quarta-feira, 30 de julho de 2014

O "Jerolminho"


A calma e quietude do Monte dos Ciprestes foi agitada por um burburinho e estranho corrupio das três, ou quatro, mulheres que, nessa tarde, ali estavam.

Quando viram o ganhão, que cuidava dos porcos, sair do celeiro, com qualquer coisa embrulhada numa saca, chamando pelo Ti’Chico, em altos gritos, e entrando na casa do capataz Manel Canhoto, gerou-se uma autêntica roda-viva.

As mulheres não pararam mais e, cada uma por seu lado, haviam de dar fé de tudo o que se passasse. 

E foi assim que todos presenciaram o estranho achado que o porqueiro transportava para fora do celeiro:

A chorar, a bons pulmões, estava ali, nuzinho como nascera pouco tempo antes, um menino, abrindo a boquita e movendo a cabeça, procurando um peito para mamar. 

Olharam uns para os outros e foi a Zefa que saíu em passo apertado, na direcção da casa do maioral, chamando pela Amélia que tinha uma criança de leite e podia, por isso, valer ao anjinho que dava sinais de fome e frio.

Veio também a Ti’Rita Ramalheta, comadre de serviço nos partos lá do Monte. 

Tratou da criança, lavando-a, verificando o aperto do baraço que atava o cordão do umbigo e vestindo-lhe o casaquito que a Amélia acabava de trazer. 

Embrulhou o anjinho no xaile, que trazia nos ombros e deu-o à Amélia para que lhe desse o peito.

Veio, finalmente, o sossego; logo interrompido pelas perguntas do Ti’Manel Canhoto que, olhando em redor, encarou o ganhão dos porcos e quis saber as circunstâncias de tão estranho achado.

Muito simples, Ti’Manel; ouvi chorar lá para os fundos do celeiro e quando cheguei ao pé do monte das sacas de fava, vi esta encomendinha e trouxe-a. 

Ainda olhei à volta, espreitei para todos os lados, escutei, perguntei se estava alguém e, nada.

E, algum dos presentes conhece o dono, ou dona, destes trapos que embrulham a criança? Perguntou, ainda, o Ti’Manel. 

Porém, ninguém se acusou e, já na presença da mulher, Ti’Florinda, foram todos mandados para o trabalho, ficando a criança aos cuidados do capataz e da Amélia, que lhe daria mama.

Pelo fim da tarde, veio o senhor feitor, que se deslocara à vila, tratar de negócios. 

Ao ser posto ao corrente do sucedido, chamou a sua casa o capataz 
e o ganhão e perguntou se sabiam quem poderia ser o pai, ou mãe da criança, ou se faziam alguma ideia por onde haviam de tentar descobrir.

Os dois disseram não saber de nada. 

O feitor mandou-os em paz e disse ao ganhão que recomendasse à sua Florinda que tratasse bem do achado. 

Quanto à criança, caberia às autoridades dizer que destino teria.

Queria tudo legal e havia, agora, que descobrir quem abandonava assim um inocentezinho.

O Feitor deu voltas à cabeça e não chegou a qualquer conclusão. 

Fez perguntas a todos e, inclusivamente, ofereceu e mandou oferecer, uma choruda recompensa a quem fosse capaz de indicar pai, ou mãe, que tivessem abandonado o infeliz. 

Deu garantias de perdão a quem se acusasse e confessasse o seu acto, mas, nada.

Por sua conta, o feitor seguiu várias pistas: 

Os ciganos que por ali acamparam, uns pares de semanas, desapareceram naquela manhã. Porém nenhuma cigana foi vista de barriga e as feições do menino não apontavam nesse sentido. 

A notícia da recompensa prometida pelo feitor, foi espalhada pelos ciganos e nunca ninguém foi reclamar nada.

Uma mulher, desconhecida nas redondezas, com uma barriga suspeita, mas não aparentando gravidez, foi vista perto do Monte e desapareceu, dois dias antes. 

Veio notícia de outro Monte próximo que essa mulher, procurou trabalho e foi aceite lá.

