cravos e deixava os acabamentos - corte das pontas e acerto dos cascos – para um dos ajudantes.

Toda a gente tentou saber como era possível ao ferrador conhecer todas as bestas que ferrava e nunca ninguém descobriu o óbvio. Em ar de chalaça o ferrador dizia: Levo os animais ali ao reservado, tiro-lhe as ferraduras e pergunto se fui eu que os ferrei e se querem ou não voltar a ser ferrados por mim. Simples, não é!? E como os animais ainda não aprenderam a mentir, até hoje, nunca me enganaram e eu, até na frente de juízes posso dar a minha garantia. Porém, para continuar a ter a confiança dos bichos, garanto-lhes que tudo o que me disserem fica em rigoroso segredo. Só os juízes podem estar presentes quando eu faço as perguntas e têm de estar devidamente fardados.

Um dia o Ti’Zé da Silva, O-dos-Gagos, como ele gostava de ser chamado, sentado à sombra de uma frondosa acácia que pendia a um canto do largo em frente da sua casa, vendo um dos genros, acompanhado dos ajudantes, no trabalho de ferrador de uma junta de bois, chamou-os e disse-lhes: Chegou a hora de revelar o segredo ao meu genro que, daqui a muitos anos, quando sentir que começa a estar da meia tarde para a noite, como eu, o passará a quem entender.

Levantou-se, dirigiu-se à forja, seguido do genro e passaram ao reservado onde eram dados os toques finais. Momentos depois saíram e o genro desfazia-se a rir atrás do velho ferreiro, que, com o seu ar de sempre se voltou para os presentes e com um gesto largo disse: o meu António julgava que era mais difícil aprender a fazer as perguntas aos animais! Achou graça!

O segredo continuou a passar de geração em geração, até que quase uma centena de anos depois, quando todos viram na França e Alemanha o “el dorado” e pensaram que também tinham um dia de ir até lá abanar a árvore das patacas, acabou-se o negócio do ferreiro. A partir de então para ferrar uma besta era necessário deslocar-se a Vila Fernando.

Porém, um dia, o último descendente d’O-dos-Gagos a exercer a arte, já bem enfeitado e a troco de mais uma grade de cervejas, revelou, finalmente, um segredo tão bem guardado durante gerações:

Ainda estão lá em casa, embora já bastante gastos, dois punções com as letras O e G, que querem dizer, como é óbvio, O-dos-Gagos. O ferrador recebia as ferraduras, em brasa, do ferreiro e no anexo, à porta fechada, gravava, na parte de dentro das ferraduras as letras. Depois de colocadas as ferraduras, ninguém mais dava por nada e mesmo que outro ferrador desferrasse a besta e visse as letras não lhe ligava. Se um dia fosse preciso, a ferrador tirava as ferraduras e via se tinham ou não a sua marca e sabia, de imediato, se tinha sido ele ou não a ferrar aquela besta. Simples, limpo e infalível.

Os punções estavam, despreocupadamente, guardados num buraco da parede, debaixo de uns papéis velhos e ninguém estava autorizado a entrar naquela dependência, onde se guardavam, também, os valores da casa.

Foi este, meus senhores, o segredo do negócio dos meus avós, que Deus tenha em descanso, a que eu, talvez por ser o pior deles, resolvi pôr fim.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

O escritor

O António é barra na redacção e conto ou décima que ouça não mais se lhe passa da memória.

Todavia aprendeu a ler com alguma dificuldade e quanto a contas e problemas, estamos falados: é o cabo dos trabalhos. Desenha com bastante dificuldade, na História e na Geografia, vai indo.

Estou em crer que mais um anito de escola não havia de lhe fazer mal nenhum. Assim, como assim, não tem grande corpo, é novo e tem muito tempo de ir aprender o ofício com o pai.

Foi com estas palavras que, por alturas da Páscoa, a senhora Professora fez o ponto da situação à mãe do Tonho dos Gatos, filho do caldeireiro da terra e, na boca da mãe, Ti’Engrácia, a mais fina das criaturas que Deus ao Mundo deitou e, sem sombra de dúvidas, o mais esperto dos alunos da escola.

Chegou a casa pior que uma fera: Então não queres lá ver, homem!? Disse-me que o nosso moço é fino, que escreve que nem um artista, mas que acha que ele deve fazer mais um ano de escola. Isso é que era bom! Pois se é dos melhores que vá a exame e logo se verá! Se calhar não lhe leva tanto como os outros; nem todos podem ser ricos e ter mimos para a paparicar a toda a hora.

O caldeireiro Eduardo, homem comedido e sensato, abanou a cabeça e não dando muita importância ao caso, desviou a conversa para assuntos do trabalho, dizendo que havia ali obra para entregar, pronta desde o princípio da semana e era melhor que ela fosse fazer isso. Ou não lhe fazia falta o dinheiro dos trabalhos? Quanto ao Tónio e à Professora, deixa por minha conta que eu trato de tudo; para a semana vou lá falar com a dona Elvira; não é assim que se chama a Professora? Veremos o que é melhor para o rapaz!

