quarta-feira, 30 de abril de 2014

O mancanha



O Alfredo era o mais novo de sete irmãos, todos rapazes. 

Para guardar o gado, ir à missa e outras coisas que não agradavam à rapaziada, o mais pequeno alinhava à frente; para ir a qualquer lado, estrear uma camisita, ou receber fosse o que fosse, lá estava o pequenito no fim da fila.

O “Fredito” tinha os olhos mais claros que os irmãos, a cabeça, anormalmente grande e fazia quase tudo, com a mão esquerda. 

Dali vieram as variadíssimas alcunhas que, antes, durante e depois da escola, acabaram por não o incomodar: cabeçudo, olho-de-gato, canhoto, lince, miau, carolas, mancanha – de mão canha, canhota, esquerda –, a que havia de melhor lhe assentar e todos lhe aplicavam.

Guardava o gado com muita habilidade e pedra atirada por aquela mão esquerda, fazia estragos no alvo a que fosse destinada. 

As ovelhas e as chibas conheciam as pedradas do “Fredito” e as mordidelas do “farrusco” que respondia, solicitamente, ao assobio e à voz do dono.

Na escola, não foi além da segunda classe; apesar de não se revelar um barra, não lhe foi dado tempo para se mostrar – os mais velhos já trabalhavam fora e o “Fredito” tinha de ajudar na casa, levar o almoço e o jantar, guardar o gado e ir fazer os recados, não sobrando tempo para ir à escola –. 

Mais tarde aprenderia um ofício, dizia o pai.

Nos “balhos”e nos descantes, andava de grupo em grupo, sem se integrar, e, por norma, junto dos homens mais velhos. 

Nunca aprendeu a “balhar”.

Na taberna, eram-lhe reconhecidas aptidões especiais para o jogo do “burro” e para a “bêlha”; já nos jogos de cartas não passava de bom perdedor. 

Tanto o “burro” como a “bêlha” eram jogos de arremesso de vinténs e malhas, respectivamente, pelo que a sua mão esquerda se revelava, assustadoramente, certeira. 

Todos queriam ser seus parceiros.

A armar aos pássaros, a descobrir ninhos, a localizar a melhor novidade de fruta e a achar uma estrema, não havia quem lhe passasse a perna.

Conhecia todo o gado do povo e quando voltava com o pequeno rebanho que abria todos os dias, enquartelhava todas as reses sem se enganar.

Nas sortes ficou livre: disse, directa e desabridamente, ao sargento que os pais precisavam dele, que ainda tinha dois irmãos a servir – um em Elvas e outro em Abrantes - e já outros quatro tinham sido soldados. 

Ele, que não sabia ler nem escrever, não devia ser preciso, lá na tropa.

Ainda aprendeu o ofício de sapateiro e daí derivou para albardeiro; porém, as suas exigências não eram grandes e ganhando a vida sem se esforçar muito, nunca foi longe na arte.

No ano que foi à ceifa, não passou de moço aguadeiro e não ficou muito entusiasmado para voltar – era trabalho violento de mais, dizia ele.

Estou a ver o Alfredo, que nunca casou, já na casa dos cinquenta, quando eu era garoto, a narrar e representar os quadros da batalha campal, travada à saída de Santa Clara, noite fora, à margem do arraial das festas de Alcaravela: 

“O meu Manel, tem a mania que é teso! E é. 

O meu João, não se lhe fica atrás. 

O Chico e o Pedro, são do melhor, no jogo do pau. 

Vai daí, o Manel, com a cabeça grande e a barriga cheia de vinho, prega uma cacheirada no Tonho das Lercas, que foi logo a terra. 

Os galhibanos da Presa, sacaram dos paus e foram para o meu Manel, que já fazia costas com os outros três irmãos. 

A primeira cacetada do Chico pôs logo o “fanfas” do “artista”, tido como o melhor jogador de pau das redondezas, fora de combate; acertou-lhe uma mocada na tola e além da cabeça, partiu-lhe o cacete pelo que não teve mais que “dar às de vila Diogo”. 

Estava gerada a confusão: os meus irmãos iam-se defendendo e distribuindo bordoada, por tudo o que aparecia a talhe de foice, e encaixando, também, as pauladas dos das Lercas, que já andavam juntos com os da Presa. 

Bem, só se perderam as que caíram no chão – o meu Manel andou com um braço ao peito, o Chico com um lanho na cabeça um ror de meses, o Pedro a cambar de um joelho e o meu João ficou, para sempre, com uma orelha rachada.”

Então e tu, Alfredo?...

“Eu, sempre fui homem pacífico... 