Uma pastora, de meia-idade, que andou metida com o Chico das cabras, parecia mais gorda nos últimos tempos que por ali andou. Despediu-se e desapareceu. 

Havia uns quinze dias que ninguém dera fé dela e o próprio Chico, apertado pelo feitor, não se desmanchou e jurou que ela tinha ido com um ambulante da feira, que lhe prometeu mundos e fundos e a levou com ele. 

E, que soubesse, a pastora não estava prenha, nem nunca estivera, depois que a conhecera. Mas como desapareceu sem deixar rasto…

Das mulheres do Monte, nenhuma apresentava barriga que justificasse parir, ou estar de esperanças, pelo que o Feitor, senhor Jerónimo, olhando a mulher, Emília do Ó, bem nos olhos, disse-lhe, ao serão: 

Parece-me que não se vai desfazer o mistério; ninguém sabe nada, ou se sabe não quer dizer, porque se alguém soubesse e quisesse, já teria vindo reclamar os quinze contos de réis que prometi a quem desfaça a meada. 

Mas o infeliz, não há-de crescer sem pai e mãe e temos aqui ocasião de aceitar do Destino o que a Natureza nunca nos quis dar. Se estiveres de acordo… 

Oh! Homem, mas eu não penso noutra coisa desde que foi encontrada a criança. Até já fiz promessas se não se descobrir quem abandonou o menino. É claro que será “Jerolme”, como o pai e terá a mãe Emília do Ó. 

Fala às autoridades e mete o dr. Angelino a mexer já os papéis para que tudo seja legal. Terá de ser baptizado quanto antes, não vá o diabo tecê-las.

A conselho do dr. Angelino, foi feito o registo do menino a quem foi dado o nome de Jerónimo do Ó Ventinhas Pé-Curto. 

Quanto ao local e data do nascimento, bem como filiação, o feitor deixou tudo aos cuidados do Advogado e Conservador, para que o menino passasse a ser, oficialmente, seu filho e da sua mulher Emília. 

E assim foi feito, em meados de Maio de trinta e dois, no Registo de Portel.

O “Jerolme” do Ó, cresceu, fez-se uma criança forte e saudável, distinguiu-se na escola como um dos melhores alunos do prof. Américo, aprendeu a andar a cavalo ainda menino e, querido de todos no Monde dos Ciprestes. 

Já rapazote e depois estudante de Veterinária, em Lisboa, nunca deixou de passar férias no Monte. 

Conhecia todos os trabalhadores e nunca deixava de salvar, quando era saudado.

Acabou por casar com a herdeira do Monte dos Ciprestes e sempre ali teve casa, mesmo depois de ter de mandar os cinco filhos, com a mãe, para Lisboa, onde podiam continuar os estudos.

Durante toda a vida, o Chico das cabras nunca deixou faltar em casa do senhor feitor, os bons cabritos, os melhores queijos e o melhor leite das redondezas, como ele não se cansava de dizer. 

Várias vezes acompanhou o sr. dr. Veterinário nas vacinações do gado e seguiu, sempre, com orgulho e comoção as cavalgadas e torneios em que participava o menino Jerolminho, depois sr. doutor.

Até que um dia…chegou a notícia de que nos fundos do figueiral, nos confins da herdade de baixo, o Chico das cabras se pendurara numa corda. 

O senhor feitor, sentiu um baque no coração e, já de avançada idade, pediu que o levassem ao local, pois queria ver e analisar o ocorrido, antes de avisar o dr. Jerónimo, já médico veterinário, pai dos seus netos e dono das herdades do Monte dos Ciprestes.

Mandou parar a charrete e apeou-se, junto do enforcado. 

Abriu-lhe uma das mãos e retirou um papel pardo, enrolado, que meteu no bolso do colete. 

Reparou que a outra mão do morto apontava para o chão, onde pôde observar os contornos de uma campa. 