Pois é homem, já estou mesmo a ver!... Todos de enfiam o carapuço!... Acreditas em toda a gente!... Estou mesmo a ver que ainda o cachopo há-de querer ir assentar praça e não ter feito o exame. Então se todos os outros estão capazes par ir a exame, porque diabo não há-de estar o nosso? Então ele é menos que os outros, ou quê? Podes ir lá falar com a Professora, mas vê se não te deixas enrolar, como é teu costume!

O caldeireiro encolheu os ombros, sentou-se junto da mesa onde tinha os trabalhos, puxou o maço de “Provisórios”do bolso pequeno da jaqueta, acendeu um cigarro e recomeçou a trabalhar.

Mas, num salto o caldeireiro, voltou-se para a mulher, abriu-lhe muito os olhos e gritou-lhe: Querem lá ver o raio da mulher!? Não sabe dizer duas coisas, é burra todos os dias e parece que agora é ela que veste calças, cá em casa! Cala-te minha estúpida, pois se calhar nem percebeste direito o que a Senhora Professora te disse. Achas que ela tem algum interesse em não passar os alunos? Achas que qualquer artista tem algum gozo em não ver bem compensado e pago o seu trabalho? Cala-te que eu lá irei tratar do caso.

Passados dias, já depois das férias da Páscoa, o caldeireiro foi um dia lá à Horta Velha, a casa da Senhora Professora e pediu à rapariga que anunciasse o pai do António Pires que gostaria de ter uma conversa, com a Senhora, sobre o menino. Se achasse que ele devia ir à escola, que fizesse o favor de dizer.

Convidado a entrar, descobriu-se e sentou-se à mesa onde já estava a Professora, que, logo lhe perguntou se se passava alguma coisa com o menino, pois, nesse dia não tinha ido à escola e todos disseram que não o tinham visto.

Não minha senhora, o meu filho está bem e só faltou à escola porque a mãe foi comprar-me uns materiais para a arte e ele acompanhou-a. Que nos desculpe, pois devíamos tê-la mandado avisar. O que me traz cá é aquela conversa que teve com a minha mulher sobre os estudos do rapaz. É que nem sei se ela entendeu bem o que a Senhora lhe disse e, como todos queremos o melhor para o menino, gostaria de deixar tudo em pratos limpos.

Olhe senhor Eduardo – é este o seu nome? Não é? -, o seu pequeno é muito bom na Redacção e escreve com poucos erros no ditado; nas contas e nos problemas tem bastante dificuldade. Na História e Geografia vai-se safando e a desenhar também não é lá grande coisa. Mas ainda faltam quase três meses para o exame e até lá ainda muita água vai correr por baixo das pontes, apesar de caminharmos para o Verão. Neste tempo ainda há-de melhorar muito e até é muito natural que possa ir fazer um bom exame.

Mas… Tenho andado a pensar no António e daí ter dito a sua mulher que quem sabe se não seria melhor andar mais um ano na escola. Tinha possibilidade de aperfeiçoar-se, ia acompanhando e aprendendo a arte consigo e no fim do ano fazia um bonito exame, ficando melhor preparado e sem custos de maior. Além disso, este ano é dos mais novos da aula e, no próximo ano, metade dos da 4ª classe serão mais velhos que ele. Mas, o meu interesse é passar os alunos; o professor não gosta de deixar alguém sem ir a exame; com o António é diferente: sinto muito orgulho em ver como escreve, parece um pequeno escritor. E, se estiverem de acordo, não via qualquer grande problema em não o propor a exame. Principalmente porque estou convencida que era bom para ele e ele acabaria por se sentir muito bem entre os mais novos – não devemos esquecer-nos que sempre foi o mais novo da sua classe.

Parecem-me, Senhora Professora, que as suas ideias são muito simpáticas e estou perfeitamente disposto, quando chegar a altura, a deixar o destino do moço nas suas mãos. Entretanto, até lá, o assunto fica entre nós, pois mesmo à minha Engrácia vou dizer-lhe que ainda falta muito tempo para os exames e a Senhora Professora fará, de acordo com a nossa opinião, o que for melhor.

O tempo passou a correr, os pais do António foram os dois chamados à escola para esclarecerem, com a Professora, se queriam deixar o filho na escola, durante mais um ano, isto é, repetir a quarta classe. E, convencidos, os três de que essa solução seria a melhor para o António, assim se fez. Na proposta de alunos para exame da quarta classe não figurava o António Pires.

No ano seguinte, com dez anos e meio, apresentou-se a exame um rapaz, de nome António Pires, com uma caligrafia impecável, um ditado sem erros e uma redacção formidável, sobre uma história a gosto do aluno, um desenho mediano e uma conta e prova real certas, embora o problema não estivesse completo. Porém, na prova oral, a desenvoltura na fala e a facilidade de expressão levaram o júri a dar-lhe “Distinção” e, uma das Senhoras Professoras a pedir todos os dados do rapaz, pois queria falar com os pais sobre uma hipótese de o mandar estudar para o Seminário, como um dos protegidos da Casa Robalo que todos os anos custeava dois novos alunos, até chegarem a padres, em Portalegre.

