quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

O “cantecas”



O meu Luís Manuel – para nós o “manecas” – nem parece filho de quem é: o nosso pai era um homenzarrão, sanhudo e possante; a nossa mãe, avantajada de corpo e rija que nem um penedo. 

Nem um nem outro utilizaram muito os dotes físicos que a natureza lhes deu, pois, felizmente, não precisaram de trabalhar muito para governarem a vida.

Assim caracterizado pela irmã “Vangelina”, o Ti’Luis Manuel, sempre viveu lá por Abrantes, na companhia de uns primos, para aprender a arte de barbeiro e cabeleireiro, com uns senhores que tinham lá um “salão”.

De compleição física próxima do raquítico, sempre adoentado, com problemas de respiração e erupções na pele, desde cedo começou a claudicar das pernas, derivado à má circulação do sangue. 

Era o diagnóstico que o meu avô fazia do homem que ainda cheguei a conhecer e que hoje é base da personagem central desta história.

Quanto ao ofício que lhe mandaram ensinar, mal empregado tempo e dinheiro; nunca tirou um freguês que fosse aos mestres que o ensinaram e mesmo aqui na terra, contra os ciganos e o Alberto que foi curioso lá na tropa, também não convenceu ninguém – homens, é claro; pois mulheres que cortem o cabelo cá na nossa terra só a dele, enquanto foi viva. E quando por aqui passava uns dias, não era o homem que lhe fazia a permanente; ia a Mação ao cabeleireiro!... 

Talvez porque não gostasse daquela família, o meu avô rematava assim a sua descrição do que ele baptizara de “cantecas”: Minava-se por andar atrás da música, lá da Chainça, e ainda andou a aprender a tocar qualquer coisa. 

Trouxe, para aí, restos de uma viola pequenita, que ele toca com uma fita esticada num arco de ferro; uma outra guitarrinha, parecida com os cavaquinhos que se ouviam pelos arraiais e feiras, a que ele chama de “banjo” agrada-me mais, mas o que nós queríamos era que se ajeitasse com a concertina que nunca deu uma moda completa, nas mãos dele. 

Com a morte da mulher, acabou por vir para aí, para a casa que foi dos pais, lá no Cimo do Casal e que nunca partiu com a irmã que sempre viveu por fora. 

Na cidade não deixou saudades: homem bom, inofensivo e apagado, para satisfazer os caprichos da mulher foi vendendo, uma atrás de outra, até à última, as courelas herdadas dos pais. Quando ficou só e ninguém quis saber dele, recolheu-se aqui.

Sempre achacado e de humor muito fraco, também nunca foi ajudado pela minha cunhada, dizia a “Vangelina”, quando falava, para alguém, do irmão. 

Ela, a única coisa que sabia fazer era luxar e, em casa, não mexia uma palha; coitado do meu irmão não teve a sorte que merecia e, agora que o que ele tinha a fazer era juntar-se a nós, prefere passar mal, lá na terra, onde nem sequer tem quem lhe lave a roupita. 

Nestes comentários está ela enganada, dizia o meu avô, pois tem quem lhe lave a roupa e lhe aqueça os pés e a irmã que se cuide, pois o catatau que ela queria fazer a alguma coisa que ele ainda tem, já outra o terá feito. 

E olha que aqueles que nunca trataram dele e se mostram agora tão caridosos é por verem que se arriscam a ficar sem nada do que é dele. 

A “Chica” pode parecer apoucada, mas está bem aconselhada e não vai deixar lã pelos outeiros. Há-de pagar-se bem pelas suas mãos; já alguém tratou de tudo.

A princípio ainda abriu a salita na varanda do Ti’Manel e montou lá a cadeira que trouxe de Abrantes. 

Tinha as navalhas bem afiadas e a máquina de cortar o cabelo sempre bem oleada e sem arrepelar nada. 

Mas, levava dez tostões por cortar a barba e dois mil réis por fazer a tijelada ao cabelo. 

O Alberto cobrava cinco tostões pela barba e quinze pelo cabelo. 

O barbeiro não tinha freguesia; ia tudo ao curioso!... Só a parentes próximos, ou em vésperas de festas fazia uns servicitos. 

No resto dos dias, metia a cabeça entre as mãos, horas a fio; depois ia até à fonte encostado ao cajadito que lhe aliviava as pernas e, ainda com sol, recolhia a casa.

E por que lhe chamam “cantecas”, avô? 

Isso não tem grande história. Em pequeno a família, chamava-lhe “manecas”, derivado ao nome dele – Luís Manel. 

Aquela gente sempre puxou para a alta; o avô dele passava o tempo nas tabernas, nas festas e a vender jogo branco; o pai não deixou nem metade do dote que recebeu e a vender landum ninguém lhe ganhava; ele, coitado, fez o que pôde e, como os seus, acaba por não acrescentar nada ao que lhe deixaram. 

Mas a ele ainda podemos justificá-lo: nem a saúde, nem a mulher o ajudaram; já os outros podiam ter juntado uma das melhores casas da terra e, nada!

Mas vamos à alcunha: Em rapaz parece que tinha queda para a música. Acho que chegou a aprender lá na Filarmónica da Chainça. 

Quando por aqui se fixou e ainda tinha alguma alegria de viver e se podia mexer melhor, sanfonava horas seguidas nos instrumentos que trouxe. Às vezes até cantava algumas modas. 