Baixou a cabeça, respeitosamente, e mandou que depois de seguidos os preceitos legais, uma vez que o Chico não podia ser enterrado em terra benzida, do cemitério, por ter posto fim à vida, devia ser enterrado ali, debaixo daquela figueira.

Depois, já em casa, leu o papel que alguém escreveu ao Chico das cabras: 

Agradeço ao senhor “Jerolme” e sua defunta mulher, tudo o que fizeram pelo nosso menino; meu, porque o fiz e vosso porque o criaram, estimaram como filho e fizeram homem. 

Peço perdão pelas juras falsas que lhe fiz quando me perguntou se sabia alguma coisa sobre a pastora dos patos – a mãe do nosso menino - que morreu ao parir e está enterrada aqui debaixo desta figueira. 

O último favor é que me mande enterrar aqui junto da pastora e nunca revele ao nosso menino quem foram os pais que o geraram. 

Ele, um dia, há-de encontrar-nos, para nos perdoar. 





segunda-feira, 21 de julho de 2014

O barqueiro "Lérias"





O António da Costa, mais - e quase só - conhecido pelo "Lérias", tal como seu pai e avô já tinham sido, nasceu e cresceu nas margens do Tejo, entre os Engarnais e o Pego, nuns casebres, onde vivia com os seus e não longe do seu barco que transportou de tudo, desde pessoas a animais, passando por todo o género de artigos, entre as duas margens do grande rio Tejo.

Desde que se conhecia, há perto de sessenta anos, sempre fora barqueiro e, a qualquer hora do dia ou da noite, chovesse ou trovejasse, não se lembrava de alguma vez ter recusado um frete a qualquer pessoa que lho pedisse. 

Bastavam dois assobios para que, nos minutos seguintes, aparecesse o ''Lérias'', muitas vezes ainda a apertar as ceroulas, que depois aforraria, e, logo a seguir, desamarrasse o barco e o trouxesse para junto do pequeno cais de pedras. 

Limpava a água que estivesse no chão, carregava mercadorias e animais e ajudava pessoas a acomodar-se a bordo. 

Pegava, depois, nos remos, ou na vara, com que dirigia e empurrava o barco, avançava contra a corrente até tomar o ponto de onde mais facilmente chegaria ao outro lado, cerca de quatro minutos depois.

Ajudava a descarregar. Sentava-se no poial que seus antepassados ali tinham preparado, acabava de fumar a cigarrada e iniciava a viagem de regresso. 

Não havia horas; estava sempre de serviço; dois assobios e começava o trabalho, de acordo com o local onde estivesse o cliente que chamava.

O único vício que se lhe conhecia e que não fazia qualquer esforço para abandonar, era o tabaquito. 

Não se lembrava de alguma vez ter ido ao lado do Pego, buscar ou levar alguém, sem fazer um paivante, sentado no poial de pedras, antes de iniciar o regresso. 

Dizia, com a laracha que caracterizava as suas saídas, que quando levasse alguém sem a sua cigarrada, esse, nunca mais lhe daria trabalho. 

E, muito sério, acrescentava: "palavras do meu avô que Deus tem".

Uma das melhores prendas que se podiam oferecer ao "Lérias" era uma onça de tabaco "Superior", mas sem livro de mortalhas; essas vinham de Espanha. 

Desde que usava aquelas mortalhas, nunca a tosse o apoquentou, dizia ele.

Cada pitilho, formado por uma pitada de tabaco, tirado da onça com uma pinça feita pelo polegar e indicador da mão direita, enrolada na mortalha espanhola, e colada com o cuspo da ponta da língua, dava para três ou quatro fumaças. 

Vício de boca, pois nunca engoli o fumo, como o ''Lérias''repetia, vezes sem conta.

Até no dia em que fui levar a "patroa", já em trabalho de parto, para ser conduzida ao hospital, enquanto a aconchegavam no barco, preparei a cigarrada e puxei-lhe fogo. 

Talvez por isso, o meu filho, a quem pus o nome "Tejo", acabou por me nascer para lá do meio do rio.

Histórias!. ..

E lá vinham as prosas que umas vezes entretinham, outras distraiam e, até cansariam alguns fregueses. 

