domingo, 29 de novembro de 2009

A buraca do Tó

Depois de deixar as Pedrinhas Negras e antes da Passada, estendem-se os alqueives num e noutro lado da Cova do Pereiro.

Em anos bons, como dizia o Ti’João Abelha, crescia ali pastagem para sustentar meio cento de cabeças de gado, mas acrescentava, com alguma ironia: eu, com quase setenta anos, nunca vi um desses anos bons, lá naquele vale de cães.

Terra do demónio que nem tem água boa para beber – se temos sede temos de ir ao outro lado, à represa do Cabeço Seixo. E acrescentava:

O meu avô andou por lá a cavar e, se bem que a pedra não fosse muito dura de roer, nunca encontrou o que procurava – água.

O meu pai tentou fazer lá uma charca para guardar as águas da chuva, mas o terreno é tão roto que nem as águas consegue segurar – trabalho em vão.

Eu plantei uns bons centos de calitros – que os doutores dizem eucaliptos, ou lá o que seja – e não vingaram mais de meio cento, que acabaram por crescer raquíticos, bons para canas de foguetes – foi dinheiro e trabalho deitados à rua.

Terra de lacraus e cobras é o que aquilo é. Segundo se conta há lá “abíboras”e parece que até uma, numa ocasião, lá terá mordido um homem, que acabou por ir desta para melhor – para mim foi para pior, pois nunca ninguém cá voltou para dizer que é melhor –.

Os coelhos e as lebres são do piorio; magros que nem cães e não deixam escarapentar uma folha verde nas hortas em redor. Segundo dizem os caçadores, mesmo chumbados vão sempre morrer longe, com o diabo que os leve.

Parece que nas pedras lá do fundo – um amontoado de lajes, já com montes de terra e árvores por cima -, foram para lá levadas para fazer uma ponte; segundo os mais idosos, uma espécie de “alcaduto” que levaria as águas desde uma represa, feita nas Pedrinhas Negras, até aqueles campos que, com água, poderiam dar de comer a muita gente.

E ali, perto da Terra, seria um verdadeiro maná para tantos precisados de uma horta de mimos.

Outros dizem que aquelas pedras são os restos de um cemitério que, muitos séculos atrás, teria servido a várias aldeias em redor.

A verdade é que nunca ninguém se quis meter com aquilo e até o caminho foi mudado para a meia encosta, de modo a passar mais afastado daquele lugar. Até se diz que se escondem lá coisas esquisitas; eu não acredito nisso e acho que aquilo não passa de um cóio de bicharada de todo o tipo: gatos-bravos, raposas, texugos, ouriços e toda a espécie de cobras e lagartos. Lobos, não me parece que consigam lá entrar, se não também lá se iriam esconder.

Por baixo das lajes de cima, há várias camadas de pedras e por muita que fosse a água das chuvas, ao chegar ali era engolida e desaparecia. Nunca ninguém soube para onde, mas o ribeiro não engrossava com ela.

Eu tenho andado muito por ali e nunca vi vivo a entrar ou sair daquelas pedras; os cães do meu sobrinho têm seguido muita caça e ali, naquelas estevas, perdem-na como por encanto, para não mais a toscarem.

Contava o meu bisavô que, um belo dia, um pastor seguiu um coelho que se foi lá esconder. Viu, perfeitamente o buraco por onde ele entrou e esgueirou-se, atrás dele, para apanhá-lo.

A entrada, entre duas grandes lajes, teria, e ainda tem, é claro, pouco mais de vinte centímetros, mas torce daqui, ajeita dali, e o rapaz lá conseguiu meter a cabeça.

Pensando no que sempre ouvira dizer: que onde passa a cabeça há-de passar o resto do corpo, esgadanhou um bocado mas passou e achou-se dentro de uma espécie de salita, onde caberiam, bem, meia dúzia de homens.

Não havia muita luz, mas o chão estava pejado de caganitas e bostas de todo o tipo e o cheiro era do piorio. Aqui o bisavô metia um aparte: devia cheirar a Tabú, do espanhol, pois comparado com o bafio normal do pastor, seria verdadeiro perfume!...