E, passados doze anos, o caldeireiro Eduardo Pires, a Dona Engrácia da Conceição e a Senhora Professora do António – que ele sempre fez questão de assim chamar -, eram os três Convidados de Honra na missa nova do Senhor Padre António Pires.

Constam da sua bibliografia catorze livros, desde hábitos e costumes das gentes da nossa terra a ensaios sobre teologia, dialéctica e oratória, destacando-se as cartas e sermões que, ao longo da sua carreira, foi escrevendo.

Uma curiosidade: os catorze livros, todos com a sobrecarga de “exemplar nº 1, dedicado e oferecido à Senhora Professora do António, com a maior gratidão do Mundo e um pedido de Bênção especial e longos anos de vida”, foram oferecidos à Biblioteca do Seminário Maior, num pequeno armário de madeira feito pelo pai do António. A Senhora Professora faleceu depois dos pais do Padre António, após receber o 10º livro, deixando escrito que a caixa com os livros deveria ser entregue ao autor para que a enviasse ao seu destino – Biblioteca do Seminário Maior.

E, num pequeno memorial, a Professora escreveu: Quero lembrar ao maior escritor que conheci que outros, muito grandes, nem sempre foram os maiores. Na Grécia, Sófocles - o grande mestre da tragédia – perdeu um concurso de obras trágicas. No Brasil, Guimarães Rosa – um dos maiores escritores de contos de língua portuguesa -, não venceu um concurso de contos. Em Portugal, Fernando Pessoa – um dos génios da nossa poesia – perdeu, um dia, um concurso de poesia. E, para finalizar, na Escola da Serra, o Padre António – o maior autor que conheci – perdeu um ano, repetindo a 4ª classe.

Que nos perdoe tão maravilhoso prejuízo.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Filantropo

Juntou-se ali para cima de metade do povo. Uns na roda que cercava o pobre homem, outros espalhando-se pelas sombras das oliveiras e videiras da beira da estrada e um último magote encostado à empena da casa da Associação.

A canícula apertava e todos iam limpando a cara com os tradicionais lenços encarnados que era uso trazerem à volta do pescoço. Também, junto da fonte, a escassos trinta metros, alguns esperavam a sua vez para se dessedentarem debaixo da bica. A hora da sesta estava a chegar ao fim e não havia maneira de chegar a autoridade e também a empregada do posto de socorros para fazer uma primeira análise e tratar a ferida na cara do Chico Coxo, que continuava esparramado no meio da poeira do caminho, já com uma razoável poça de sangue junto da cara.

Ao lado, a “arma do crime”, constituída por uma lousinha, de arestas cortantes e tamanho apropriado ao lançamento com uma das mãos.

No chão, meio de bruços e em cabelo, de mãos estendidas, olhos semi-cerrados e um ar de mais terror que outra coisa, estava o Chico Coxo, parecendo olhar para um rasgão nas calças e sinal de sangue também no joelho direito.

A crescente vozearia daquela gente, ali junta, metia muito medo ao Chico, cuja capacidade de discernimento era poucochinha, como se diz no povo. Desde nascença sempre fora apoucado, mas nunca tinha feito mal fosse a quem fosse. Por isso já as opiniões começavam a pender claramente para a defesa do pobre homem, contra alguns, poucos aliás, exaltados, que o apelidavam de malandro, que melhor fora se se deitasse ao trabalho, em vez de se meter, constantemente, em trapaças.

Ali por perto, num vaivém sem grandes passadas e cada vez mais sorumbático à medida que o tempo ia passando, o Ti’Zé da Abelha, autor da pedrada que prostrou o Chico, ia ouvindo, sem proferir palavra, mesmo os que lhe criticavam a
acção, alegando que não se atira assim uma pedra daquelas, por mais grave que tenha sido a ofensa. Pode matar-se uma pessoa.

Mas, logo vinha outro que achava muito bem que alguém ensinasse o madraço a não se meter com as outras pessoas, a respeitar toda a gente e a não provocar distúrbios na terra.

Porém, logo se soltaram as vozes em defesa do Chico, dizendo que nunca fez mal a uma mosca, nunca desrespeitou fosse quem fosse e até já tinha sido muito útil quando avisou sobre incêndios, ou na outra vez em que o Manel da Carlota ficou debaixo do carro, lá na ladeira das Vagens.

Os ânimos iam-se exaltando e parece que ainda ninguém saberia o motivo da pedrada que atingira em cheio o pobre homem.

Já com uma assembleia mais reduzida, chegou finalmente o jipe da Guarda Republicana, de onde desceram o Cabo Maçarico e um guarda que vinha a guiar e acompanhou o superior com um bloco na mão e uma esferográfica. Chegados junto do Chico, disse-lhe o Cabo da Guarda:

Conheces-me? Tens medo de mim? Podes levantar-te?

O Chico como que acabou por se sentir, finalmente, protegido. Esboçou um trejeito de sorriso e levantou-se, dizendo que sabia bem que era a Guarda e que não tinha medo, porque não tinha feito mal a ninguém. Foi então que apontou o dedo ao Ti’Zé da Abelha, enquanto encolhia os ombros, quando o Guarda perguntou quem lhe fez aquilo na cabeça e porquê?