O "Lérias" contava as histórias conforme a cara dos passageiros, mas também sabia ouvir e apreciava uma boa passagem; minava-se por galgas bem metidas. 

Deliciava-se com a inocência de certas pessoas, mas nunca faltava ao respeito a ninguém e dentro do seu barco, onde era capitão e autoridade suprema, como ele orgulhosamente se intitulava, não permitia espertezas saloias, nem desrespeito pelos mais humildes.

Contava ele, então:

Um belo dia, tinha no cais a senhora professora dos Casais e um conhecido doutor advogado, de Abrantes, para serem transportados para o outro lado. 

Depois do paivante da ordem, ajudei a senhora a subir e a acomodar-se no barco; o doutor sentou-se em frente da professora.

Não sei porquê, naquele dia não me estava a apetecer fazer jus ao meu nome - lérias - e mais cabisbaixo que o costume, lá ia manejando remos e vara, sem me meter com ninguém.

Nisto, o espevitado do doutor, com ares de sabichão, atirou, à queima-roupa:

Oh! "Lérias", você sabe alguma coisa de leis?

Eu, senhor doutor advogado, como houvera de saber! Nunca as estudei, nem, precisei delas para nada!...

Não é isso, homem! É que você acabou por perder metade da sua vida!...

Eu, encolhi os ombros e continuei a remar. 

Mas a seguir, dando uma de finória, disse-me a professora:

Oh, senhor "Lérias", você nunca foi à escola, pois não?

É verdade, senhora professora! 

Desde que me conheço a minha escola é esta: o rio, o meu barco, o meu serviço e a minha família. De resto ...

Então não sabe ler nem escrever!?

Pois não, minha senhora! Mas, graças a Deus, o meu barco não deixa de andar por falta disso!...

A verdade é que perdeu, sem proveito, metade da sua vida!...

Aí por alturas do meio do rio, onde a água faz uma pequena gola e corre mais forte, penso que por terem feito uma descarga na barragem, veio uma onda, maior que o normal, e o barco virou-se, caindo os passageiros para a água, ficando agarrados a uns juncos, não longe do barco.

Ao ver a professora e o advogado, esbracejando no meio da água, perguntei: 

Vocês sabem nadar?

Não! Responderam os dois; Tire-nos daqui, homem de Deus, senão ainda morremos para aqui afogados!

Aí, cá o "Lérias", percebendo que o perigo era nulo e tudo não passaria de roupa molhada e um pequeno susto, voltou-se para "ambos os dois"e disse:

Que pena, acabariam perdendo a vida os dois, por nunca terem aprendido a nadar! 

Isto, se aqui o morto que nada conhece de leis, nem nunca aprendeu a ler e escrever, não ressuscitasse para vos salvar!

E, já de novo dentro do barco, ao chegar ao local de descida, ainda o "Lérias", que aqui vêm e a terra há-de comer, acrescentou:

Cada um é para o que nasce e tem, no seu campo, tanto ou mais valor que qualquer outro terá no seu meio. 

Não se deve discriminar ninguém. Saber mais ou saber menos, não deve servir para diminuir ninguém. 

E, lembro-me dos ensinamentos do meu avô:

Os que mais sabem, são, na maior parte das vezes, os que menos dizem. Pelo contrário, o fala-barato, que nunca se cala, fá-lo para esconder o que não sabe.

A humildade é muito bonita e eu gosto de vê-la praticar: não aos simples como eu, mas aos que julgam ser o que não são e acabam caindo do andor.

O meu avô falava em heróis e santos com pés de barro... mas confesso que dessas histórias já não me lembro bem!...

E também não interessam aos senhores que sabem muito mais do que eu.

Vão com Deus e desculpem lá o mau jeito!

quinta-feira, 10 de julho de 2014

O"cornel" Isidoro

 Era finório, o Isidoro! 

Não havia, nas redondezas, quem se lhe comparasse a imitar um casal de perdizes, na altura do acasalamento, ou uma lebre, nas ocasiões do cio. 