O Tó Rola, assim se chamava o pastor, olhou para todos os lados, viu luz em várias pequenas frestas, esgravatou com um tanganho que ali apanhou, depois pôs-se à coca a ver se ouvia algum sinal de vida, nalguma direcção, e nada.

Havia buracos para baixo, mas a sua coragem tinha-se acabado ali e agora era pensar em sair e mais nada. Como o buraco por onde tinha entrado era o maior, dirigiu-se para lá e, com as mãos à frente, tentou meter a cabeça.

A certa altura ouviu atrás de si ruídos e pensou que algum laparoto iria a entrar ou a sair. Porém havia que concentrar-se no buraco por onde teria de sair e teve a sensação que a fresta era agora muito mais estreita.

Esgravatou no chão e doeram-lhe as mãos, pois era pedra rija a da soleira do buraco. Voltou-se de costas para melhor ajeitar a cabeça a qualquer buraquinho que existisse, mas nada, não encontrava lugar onde fosse capaz de enfiar a cabeça.

Já suava e começava a ficar, com licença dos senhores, dizia o meu bisavô, à rasca. Lá por fora também não se ouvia vivalma e o sol ia caminhando para o Pontão. Quando lá chegasse era noite.

A estas horas já o Tó Rola pensava em rezar, até que ouviu barulho lá em cima, no caminho e gritou com quanta força tinha: Acudam!... Acudam-me, que morro aqui! Acabou por calar-se, pois não apareceu ninguém.

A horas de recolher o gado, não apareceu o Tó e aí o Ti’Jaime Mendes, onde ele era criado, passou palavra que o pastor não tinha vindo com o gado e que já devia ter chegado, pois andaria por perto, ali na da Cova do Pereiro.

Assobiaram lá nas Pedrinhas Negras e apareceu o “vadio”, cão que sempre acompanhava o Tó e que andava inquieto, agitando o rabo e batendo com a pata no chão – sinal de que estava a chamar, para que o seguissem.

Quando chegaram às vistas da Cova do Pereiro viram o gado amodorrado junto do montinho dos pinheiros e nada do Tó. Mas o vadio agitava-se cada vez mais e a um assobio do Galhibano, veio a resposta do Tó, assobiando também.

Foi só seguir o cão até à boca das pedras e já com uma lanterna começaram a incentivar o moço para que se esforçasse, pois se entrou havia de sair, mas…nada. Não havia maneiras.

Dizia-lhe, de fora, o pai: Faz força, diabo! Mas tu entraste e tens de sair, demónio! A não ser que tenhas comido aí alguma coisa que te tenha enchido a barriga.

Respondia o Tó: tenho a barriga colada às costas, desde o meio-dia que não como nada e já abaixei as calças três vezes, desde que aqui estou.

O Tó voltava a esgueirar-se, esticava as mãos e às tantas já eram dois a puxá-lo e nada.

O Galhibano que tinha sempre de arranjar uma das dele, foi-se ao ribeiro e trouxe uma vergôntea de sabugueiro, tirou-lhe toda a rama, deixando só as folhas da ponta. Deixou a vara escondida na parte de trás das pedras e veio à boca da fresta conferenciar com o Tó:

Bem, só vejo uma maneira de te fazer sair daí, tens de conseguir escorregar. Mas, o azeite da lanterna não chega!... Espera lá, tenho ali no bornal uma coisa que vai servir. E foi-se para trás das pedras. Pediu que se calassem todos e, calmamente, falou para o Tó:

Tenho aqui um verdugo que apanhei esta tarde e que está gorda como um texugo. Vou metê-la por um destes buracos aqui de trás e só a largo quando tu aí a agarrares. Depois bates-lhe com a cabeça aí numa pedra e untas a saída com a banha da cobra…Hás-de sair!...

Não, não!... Berrava o Tó; Uma cobra não!...Não morro apertado nas pedras, mas o coração não vai aguentar-se. Pelas tuas alminha, uma cobra não!...

O Tó suava em bica e quando sentiu as folhas da vara de sabugueiro a subir-lhe pelas pernas acima e a chegar-lhe quase entre as pernas, deu um impulso e, não se sabe como, apareceu fora do buraco.