Foi a vez de perguntar ao acusado se tinha sido ele a atirar a pedra e porque o fizera, ferindo com gravidade, que poderia mesmo ter sido muito maior, aquele pobre homem que a Guarda conhecia bem e nunca teve nada a apontar-lhe.

O Ti’Zé confirmou o arremesso da pedra, porque apanhou o tratante a sair de sua casa, certamente com o intuito de roubar alguma coisa, ou meter-se com alguém que por lá estivesse. Só o apanhou a saltar o muro da tapada, mas vinha atrás dele desde casa. E rematou: Olhe, atirei o que encontrei mais à mão. Não queria feri-lo,
nem fazer-lhe mal, mas calhei a acertar-lhe, o que se há-de fazer!... É tratá-lo.

Os Guardas olharam um para o outro e disse o Cabo: uma vez que há feridos, e que o acusado confessa e se mostra arrependido, vamos apenas…

Foi a vez de se pronunciar o sr. Amílcar, um homem que ali casara na aldeia e era muito ouvido e respeitado na terra. Constava que antes de ter feito fortuna lá pelas Áfricas – razão porque lhe chamavam o “brasileiro” –, estudara. Começou por pedir licença para falar com o Chico, com quem costumava ter longas conversas e perguntou-lhe o que tinha feito e porque lhe tinham atirado a pedra?

O homem levantou os olhos e, num à vontade fora do habitual, respondeu:

Senhor brasileiro, eu vinha na estrada e deu-me muita vontade de arrear a calça. Saltei o muro da tapada do Ti’Zé para me ir abaixar lá atrás dele. Quando vinha
outra vez para a estrada!... Olhe!... E apontava para a testa ensanguentada ao mesmo tempo que se dirigia ao Cabo da guarda e ao “brasileiro”, chamando-os ao pé do muro da tapada para lhes mostrar a prova que estava lá atrás, bem visível.

O “brasileiro” quando viu o guarda e o Cabo pegarem outra vez no bloco para tomarem notas, voltou-se para trás e acrescentou: Deixem o pobre do Chico em sossego, pois ele tem mais juízo que muitos que aqui estão, vai para três horas. Qualquer dia ainda acusam o pobre de filantropo, ou coisa que o valha, e logo os senhores virão a correr para se voltarem sobre este ou outro desgraçado. E, com um sorriso e muito boas tardes, afastou-se.

O Cabo da guarda voltando-se para os circunstantes, mandou-os embora e, quanto ao senhor “brasileiro”, resmungou em voz baixa: Lá por andar por onde andou, ou ter estudado o que estudou, não fez mais que perturbar o desenvolvimento normal das diligências; Melhor fora que se metesse na sua vida e deixasse os outros cumprir o seu dever.

Meteu-se no jipe e deu ordem ao Guarda Matias para arrancar. Já fora da povoação, em plena estrada, foi o guarda que quebrou o silêncio:

Oh! Chefe, o “brasileiro” não será parvo de todo e, logo me pareceu, quando o vi chegar-se, com aquele narizinho empinado, que não a ia fazer boa. Sempre me saiu cá um farsante!... Mas… antes que mal procure, o que queria ele dizer com aquela de… espere lá a ver se lembro…filantropo?

Aquilo, guarda Matias, são palavrões só para despistar. Tenho a certeza de que nem ele mesmo saberá o que querem dizer. Mas, pensa bem: Então não fomos lá para investigar uma agressão?

É claro chefe, foi por isso que chamaram e lá fomos! Exactamente uma agressão.

Então a palavra do brasileirote só pode querer dizer agredido e nada mais. Quando chegarmos ao Posto hei-de ver num livro que lá temos e onde estão as palavras todas da nossa língua portuguesa.

Mas olha que gostei da tua observação e da maneira como topaste logo os trejeitos do artista que, quem sabe, começou por se abeirar de nós para perturbar o nosso trabalho e baralhar a nossa investigação.

É isso mesmo, afinal ele é capaz de ser um grandessíssimo filantropo. Veio ali para agredir o normal desenvolvimento das diligências da Autoridade.

E, à guisa de descargo de consciência, voltou-se para o guarda e segredou-lhe:

Olha Matias a continuares com esse espírito fino e essa tua inteligência, podes chegar longe, cá na Guarda!...

segunda-feira, 29 de março de 2010

Chão dos gaios

Três gaios e duas pegas disputavam a primazia na hortita do chão das oliveiras e logo que se aproximava alguém estranho, refugiavam-se nos eucaliptos e nas mimosas que da barreira do baldio pendiam sobre a horta, onde andavam a comer e a beber, e tinham uma tira, ao longo do valado, por sua conta.

O Ti’Recas andava consumido com todo aquele rosário de desgraças: ou os gaios e as pegas comiam tudo, ou as árvores que os acoitavam não deixavam vingar nada em quase meia horta. Alguém que por ali passasse tinha de ouvir todo o rol de acusações do velho Recas – era uma desgraça, logo na melhor horta da casa -.