Apanhava pássaros, à mão, e pescava sem rede nem anzol. 

Órfão de mãe e sem pai conhecido, vivia com o avô, nos casebres das azenhas da ribeira do Verdigal, já a caminho de Mouriscas.

Era companhia desejada por todos os caçadores. 

A bater mato e a descobrir tocas, ninguém o batia e a seguir pistas, tinha mais faro que qualquer cão bem dotado. 

Sempre que podia fugia ao avô e aparecia, depois, com três ou quatro peças de caça, ou um junco, da ribeira, cheio de peixes.

Nascido e criado lá nos casebres das azenhas do avô, nunca soube fazer muito mais que abrir e fechar águas, remendar buracos nos açudes e cômoros das levadas, ligar e desligar rodízios e, embora pouco sabendo de contas, fazia, rigorosamente, as maquias dos taleigos. 

Tinha uma sensibilidade muito especial, segundo as palavras do avô, para picar as pedras das azenhas. 

Desde pequeno que o rapaz tratava das pedras da farinha triga e todas as freguesas gabavam a farinha moída por elas.

Completava o grupo um velho burrito - o cornel -, que distribuía os taleigos de farinha e transportava, no retorno à azenha, as sacas de grão para moer. 

Fazia cinco voltas por semana, habitualmente acompanhado pelo Isidoro, pois o velho Severino raras vezes saía dos limites dos moinhos. 

Eram, assim, poucos os dias em que o cornel não tinha de alombar com os taleigos e, escarrapachado sobre eles, o matulão do dono novo, que em termos de mimos era muito mais pródigo que o velho moleiro. 

A cacheira trabalhava muito mais, o tempo para ir tosando umas ervas era encurtado e, se o dono se lembrasse de ir até à ribeira pescar ou nadar, acabava por ficar carregado, preso a um pinheiro, muitas vezes ao sol, até que o soltassem para continuar caminho, até ao seu destino. 

Sorte de burro, pensaria resignado o cornel, na esperança que, um dia, a vida pudesse mudar. 

Às vezes suspirava pelo patrão velho, mas que havia de fazer!...

O cornel era manso como as pedras do chão, dizia o velho Severino. 

Porém era melhor guardar-lhe a traseira; pois se pressentisse algo ao seu alcance, por trás da rabada, mesmo carregado, levantava as  patas traseiras e lá vai disto: coice que acertasse era para fazer mossa! 

Mas, para mim, que me lembre, nunca levantou uma pata, sentenciava o velho moleiro.

A lei entre moço e cornel era bem clara: se se portasse às direitas, como lhe dizia o dono, comia, bebia água, levava uma ou outra cacheirada, mas muito raramente e tudo ia correndo bem. 

Se se armasse em vivo, se levantasse as patas para o dono, se mostrasse os dentes, ou se tentasse despejar a carga, era bordoada que fervia, sem dó nem piedade, ficando muitas vezes as marcas bem à vista, na cabeça, especialmente junto dos olhos.

Até as freguesas diziam: Ah! Isidoro, que se um dia o cornel te puder ser bom, vais pagá-las todas juntas! Podias tratar um pouco melhor o pobre animal! Mas espera-lhe pela pancada e talvez ainda venhas a ver a falta que te faz se um dia o não tiveres!

Ora, o burro é ele e quando se arma em esperto tem de saber por onde elas lhe doem, respondia, quando estava para aí virado, o Isidoro.

Um dia de fins de inverno, depois de semanas de chuva, com os caminhos para os engenhos cheios de lama e algumas barreiras caídas, impedindo a passagem nas zonas mais estreitas, o Isidoro, a pé, atrás do animal, reparou que tinha carregado de mais para as condições do caminho, mas que aguentasse e, lá ia desfechando umas cacheiradas sobre o lombo do cornel.

Numa passagem mais estreita do caminho, ao desviar-se de umas pedras caídas, o animal colocou uma pata em falso e caiu para um barranco, espalhando os taleigos e não conseguindo libertar-se a ponto de sair do buraco. 