Estive de reserva e olhe que não fui preciso. Os meus quatro irmãos, chegaram para os vinte e tal que se lhes opuseram e daí que assim tive mais tempo para ver bem as coisas e ficar inteirinho, para contar as histórias e apaziguar a malta.

A verdade é que acabámos todos, na taberna do Cigalho, a beber mais uns copos…

É que até nem somos inimigos uns dos outros. 

Aquilo também é preciso para a malta treinar e mostrar o que vale. 

As cachopas gostam de ver.

Mas, a sorte dos gajos foi que tudo acabou antes de chegar o meu Luís e o “Agusto”, que ouviram tarde de mais os assobios do Manel. 

Se não, aquilo, ainda acabava mal. 

Assim, olhe: mais cacetada, menos cacetada, só se perderam as que caíram no chão!...” 

E eu que o diga!...

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Os lobos do Ti’Balejo


O Luís era o segundo de cinco irmãos e duas irmãs, nascidos e criados lá na Serra. 

O mais velho, o Manel, moleiro toda a vida e amigo de mandar as suas pachouvadas; nunca foi capaz de se impor aos três ou quatro moleiros, de fora, que semanalmente batiam a aldeia, ainda que dispusesse de um moinho de vento, duas azenhas e, mais tarde, uma moagem mecânica.

O segundo na escala de idades, o Luís, foi toda a vida marchante; mas, do que ele gostava mesmo era de vinho, embora, com copos ou sem eles, fizesse, na mesma, os negócios.

Seguia-se o José, na terra conhecido por José Matias e fora dela pelo Moucho, sem dúvida, um dos homens mais influentes nas transformações que a aldeia sofreu, nos meados do século passado.

O Augusto vinha a seguir e foi sempre ganhando uns dinheirinhos nos negócios da resina e dos pinheiros para madeira.

O benjamim, o Narciso, foi sempre uma figura apagada, bastante míope, sem nunca ter tido filhos. Viveu e desempenhou um papel interessante como encarregado de animais e hortas do Seminário do Fundão, onde, com a mulher, ainda hoje são lembrados e muito queridos.

Das raparigas, a Maria, a mais velha casou para a Queixoperra e foi mãe de um dos primeiros licenciados da aldeia. 

A Emília desempenhou, sem nada a referir, o papel de esposa e mãe, lá na Serra, no Melhim, junto dos pais, que ainda recordo, vagamente.

Num pequeno casebre, paredes meias com as casas de dois filhos, a Emília e o Augusto, depois de passar o ribeiro do Freixo, a caminho da Chã, sentado numa tripeça e com uns óculos muito redondinhos, estava, invariavelmente, o Ti’João do Melhim, pai da família, a ler não sei o quê, nem onde, mas…a ler.

E, não se julgue que esta afirmação é descabida. 

Sê-lo-ia, por ventura, se não se tratasse da primeira vez que vi óculos e uma pessoa a ler. 

Nos meus quatro ou cinco anos, interrogava-me: para que serviam as rodas de arame que o velho tinha em riba do nariz.

É meu propósito contar, hoje, uma pequena história que ouvi ao Ti’Luís, o segundo na escala dos irmãos, a respeito das suas idas frequentes para as terras da área de Vila de Rei, passando pela Louriceira, de onde regressava, sempre bêbedo e a desoras e, normalmente, sem perder o gado comprado.

Tinha um bom anjo da guarda que, a brincar, se dizia que eram os lobos. 

Ele, ainda sério, ou já bem aviado, contava, então:

Um dia, os lobos de Vila de Rei, quiseram reunir-se com os de Mação, para discutirem quem governava aqui na nossa zona. 

Quando os de lá falaram na Lousa, logo os de cá responderam que nem pensassem: que escolha a vossa; a terra onde o vento berra e a fome pousa?!...


Pois que seja na Alcaravela, disseram os nossos. 

Que é lá isso, amigos: lá nem homem sério, nem mulher bela; bebem de qualquer púcaro e comem de qualquer panela!...

Foram nomeando as terras umas atrás das outras e nunca chegavam a acordo, até que eu ia a passar e disse aos lobos:

“Deixem-me falar com o povo da Serra e arranjaremos tudo.

Penso que podemos arranjar um sítio neutro, onde um esteja no Mação, outro no Sardoal e outro, em Vila de Rei. 

Ainda assim um terá um ajudante no Penhascoso, outro em Alcaravela e outro no Milreu. 

A testemunha pode estar na Aboboreira. 

Todos em território seguro e uns em frente dos outros.

Até lá, quero guarda de honra…”

Ainda não voltaram a procurar-me, para dizerem o que decidiram!...

Continuam a fazer-me guarda de honra.


Devem andar a discutir!...