Estava lá o Galhibano, muito aprumado, com a vara de sabugueiro na mão, qual lança de cavaleiro, que lhe disse, dando-lhe a vara: Guarda o verdugo, pois, com ele, podes safar outro de qualquer enrascadela.

Quando me contaram esta história ainda o local, que ninguém sabe o que esconde e só a outra História poderá desvendar, se chamava: A Buraca do Tó.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

“Séc’ló Notícias”

Completaram-se os nove anos entre as tiragens de cortiça na Herdade do Meio e na da Carvalheira de Cima.

Cento e cinquenta hectares de sobro do melhor, que acabavam de produzir quase dez mil arrobas de cortiça que, vendida a um industrial do Montijo, valeu a bonita soma de quase vinte mil contos – uma grande fortuna, na época, que foi entregue ao senhor Lavrador Lopes Guerreiro, em notas do Banco de Portugal e um cheque visado, no dia em que as camionetas começaram a carregar para o Montijo e para duas fábricas do Norte.

O senhor Lavrador meteu as notas e o cheque numa bolsa de pano que guardou na casa forte.

Uma construção de cimento armado, à prova de fogo, de tamanho descomunal e encastrada sobre uma sapata construída num poço aberto no chão, com frestas, cujas ranhuras inclinadas em várias direcções mediam menos de dois centímetros e eram protegidas, por dentro, por uma rede de malha fina.

A cavidade útil, um cubo de dois metros de lado, era acedida por uma porta encomendada a uma casa especializada de Paris, por um tio do Senhor Lavrador.

Classificada de alta segurança, era resistente ao fogo, tinha uma estrutura de amortecimento de explosões e dada a situação do celeiro não havia possibilidade de se inundar.

Abria para dentro e tinha um dispositivo comandado do interior, que com um simples toque escancarava a porta.

Pelo exterior, dois dispositivos de segredo e uma tranca camuflada e secreta, completavam o fecho do bunker.

Nesta casa forte estavam valores em dinheiro, sempre em quantidade avultada, pois o senhor Lavrador não queria estar descalço, como dizia a miúdo, jóias da família, documentos importantes, armas, correspondência pessoal e de importância familiar, etc.

Havia sempre fósforos, velas de sebo, um garrafão de água e uma manta dobrada, ao lado de uma pequena mesa e uma cadeira onde o se sentava o senhor Lavrador, quando tratava o que precisava.

Os segredos, das fechaduras e das trancas, eram conhecidos por sete pessoas, divididos em três grupos.

Essas pessoas agiam individualmente e do conjunto das acções dos três, resultava a abertura da casa forte.:

O Senhor Lavrador conhecia o segredo das trancas e os códigos das duas fechaduras, isto é, podia abrir e fechar, sozinho, a casa forte.

O filho mais velho, doutor Manuel, veterinário no concelho de Beja, conhecia o segredo da fechadura de cima; o feitor, André Cotovia, sabia abrir a de baixo e o maioral do gado sabia desactivar as trancas, mas nunca podiam estar os três junto da casa forte, a não ser quando o último dos três activava o seu segredo e chamava os outros dois, para que o mais velho rodasse o volante de ferro que abria a porta.

Outro grupo, idêntico a este, era formado pelo doutor Pedro, filho mais novo do Senhor Lavrador, que administrava as cinco herdades da casa e vivia lá no Monte da Herdade dos Bons Ares, que conhecia o segredo da fechadura de cima, pelo contabilista que sabia o da fechadura de baixo e pelo capataz, Agostinho Gancho, que sabia destravar as trancas.

No Notário havia um envelope lacrado com cada um dos três segredos.

Quando morria o titular, ou deixava de trabalhar na casa, o respectivo segredo era confiado ao novo confrade, sob juramento, pelo notário, na presença do senhor Lavrador.

Assim, a casa forte só poderia ser aberta pelo senhor Lavrador, por cada um dos grupos de três elementos, ou pelo notário que guardava as cartas lacradas, que só poderiam ser abertas e usadas, em caso de qualquer emergência.

No Natal de cada ano, os titulares das cartas com o segredo da casa forte e o notário recebiam, num envelope, uma recompensa do Senhor Lavrador.