Era tal o desânimo que tudo lhe passava pela cabeça: Chamar alguém, que tivesse uma boa arma e boa pontaria e dar cabo daquela passarada; Convencer o “Trocas”, tido como o melhor gaioleiro das redondezas, a caçar gaios e pegas para vender como aves de estimação; armar, ele próprio, costelas, boízes, ou outros estratagemas, para dar cabo daqueles demónios, cujos prejuízos ia contabilizando enquanto regava a água do açude, nos dias em que lhe pertencia, por partilha.

Da última vez que contou, os pássaros já tinham comido quatro maçarocas completas e começado mais duas; um prejuízo dos diabos, dizia o Ti’Recas, enquanto no meio do milho ia dando cabo dos rebentos dos eucaliptos e das acácias que iam invadindo a propriedade toda. Por mais esterco que para ali carrejasse não havia novidade que vingasse, uma vez que as raízes chupavam todo o chorume e humidade.

Um dia em que aproveitando a boa sombra das árvores, que tanto detestava, fazia a sesta, passou por ali o Ti’Tonho da Azenha que, antecipando-se às lamúrias do compadre Recas, foi dizendo:

Salve-o Deus, compadre. Ainda bem que tem aqui esta sombra tão agradável – não conheço, em toda a nossa ribeira, uma frondosidade assim; bem hajam tais árvores que, infelizmente acabam por lhe comer o chão quase todo, mas…

Ora aí está, salta de lá o Ti’Recas; por um lado esta peste que estende raízes até quase ao outro lado da horta e, por outro, a danada da passarada, que parece não ter milho em mais lado nenhum, fazem a escarpelada sem ser preciso levar o milho para a eira. E uma horta que podia dar milho para comer e vender, nem chega para uma ou duas cozeduras de pão. Mas, compadre, uns e outros vão ver como elas lhe mordem; tenho cá uns planos que darão cabo dos pássaros e sem dar fim às árvores, vão acabar com a mama do bom estrume e água duas vezes por semana.

O Ti’Tonho que sempre gostara de meter a sua colherada, não deixando de juntar veneno, disse que quanto aos pássaros pensava que se arranjasse uns moinhos a fazer barulho e uns bons espantalhos, com uns trastes velhos que acabasse de despir e tivesse o cuidado de não lavar, pois, até chover, teriam fedor suficiente para afugentar vivo que por ali passasse, e muito menos parasse para comer.

Apanhado desprevenido, o Ti’Recas nem pestanejou, mas quanto o compadre se despediu e seguiu ribeira abaixo, começou a digerir as palavras que lhe ouvira: essa do moinho a fazer barulho até está certa, mas a história dos espantalhos com a minha roupa e sem ser lavada… Quem julga o estardalho que é? Se calhar lava-se todos os dias e veste roupa lavada!... Vai ver, quando por cá passar, um fantoche, mas com o retrato dele desenhado no papel da cara – já quando andávamos na mestra ele me dizia que eu tinha muito jeito para fazer bonecos; pois chegou a hora de aplicar a minha habilidade e dar-lhe o troco dos trastes sem ser lavados, e fedendo, lá pendurados.

Quanto às “mais belas árvores de toda a ribeira”, também não há-de perder pela demora: vou mesmo avançar com o meu plano! E é para já, pois gostaria de apanhar as raízes quando estiverem na força do viço, para não me escaparem nenhumas. Em casa arranjou um novelo de baraços que esticou de ponta a ponta da horta, junto à barreira do terreno baldio e começou a cavar uma vala de uns setenta centímetros de largura, espalhando a terra, pelo lado da horta. Continuou a cavar e ao cabo de quase dois meses de trabalho, tinha cortado milhares de raízes que se dirigiam para a horta e a vala estava já mais funda que a altura dele. Já encontrava poucas raízes pelo que acabou por dar a vala como terminada.

Mas veio-lhe uma ideia genial à cabeça: Porque não revestia a vala com paredes – até tinha pedra suficiente ali ao lado – e depois, uns dois ou três palmos abaixo do nível da horta, fazia uma canalização com lajes e ganhava um bom bocado de horta. Pelo cano onde podia andar de pé ia examinando e cortando qualquer raiz que tentasse atravessá-lo e ir buscar chorume ou água à horta. E, se as árvores acabassem por secar, ainda tinha melhor lugar para dormir a sesta: não há fresco que se compare ao que vou ter dentro do túnel! E, com uma porta aqui à entrada até serve de arrecadação.

Com o tempo, as árvores começaram a não comer da horta, a novidade começou a vingar melhor quase até acima do túnel e, os gaios e as pegas acabaram por ser enganados pelo Ti’Recas que escondido no túnel, com acesso por um buraco para baixo de um pé de milho, conseguia disfarçar laços e pegar os três gaios e outras tantas pegas, que fizeram uns bons caldos, para vingar todas as inquietações que haviam originado ao velho Recas.