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Tristes alegrias da vida



Olá, Ti’Guilherme!... Deus o guarde com saúde!... Então como tem passado?

O velho, dobrado sob o feixito de gravetos que levava às costas, levantou ligeiramente os olhos, na direcção das vozes que ouvira e disse:

Guilherme da Costa sim, sou eu, desde que me conheço, vai para noventa e cinco anos, e, na graça do Senhor, vou bem, obrigado. 

Mas, antes que mal pergunte, quem me falou? 

É que nem tudo funciona como os meus ouvidos que, por enquanto caçam bem o que lhes passa ao alcance; já os olhos mal vêm os vultos, não distinguindo as coisas pequenas, nem quase o claro e o escuro. 

Mas a sua voz, que me perdoe, o meu amigo, não me é familiar. 

Vomecê não é cá da Terra, pois não?!

Sou, sim senhor! Quero eu dizer: sou filhote de cá, mas pouco tempo por cá tenho passado. 

Sou o filho mais velho do Amorim e da Carmelinda. E há uns bons pares de anos que não tem calhado vê-lo, quando por cá venho.

Perdoe-me as palavras; Porque não diz antes o neto do Zé Lourinho?

Era rapaz do meu tempo e falava muito comigo. 

Dei muitas jornas na vossa casa e sempre lá fui bem recebido e pago a tempo e horas. 

Vivi parte das suas alegrias quando se orgulhava de ter mandado estudar os netos e nos dizia que valera bem a pena pois iria ter, se Deus quisesse o primeiro Professor nado na nossa Terra. 

Nunca esquecerei aqueles olhos, a marujar quando se referia aos netos e aquilo que esperava deles. 

Um grande homem, o Zé Lourinho!...

Bem-vindo e bons ouvidos o oiçam. 

É o professor, não é? O primeiro que esta aldeia deu e que, pelo que me tem chegado, continua a estudar. 

Desejo-lhe toda a sorte que a minha gente não teve; nem eu próprio que, num só ano, acabei por ficar sozinho no mundo, como saberá: 

A mulher foi-se-me em Fevereiro, o filho, em Julho, lá ficou pela guerra e a minha mais nova, dizem-me que está para a Austrália, ou lá que diabo seja, mas vai para vinte anos que não tenho notícias dela. 

Conservo a triste alegria de lembrar-me do pouco de bom que tive; Isso, graças a Deus, ainda se me não varreu da memória. 

Mas magoa-me muito não saber nada: Estará viva? Terei netos? 

E quando as tristes alegrias da vida não passam de dúvidas, de lembranças, voltamo-nos para trás e que vemos?

Vazio! Até a memória nos vai faltando. 

Às vezes pergunto por pessoas que me foram chegadas e há dúzias de anos que se foram embora. 

Talvez por isso poucos são os que me procuram aqui neste fim de mundo. Chegam a passar e talvez pensando que dormito nem a salvação me dão!...

Olhe Senhor Professor, já hoje falei mais que nos últimos quatro ou cinco anos e, estou admirado, pois consigo lembrar-me perfeitamente da vossa casa, da adega onde bebi umas pinguitas, das vossas hortas, da felicidade do seu avô, quando falava de vocês. 

Eram alegrias verdadeiras que todos sentíamos. 

O Professor não é do ti’Zé Lourinho, do Amorim e da Carmelinda; É de todos nós, é nosso, da nossa Terra, da Serra. 

Não me leve a mal, mas quem sabe se hoje me deu uma das últimas verdadeiras alegrias da minha vida.

Vou passando o tempo aqui pela Figueira Regal, com os meus bichos: um bacorito, duas galinhas e um gato. Por enquanto levanto-me todos os dias e mais pelo tacto que pela visão, vou até ali ao meio dos pinheiros apanhar uns gravetos, ou alguma pernada que cai, as pinhas e umas mãos cheias de caruma que servem de acendalha do lume que me aquece. 

A minha sobrinha Conceição lava-me a roupita, e traz-me umas malgas de caldo para aquecer as tripas. 

Há anos que não vou às vendas nem à igreja.

Mas olhe que percebo perfeitamente quando o milho da tapada está na altura de desembandeirar, quando as batatas estão na altura de serem arrancadas, quando os figos, as maçãs, as cerejas, as ameixas estão maduras. 

Corto os cavacos todos com pouco mais de um palmo, tenho o canto da lenha sempre bem arrumado para não se pegar lá o lume e a lareira sempre bem varrida. 

Estes pequenos cuidados são as minhas tristes alegrias.

Ah! Deus tenha em bom lugar o maior homem que esta terra deu!... 

E ficou-se a rezar, fazendo-me um gesto de adeus, pois a voz estava embargada.