Sempre presente, atrás do balcão da pequena tasca, com um reservado onde se comia uma bucha e, nos fundos, uma mercearia, O Ti’Carloto, tinha uma postura inconfundível.
De falas mansas, com o sotaque maçanico mais timbrado que guardamos na memória, atrás da sua barriguinha imponente, ouvia muito atentamente e falava com suavidade.
A mulher, ti’Perpétua, surda que nem um penedo, estava sempre à coca, desconfiando que lhe bebessem algum copo sem pagar, ou comessem alguma coisa, à socapa. E o ti’Carloto, puxava por ela!...
Ali, paredes-meias com a igreja da Misericórdia, estava a recato das vistas dos transeuntes, por uma porta “tipo Texas”. Fechava cedo e, depois de fechar, sempre vi o ti’Carloto, fora da loja, sentado num banco.
Aos domingos, convergiam para a tasca, os pais dos garotos que frequentavam o colégio e estavam aboletados em casas particulares. E reuniam-se, ali, com uma dupla finalidade: comer a bucha que levavam, acompanhada de uma “Sagres” ou “uma metade com gasosa”e pagar os avios de mercearia que as hospedeiras dos filhos tinham levado, a crédito.
Recordo mais de uma dezena de pais de colegas meus que acabaram por se conhecer uns aos outros, nestas andanças da vida.
E, como era delicioso ouvi-los!...
Alunos que poucas notas positivas terão tirado, eram barras; outros, que não eram maus alunos, nem referidos eram.
Meu pai sempre se orgulhou dos filhos, mas não se excedia em elogios.
O ti’Carloto, bem informado sobre os seus “fregueses”entrava, às vezes nas conversas e lá ia pondo água na fervura quando alguém, assim mais no fim do “repasto”, se exaltava por não ver elogiado o seu filho.
Olhava para mim, sorria, piscava-me o olho, em ar de intimidade, e seguia em frente… Bem ti’Amorim – esta semana a Mari’Bela não se alargou: temos aqui só três mil réis. As personagens eram meu pai e a dona da casa, em que eu estava, à entrada da rua de S. Pedro.
Para aligeirar, um ou outro, mais bem disposto, lá adiantava alguma pachouvada, como dizia o ti’Carloto, quando entrava nas suas histórias.
Foi assim que ouvi, pela primeira vez, e ainda hoje sorrio, o célebre episódio que lhe é atribuído. E, verdadeiro ou fictício, convenhamos que assenta nas figuras e personalidades do Ti’Carloto e da ti’Perpétua, que nem sopa no mel.
Então lá vai, atirou o Joaquim Moleiro: Ó ti’Carloto, sempre é verdade que um dia destes foi à loja pensar a burra e, às tantas, gritava para a sua mulher que chegasse depressa uma luz, pois a burra dera um coice e ainda não sabia se tinha acertado em si, ou na parede?!...
Homem, tão certo como estares a ver-me:
O dianho da bicha desatou aos coices e eu, consegui segurá-la pelo pescoço. Eram coices que ferviam e eu, de facto, já nem sabia se acertavam em mim, se na parede. Gritei para a mulher, claro!... Então ela nem assim ouvia, mouca como é!...
Esta e outras histórias contava-me o ti’Carloto quando, depois do jantar, passava lá pela loja para comprar três tostões de castanhas, de amendoins, ou de bolachas Maria. Dentro destes valores o meu pai autorizava a venda para pôr no role, desde que as notas fossem boas – e, felizmente, por esse motivo, nunca deixei de poder comprar as gulodices –.
Não é verdade, ti’Carloto?!...