Uma das lajes acabou por ceder e o buraco não voltou a ser aberto; mas também, nessa altura, já não era preciso o túnel. O filho do Ti’Recas, ao tomar conta da horta, começou por limpar o baldio e, depois de cortar todas as mimosas e arrancar as raízes para que se extinguisse o mais possível a espécie, passou aos dois eucaliptos e cortou-os!... O Ti’Recas, na casa dos noventa e muitos, foi pela última vez ao chão dos gaios e cada machadada nos troncos das árvores não lhe doeram menos que facadas. Pensava ele, de si para si, com as suas recordações:

E eu que cheguei a praguejar contra aquelas duas árvores; dois dos primeiros eucaliptos que se plantaram nas redondezas e, inclusivamente, foram objecto da visita de muita gente, que nunca tinha visto semelhante espécie… Foi meu avô que trouxe as duas plantazitas duma feira da Ponte, embrulhadas numa saca molhada. Nunca soube que estava tão ligado a elas… Dava um braço, ou outra coisa qualquer, para…nunca vi nada na minha vida que mais impressão me causasse… aquelas árvores pelo ar abaixo a estatelarem-se no chão… mas não se curvaram, caíram direitinhas… Caíram direitinhas… Caíram direitinhas… Caíram direitinhas…

Até ao resto dos seus dias, era ouvir o Ti’Recas: Caíram direitinhas… Caíram direitinhas… Caíram direitinhas…

quinta-feira, 18 de março de 2010

O exame

Invariavelmente, entre as duas e meia e as três menos um quarto, sentava-se nas escadinhas de acesso ao terraço do Mercado do Chão do Loureiro, olhava, pausadamente, para as janelas da Escola Nº10, da Costa do Castelo, e, aí pelos cinco minutos para as três, continuava a descer a Calçada Marquês de Tancos, passava ao lado da igreja de S. Cristóvão, descia as escadinhas até à Rua da Madalena e, antes do Poço do Borratém, atravessava a rua e entrava nas escadas dos Armazéns Alfredo Pires Forra, onde trabalhava, na distribuição.

Este homem, na casa dos quarenta anos, de nome Gilberto Ferreira da Costa, era filhote de pai galego e mãe portuguesa, morava no Largo dos Lóios e trazia dois filhos lá na Escola nº10. A mulher, Maria Rosa, trabalhava na copa de um restaurante da Rua Barros Queirós e, como tinha horários mais compatíveis, era ela que mantinha os contactos com a escola, no que respeitava aos filhos.

O director era novo, na idade, na profissão e na escola e tinha substituído um colega que ocupara aquele cargo por dois ou três anos, e sucedera a um velho director que estivera no cargo duas ou três décadas. Havia uma auréola à volta da figura de director da escola, que agora poderia ser de alguma forma esbatida, pelo que muita gente ficou na expectativa de ver o que faria um jovem professor, naquele lugar.

Quanto à identificação do mirone, que todos os dias ficava ali a olhar as janelas, veio a saber-se que o homem era pai de dois alunos de lá, pois na aula de uma das professoras, os alunos viam o homem sentado nas escadas e começavam sempre a dizer: “Carlos Alberto, está além o teu pai!”.

Sobre o homem, propriamente dito, também o director foi abordado pelo Sr. Dias, pessoa muito conceituada ali na zona, membro habitual da Junta de Freguesia e
dono da capelista onde a escola se abastecia de pequenas coisas e muitos alunos
compravam livros, cadernos e outro material escolar. A cantina da escola era obra de uma Associação de Benemerência de que o Sr. Dias era vogal da direcção. Daí os contactos frequentes entre o Sr. Dias e o Director da Escola, pelo que, pode dizer-se, passou a ser uma das poucas pessoas das relações do referido Director.

O senhor Dias, era um beirão de pequena estatura, anafado, de trato simples e muito boas maneiras. Muito querido e estimado no meio. Dizia ele, com muita tristeza nos olhos, que ali, às portas da Mouraria e de muita miséria, havia muitas crianças que tinham de se levantar, pegar nos quatro tostões que estavam ao pé da enxerga e, no maior dos silêncios, sair, passar na padaria a comprar uma carcaça, lavar a cara no chafariz público e dirigir-se para a escola. É que se tinham o azar de acordar a mãe, que, por acaso, tivesse ido dormir a casa, acabavam por chegar à escola cheios de hematomas, ainda a chorar. Não calcula, senhor Director a pena que tenho de muitos destes meninos, que aos sete e oito anos têm de acordar e fazer pela vida, como gente crescida. Ficam ansiosos pela sopa da nossa cantina e veja o que comem!... Alguns pouco mais comem até à noite!...

Vinha depois o senhor cónego do Coleginho, quase no Benformoso e pároco de S. Cristóvão, onde passava a maior parte do tempo. Padre na casa dos setenta, homem muito experimentado e vivido, com largas décadas de África e muitas histórias gravadas na memória; se não estivessem gravadas, conseguiria esquecê-las, assim estão permanentemente presentes, para desconto dos meus pecados. Mas, digo-lhes meus senhores – falando para o vogal da Associação e para o Director da Escola –, comparado com esta miséria social daqui, andei sempre por oásis, para não dizer, pelos arredores do Paraíso.

