quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O Zé Lines

Nos confins da Beira Alta, nas terras arraianas, na margem esquerda do rio Noeme, afluente do Côa, com a Senhora do Monte a nascente e aninhada num morro granítico – o Calvário –, está exposta a sul, a povoação do Rochoso, sede de freguesia, do concelho da Guarda.

Rodeada de barrocos, entrecortados por pequenas veigas, lameiros e terras de pão, contempla a poente a Serra da Estrela, para lá dos horizontes onde restam tufos dos últimos soutos de castanheiros e aqui e além pequenas manchas de pinheiros.

Nas veigas cultiva-se o centeio e a batata, nos lameiros pastam as vacas e nas terras mais áridas os rebanhos que hão-de dar o leite de que se fará o excelente, inconfundível e único “queijo da serra”.

Nos anos sessenta, ainda solteiro, fui apadrinhar um casamento, com a minha noiva, e tornei-me cidadão adoptivo do Rochoso.

Havia que cumprir os usos e costumes da terra que rezavam que todo o rapaz, de fora da terra, que ali fosse casar teria de pagar as “bicas”.

Seria sujeito a algumas partidas, no carro, pagaria umas boas rodadas, na taberna, e participaria numa farra, com a rapaziada da terra.

Foi então que conheci o Zé Lines, figura típica da terra, na casa dos quarenta, que não passava um dia sem ir a casa da madrinha – a mãe da minha noiva -, onde perguntava, da porta, enquanto ia entrando:

- Precisa de alguma coisa, minha madrinha?!...

Raramente o vi comer lá em casa, e, nos anos que tive o gosto de o conhecer, não me lembro de o ter visto sóbrio naquelas passagens nocturnas. Porém, sempre ali bebia o último copito do dia, uma vez que dali seguia para casa, um pouco mais adiante, na rua que vai dar ao Calvário, onde morava com a mãe.

Nascido e criado na aldeia, aprendeu a ler e escrever e depois trabalhou nas mais diversas ocupações.

Nunca foi amigo de andar a dar jornais, mas não recusava qualquer serviço a quem lhe pedisse, sobretudo se o pedido viesse da sua madrinha, ou do falecido padrinho, com quem chegou a andar na construção de estradas, pois o senhor Júlio fora fiscal da Junta Autónoma de Estradas.

Ia fazendo umas “cargas” de contrabando para Espanha; por isso, foi hóspede, por várias vezes, dos calabouços de “nuestros hermanos”, nas terras de Fuentes de Oñoro a Salamanca. Todavia, fazia gala ao afirmar que nunca fôra preso por fazer mal a alguém, ou por roubar.

Quando dizia roubar, exclamava: “toque-le”!...

De estatura mediana, cabelos muito pretos e olhos claros, uma paulada, numa desordem, deixou-lhe uma cicatriz no centro da testa. O amanho, imperfeito, de uma clavícula, por um “endireita”, provocava-lhe um desacerto na altura dos ombros. As mãos acusavam algumas bombas de foguete, rebentadas fora de tempo, e os entalões nas pedras da ribeira, catando os peixitos.

No trato era muito educado e correcto e tinha o “coração” enorme. Amigo do seu amigo e capaz de dar tudo, por um amigo…

Tratava, com a mãe, um pequeno chão nas Fontainhas, logo atrás do Calvário; ali colhiam o sustento de ambos e tinham os mimos da casa, com que o Zé Lines gostava de presentear a “sua madrinha”.

Minava-se por dar uma volta, ir até à cidade, ou andar, simplesmente, pelos campos –, onde, em muitas horas, percorremos todo o termo do Rochoso e muitas vezes fizemos pescarias no Noeme e no Côa.

Vi-o caçar verdugos e procurar míscaros e tortulhos, no tempo deles.

No Verão, percorríamos as terras em volta e começávamos, antes do nascer do sol, a armar as costelas aos taralhões, até ao Monte Margarida e ao termo da Cerdeira.

Nos piqueniques que duas ou três vezes, nas férias grandes, fazíamos nas margens do Côa, junto a Roque Amador, o Zé Lines era o melhor ajudante que podíamos ter: capinava, abria clareiras nos arbustos, apanhava verdura, cuidava da garotada junto do açude, ia comigo à praça e ao talho no Sabugal… que saudades me despertam as recordações daqueles dias bem passados!...

Recordo, particularmente, uma conversa, num dos últimos serões em que estive com o Zé Lines, sentados junto às cruzes do Calvário.

Foi ali que, a meu pedido, o Zé me explicou a aplicação que deu aos duzentos escudos com que controlou a rapaziada que queria que eu participasse nas “bicas”, na altura do meu casamento.

É digno de registo o poder de síntese com que me foi descrito o caso: a rapaziada e até alguns homens feitos, queriam vazar-lhe um pneu do carro, fazer algazarra junto da casa de sua noiva e levá-lo a beber uns copos – tudo em nome da tradição e como baptismo de amizade –.

Pareceu-me que o senhor professor se não devia misturar e, na taberna do Zé Maria e na do sr. Domingos Marques, falei alto e grosso: o senhor professor já me deu dinheiro que chega para nos encher a barriga de bom vinho, mas como ainda não conhece ninguém – e só por isso –, não virá beber connosco. Ninguém toca em nada dele e, se alguém o fizer, racho-o!...ouviram bem, racho-o!...

Compreendi, perfeitamente, a maneira como o Zé Lines geriu o caso; apreciei a discrição que sempre teve sobre o assunto e percebi que estava ali um homem simples, mas que sabia respeitar os valores da amizade, que prezava mais que tudo.

Dei-lhe um abraço e agradeci-lhe, com um simples “obrigado Zé Lines”, gosto muito que seja meu amigo.

Vi, mais duas ou três vezes o Zé Lines, que, entretanto começou a passar de tempos a tempos pelo sanatório da Guarda, onde todos os cuidados médicos já não foram a tempo de evitar o falecimento, aos sessenta anos.

Perdi um grande amigo; que nunca me revelou todo o segredo da sua simplicidade, da sua maneira de ser amigo…

A sua maior satisfação era dar alguma coisa a alguém!...

E tinha, tão pouco!...