Os puxões pela arreata e as ajudas do rapaz, foram insuficientes para fazer voltar o cornel ao caminho. 

Mais não restou ao Isidoro que ir chamar o avô a ver o que poderiam fazer, para salvar taleigos e burro.

Chegados ao local, encontraram os taleigos todos espalhados pelo chão, restos da albarda e do cabresto, mas do burro, nem sinais. 

Procuraram nas imediações, seguiram pistas de pegadas, olharam em redor, até onde podiam alcançar e nada. 

Foram até ao povo e perguntaram a quem encontraram e tudo em vão. 

Ninguém dera pelo burro nem vira quaisquer sinais dele. 

Regressaram às azenhas, ainda com alguma esperança de que o animal se tivesse libertado e puxasse à malhada, mas não havia mais nada a fazer senão ir pedir uma besta emprestada, recolher os taleigos e começar na distribuição, até que o tempo se encarregasse de fazer aparecer o cornel, ou alguém desse notícias dele. 

Foram passando os tempos; o Ti'Severino comprou outro burro a que acabou por pôr o nome de "major" até que fizesse o tempo suficiente para ser cornel se merecesse ser promovido. 

O avô mandou o Isidoro às feiras de gados das redondezas, acercar-se e revistar acampamentos de ciganos, e chamando, disfarçadamente, o nome "cornel" quando passava por algum burro, mas tudo tempo perdido. 

Do burrito, nem novas, nem mandados.

Até que um dia, um pedinte que passava habitualmente pela aldeia, e sabia do desaparecimento do burrito, foi procurar o moleiro e disse-lhe que na feira de Santa Cita, a muitos quilómetros dali, lá para os lados de Tomar, ouviu um cigano a vender um burro, que disse ter encontrado para os lados de Alcaravela, sem arreios nem cabresto, mas manso como as pedras do chão. 

Não sabia como se chamava mas só o venderia a quem fosse de terras de sentido contrário, como medida de segurança. 

O que queria era negociá-lo para bem longe e tinha pressa no negócio, pelo que aceitava vinte notas e não se falava mais nisso. 

Jurava, à fé de quem era, que o burro não fora roubado.

Numa feira de Abrantes, o Isidoro, já homem e dono dos engenhos - o velho avô já o tinha deixado -, viu um burrito e, de repente, alguma coisa lhe fez lembrar o cornel. 

Só que o achava mais novo; mas os ciganos fazem do velho novo e também o contrário, quando lhes convém e foi chamar um parente para o ajudar nos entretantos de um possível negócio. 

Começaram por qualidades, defeitos, força, idade, enfim tudo o normal para avaliar uma besta. 

Quando o Manel lhe garantiu que o burro tinha entre doze e quinze anos, o Isidoro que pouco conhecia de números e contas pensou: 

Então se tem entre doze e quinze e o cornel desapareceu vai para cinco e já tinha mais de vinte e cinco em nossa casa, não é possível que seja ele.

Ao perceber aqueles pensamentos do parente, o Manel disse-lhe: mesmo que encontrasses agora o teu burro não te serviria para nada: se estiver vivo há-de ter mais de trinta e cinco anos - para que quererias um animal tão velho; para teres, daqui a alguns dias, o trabalho de enterrá-lo?

O que te dói, sei eu: tratava-lo mal, mas ainda foi o melhor que tiveste e como castigo nunca conseguiste livrar-te das culpas do seu desaparecimento. 

Deixa lá que com o tempo tudo passa e hás-de deixar de pensar no pobre burro.

Das três alcunhas que mimoseavam o moleiro, uma só o incomodava e tirava do sério, sempre que lhe chegava aos ouvidos: "cornel Isidoro". 

Muitas das mágoas que afogava nas tabernas das terras por onde ia entregando os taleigos eram mais penosas quando alguém lhe tocava no assunto. 

Acabou por ser encontrado, sem vida, sobre o catre onde passava as noites, com os restos do cabresto do velho burrito, à cabeceira.