O extracto social daqueles bairros velhos, donde provinham os alunos da Escola Masculina Nº10, que ocupava todo o piso superior do palácio dos Marqueses de Tancos, com entrada pelo nº 27 da Costa do Castelo, baseava-se em gente humilde que ganhava a vida como varinas, ardinas, vendedeiras ambulantes e com banca nas
praças, moços de fretes, engraxadores, empregados na restauração etc. – gente humilde mas honrada e respeitadora –. Havia, depois, muitas mulheres, em quartos alugados, com filhos de pais incógnitos, vivendo, segundo as palavras dos próprios garotos: “A minha mãe trabalha nas leitarias; entra muito tarde e trabalha até que os clientes querem; às vezes ganha bem e outras, os clientes ainda lhe batem; quando o meu tio vai lá a casa vou dormir em casa da minha vizinha”.

Era assim o ambiente naquela área que compreendia a encosta entre o Castelo de S. Jorge e a Praça da Figueira, desde a Mouraria, passando ali por S. Mamede ao Caldas, parte de Alfama e Castelo, propriamente dito.

Numa das conversas habituais o sr. Dias abordou o problema dos Cursos de Adultos que habitualmente iam fazer exames lá na Escola Nº 10. Sabe sr. Director devo pô-lo ao corrente do que se diz, para que não venha um dia a ter surpresas. É, tenho a certeza absoluta, uma injustiça atribuir aos seus antecessores, actos menos honestos no que se refere a pagamentos para aprovarem alunos em exames de adultos, mas se são as próprias escolas e explicadores que passam a ideia, esta gente acaba por ficar aterrada quando pensa em fazer o exame. Diz-se, sr. Director, que para Carnide, onde por vezes algumas escolas daqui da zona levam os alunos a fazer exame, ainda é onde se conseguem melhores condições – qualquer coisa como quatro ou cinco contos, mais quase outro conto para a carta de exame –. O sr. perdoar-me-á, mas achei por bem dizer-lhe isto; é o que se espalha nas escolas particulares das Escadinhas, da Madalena, de Santa Cruz ao Castelo, etc.

E, aquele homenzinho que todos os dias pode ver ali sentado em frente das suas janelas, é uma dessas vítimas; veio ter comigo a tirar nabos da púcara, tentando saber como irá o sr. trabalhar. Disse-me, inclusivamente que a escola ainda não tinha decidido qual o lugar para ir fazer exame, porque não tinham conseguido informações certas acerca de preços e serviços. E, se não é indiscrição, que lhe disse o sr. Dias, perguntou o Director?

A entrada do sr. cónego Mendes ajudou o sr. Dias, que pareceu aliviado por poder não responder à pergunta do Director. Mas a insistência do Professor, depois de introduzir o padre no assunto, ruborizou, levemente, as faces do capelista que, disse o que pensava: Saibam sr. Director e sr. Cónego, como já lhes disse, não acredito em bruxas…mas que as há, há!... Não conheço o sr. Director, mas tudo farei para o ajudar se estiver no sentido que me parece estar e pelo qual tenho sempre pautado a minha vida e digo-o, na presença do sr. Cónego e meu confessor. E o sr. Cónego, que pensa sobre o assunto, se não levar a mal perguntar-lhe? Faço minhas as palavras do amigo e sr. Dias; pode contar connosco, se quiser a nossa ajuda. E, do pouco que conheço de si, parece-me que vamos todos na mesma e boa direcção.

O Director não pensava abrir o jogo, mas não quis forçar o capelista a adiantar uma resposta a dar ao homenzinho das escadas. A época da entrega dos papéis para as candidaturas a exame aproximava-se, era interessante que na Escola houvesse candidatos suficientes para pelo menos um júri e era necessário atrair inscrições, sem alertar os intermediários que deviam continuar na incerteza. Foi, pois, nessa ponderação que se dirigiu ao padre e ao capelista, fazendo deles emissários e reservando-se, assim, perante as “escolas e explicadores”:

Primeira premissa: nunca cobrei, nem permiti que se cobrasse qualquer verba em exames de adultos. Como devem calcular, pela minha idade, não tenho grande experiência nestas andanças. Todavia, presentemente, a haver número suficiente de candidatos, formar-se-á um ou mais júris de exames de adultos, na nossa Escola. Dadas as minhas funções de Secretário de Zona Escolar e Director da Escola, serei Presidente de Júri. Aqui para nós e sem sair daqui, não permitirei que seja cobrado um único tostão a qualquer candidato a exame, pelo facto de ter ficado aprovado, ou para que lhe seja passado o diploma de exame e respectiva certidão. Uma coisa é, porém fundamental: as escolas não devem fazer a mínima ideia do que vai passar-se, mas, no primeiro dia das provas fica já convidado o sr. Cónego a fazer-se
aparecido lá pela escola e assistir a uma pequena palestra que farei aos alunos, elucidando-os dos direitos que têm a possuir o diploma e da certeza absoluta que ninguém do júri irá receber nada, de ninguém, para que alguém passe no exame.