Não conheciam as broas uns dos outros, mas todos se dirigiam ao Banco, nos primeiros dias do ano, para depositarem o prémio que tinham recebido do patrão.

Alguns dias depois do recebimento dos valores da cortiça, o Senhor Lavrador chamou o André Cotovia e o Agostinho Gancho, feitor e capataz da Herdade dos Bons Ares e homens da sua inteira confiança, para que apanhassem o comboio, em Beja, e fossem a Lisboa, ao Banco Ultramarino, levar o dinheiro da cortiça.

Deviam ir com os olhos bem abertos, sempre um em frente do outro, guardando a retaguarda do parceiro.

Depois de deixarem o comboio, no Barreiro, era só atravessar no barco e, no outro lado, em Lisboa, atravessavam aquele grande largo que tem um homem em riba dum cavalo, metiam na rua que tem um arco e logo viam uma grande casa com as letras Banco Ultramarino.

Há-de dirigir-se a vocês um porteiro fardado que vos dirá bons dias!

O André responderá: bons dias!... Vamos falar ao Senhor Mendes; trazemos esta encomenda para ele! E nesta altura mostras-lhe a bolsa.

No cimo dumas escadas estará um senhor de óculos que vos cumprimentará: olá senhor André!...Como está o meu amigo, o Senhor Lavrador Lopes Guerreiro? Mandou uma lembrança para mim? Vamos ali ao meu gabinete.

E lá dentro, dás o cheque e o dinheiro da bolsa ao senhor e esperas até que ele te dê um papel que guardas na algibeira.

Agradeces e despedes-te e já podem ir a uma taberna qualquer, comer bem e beber melhor.

Depois, apanham o comboio da tarde e, em Beja, há-de estar alguém para vos trazer para cima.

No banco o director, senhor Mendes, tinha avisado a portaria para mandar subir os dois homens com uma bolsa de trapos na mão. Quando tudo estivesse concluído o banqueiro telefonaria ao Lavrador e os homens seguiriam o seu destino.

Por volta do meio-dia toca o telefone no Monte e o senhor Lavrador ouve do outro lado o feitor André a dizer que tinha havido um contratempo e, como medida de segurança, não foram ao Banco.

Tinham a bolsa do dinheiro bem guardada e voltavam no comboio das duas, para que já tinham bilhete.

Agradecia que mandasse buscá-los, a Beja, lá pelas cinco horas. Depois esclareceria tudo; agora era melhor não adiantar mais nada, pois não sabia se estavam a segui-los.

O Lavrador comunicou ao banqueiro, seu amigo, que tinha havido um percalço com os emissários, mas os valores estavam em segurança e quando conhecesse todo o enredo da história lhe daria notícias.

Quando os dois homens chegaram à herdade foram entregar ao patrão a bolsa que nem tinham chegado a abrir e que o feitor ainda levava espalmada entre a camisola interior e a camisa, donde não chegou a sair.

O capataz deu um passo em frente e, calmamente, disse:

É a primeira vez que volto sem as ordens do Senhor Lavrador cumpridas; acho que aqui o Agostinho se pode gabar do mesmo.

Mas, mal pusemos pés em terra, à saída do barco, ouvimos aquela chusma de gajos – com sua licença – a gritar, correndo de um lado para o outro, como que a procurar alguém e entregando uns papéis que tiravam de debaixo do braço, dum bornal que traziam a tiracolo, resolvemos não nos meter em embrulhadas e, discretamente fomos comprar bilhete e viemos no barco de volta.

Sossegámos um pouco, pois parece que nos terão perdido de vista e, no barco não demos por ninguém a seguir-nos e, também na estação parece que não estava ninguém à nossa espera.

Metemo-nos na carruagem, sentámo-nos na frente um do outro e trouxemos para casa a sua encomendinha.

Que nos perdoe o patrão, mas sempre se disse que o seguro morreu de velho.

Aí, algo intrigado ainda, o Lavrador perguntou:

E que dizia essa gente lá na estação dos barcos e nos passeios à volta?

Adiantou-se o Agostinho, respondendo: “Cerquem os da cortiça!... Cerquem os da cortiça!..”

E logo, do lado, outros repetiam: “Cerquem os da cortiça!... Cerquem os da cortiça!”