Até lá, devemos informar os candidatos que o exame deve ser feito na escola da área de residência, que nunca devem dizer, nas escolas, ou aos explicadores, se pagam ou não pagam para ser aprovados e terem o diploma. Que vão sempre deixando para depois dos exames. Todos terão o diploma pelo preço do impresso e do papel selado que irão comprar ao capelista ao fundo da calçada. É muito importante que as escolas e os agiotas sejam apanhados de surpresa. Parece-me que eu não irei falar nada, mas especialmente o sr. Dias, pode, através da Junta de Freguesia, avisar que os candidatos a exame de Adultos devem inscrever-se na Escola da sua residência; são os candidatos que se auto propõem – lá na Escola ajudamos os candidatos. E informá-los de como devem agir perante as escolas, os explicadores e outras pessoas que lhes peçam, seja o que for.

O Sr. Dias, o sr. Cónego e o Director da Escola fizeram, com a maior das discrições, o trabalho de sapa como tinha sido acordado e, conseguiu-se um grupo de vinte e dois candidatos a exame da quarta classe – Adultos.

No primeiro dia de provas, vinte e um de Junho de um dos anos sessenta, apresentaram-se os três membros do Júri – O Director da Escola, na qualidade de presidente, e duas Sras. Professoras, como vogais –. Apareceram na Escola um dos Adjuntos do Director do Distrito Escolar – previamente convidado pelo Director da Escola e Presidente do Júri – e o sr. Cónego Mendes, que na sua qualidade de capelão escolar estava de visita à Escola e, a pedido do Presidente do Júri, se juntou aos presentes e cumprimentou e desejou felicidades aos candidatos.

O Director apenas disse: estão aqui vinte e um candidatos, pois falta um, e esperamos que saibam todos o mínimo para poderem passar no exame. O Júri
ajudará quanto puder, tendo em consideração a vossa situação e podem estar seguros que não têm que pagar nada a ninguém, nem para passar, nem para terem o diploma. Logo que terminem o exame e as pautas sejam afixadas, lá fora, os candidatos aprovados podem descer a rampa, entrar na capelista do sr. Dias e comprar um diploma e o respectivo selo e meia folha de papel selado para a certidão. Ficará tudo aí por vinte escudos. Depois, sou eu, não como presidente do Júri, mas como Secretário de Zona que passo os diplomas e as certidões e o meu trabalho é pago pelo Estado e não por vós. Obrigado aos visitantes pela honra que nos deram com a vossa presença e vamos trabalhar; agora com a porta fechada. Ponham, por favor, o bilhete de identidade em cima da carteira.

Acompanhadas as visitas até à saída da escola, o director voltou à sala, distribuiu o papel e pediu a uma das vogais que lesse o texto do ditado, explicando algumas palavras que iam sendo escritas no quadro. No final, perguntou se estavam todos calmos e se podia ser começado o ditado. Durante a prova os professores foram passando por todos os examinandos e pelo canto do olho, verificando se havia casos graves. Havia um ou dois excessos de erros, mas cada examinando pôde, no final, ressalvar alguma palavra que quisesse. Numa palavra em cuja dicção a Sra. Professora teria sido pouco clara, fizeram-se as ressalvas e só dois erraram.

Na Redacção pediu-se uma pequena história sobre casos da vida profissional de cada um e antes de passar a limpo deu-se uma vista de olhos.

Os Problemas foram lidos e explicados até parecer que estavam perfeitamente ao alcance da maioria dos candidatos e as Contas foram igualmente supervisionadas antes de passadas para as provas.

Corrigidas as provas escritas, foram afixadas as pautas e os resultados não foram tão desanimadores como muitos poderiam esperar: Dezoito candidatos aprovados na prova escrita, iriam fazer provas orais nos dois dias seguintes: nove em cada dia.

Avisava-se, no fim do edital que as provas orais eram públicas, até à limitação da sala e as cartas de exame e certidões dos candidatos aprovados poderiam ser pedidas imediatamente após a saída das pautas, em cada dia, bastando entregar na Secretaria da Escola o impresso para o diploma e o respectivo selo e a meia folha de papel selado para a certidão. Não havia mais nada a pagar, pois o serviço não tinha emolumentos.

Nos dois dias seguintes foram aprovados todos os candidatos que fizeram as provas orais e no final do segundo dia havia quinze pedidos de diplomas e certidões, pelos examinandos e três pedidos pela escola das Escadinhas. No último dia de provas orais esteve na assistência o sr. Cónego Mendes, o Sr. Dias, o Adjunto do Director Escolar e “professores, explicadores e profissionais das escolas particulares que ali tinham candidatado alunos”.

Tudo acabou em bem, a Escola dez passou a ter poucos alunos propostos através das “escolas” e um número razoável resultante de auto-propostos que iam passando ao lado dos serviços das “ditas escolas”. De salientar um Ofício da Direcção Escolar de Lisboa, louvando o Senhor Secretário da 11ª Zona Escolar de Lisboa, pelo trabalho de divulgação e esclarecimento sobre a gratuidade, e a organização, condução e realização de Exames de Adultos, na Escola Primária Masculina Nº10.

O Ofício esteve afixado nas vitrinas da Escola, pelo menos enquanto o Director lá exerceu funções; o homem das escadas fez exame e pôde pagar a carta de condução; o sr. Dias e o sr. Cónego subiram na consideração das gentes do local.