E, vai daí, o povo tem destas coisas, houve um qualquer que lhe terá chamado “manecas cantecas”, depois era mais simples só “cantecas” e assim ficou!..

Cá por mim, não é parvo de todo e bem aproveitado até penso que poderia ter tocado qualquer instrumento. Às vezes esta gente do povo tem entoação e bem ensinados sabem aprender. 

Mas ninguém nasce ensinado e há-de morrer mais uma vocação escondida, pois o padre João já disse que ele até sabe muitas coisas de música; parece que conhece as notas, mas não foi puxado.

Acabou por ficar entrevado, aos cuidados da “Chica” que o amparou nos seus dias e sofrimentos. Manteve sempre boas maneiras e conversa muito atinada.

Lembro-me de um dia o meu avô me dizer, quando fui a casa num feriado do colégio: 

Quem está mal é o Ti’Cantecas; qualquer dia ainda faz alguma asneira, pois o homem está a sofrer muito. Ando a ver se lhe vou dar uma palavrinha. 

Não chegou a tempo; dois dias depois, a “Chica” encontrou-o pendurado numa corda, num dos barrotes da loja.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

O “Fortes”


O Domingos nasceu, e criou-se, nos contrafortes do Moradal, numa aldeia recôndita e muito aprazível, cuja vida andava à roda da ribeira do Cobrão que lhe corria sobre o meio-dia e ia engrossar a Ocreza, última tributária do grande Tejo, antes do Zêzere. 

Entre verdejantes matas de pinheiros, eucaliptos e oliveiras, restavam ainda os últimos tufos de castanheiros, restos dos soutos da região, que, anos atrás, ocuparam todas aquelas terras. 

Ao longo da água estendiam-se as hortas, estreitas e compridas, onde a muito custo de homens e animais se ia esgravatando o sustento e arrecadando milho, centeio, batatas e feijão, para as invernias das gentes e pastagens para o vivo. 

O Domingos era o quarto de uma irmandade de oito, seguindo-se às três raparigas mais velhas e deixando atrás de si as quatro irmãs mais novas. 

A família, remediada, tinha a sua junta de bois, o rebanho com umas vinte cabeças de gado, e o burrito para os pequenos serviços de carga, com ceirões ou de aparelho, e entre os varais da pequena carroça com rodados de ferro. 

No posto escolar do povoado, o rapaz foi até à terceira classe; daí em diante só na freguesia, uns três quilómetros acima, poderia fazer o exame do 2º grau. 

Consultado o senhor vigário, sobre o futuro do garoto, foi combinado que o Seminário seria o destino do único homem da casa. 

Se bem que a ideia não fosse inteiramente do agrado do pai, homem temente a Deus e devoto, que veria com melhores olhos, o lugar do filho à frente de uma casa de mulheres. 

Com os conhecimentos do padre, o garoto foi enviado para o Seminário de uma Ordem Religiosa, nos arredores de Braga, onde viveu tempos penosos, nos quatro anos seguintes. 

No quinto ano, estava o Domingos nos seus dezasseis anos, em meados de Março, abandonou o colégio e apareceu, com uma malita na mão e a cair de fome e cansaço, na Barroca do Cobrão.

Depois de dormir muitas horas a fio, procurou o pai e explicou-se: 

Meu pai, eu decidi que não serei padre; falei com o Superior do Seminário e disse-lhe que me queria vir embora. Não me levou a sério, pelo menos não o mostrou a princípio. Mas, depois, nem dá para acreditar a disciplina que me caiu em cima. 

Quando não aguentei mais… fugi e, não me pergunte como, consegui voltar a casa. O senhor padre terá a minha explicação, pois deve estar muito enganado sobre os amigos que diz ter naquela casa. 

A decisão foi muito mal aceite, desde os pais, às irmãs, passando por todo o resto das pessoas da terra; já para não falar no padre que ainda antes de ver o Domingos já o tinha condenado e só passados mais de quinze dias arranjou tempo para ouvir o rapaz. E, em confissão, como fez questão de exigir. 

Um bruto é o que ele é, dizia o padrinho, com ar de examinado. 

Podia vir a ser um fidalgo e vem acabar aqui, para vir a ser como todos nós, sem passar da cepa torta. Se quiser aprender a minha arte, não lhe levo nada; sempre é meu afilhado e até gosto dele. 

Além disso, ganhou, lá por onde andou, bom corpo, para malhar ferro. 

E assim foi; o Domingos havia de ajudar o padrinho e vir a aprender o ofício de ferreiro, especializando-se a fazer, reparar e desencravar fechaduras e a produzir e calçar todo o tipo de ferramentas para a lavoura. 

Quanto foi às sortes, já o padrinho dizia que o afilhado aprendia depressa e já sabia mais que ele; já podia ganhar a vida. 

No dia da inspecção, em que foi apurado para todo o serviço militar, não se juntou à malta para a almoçarada do costume e não regressou a casa. 

Comeu qualquer coisa numa taberna, bebeu uma cerveja e apanhou a camioneta da carreira até à estação, onde se meteu no comboio da Beira Baixa, com destino a Lisboa. 

Na cidade grande, procurou uns parentes que trabalhavam na estiva e fez também cargas e descargas de barcos, durante uns meses. 

Nesse tempo escreveu uma carta ao pai a dizer que estava noutro rumo, que iria fazer os exames no liceu para completar o que tinha aprendido no Seminário e depois havia de embarcar para ir conhecer mundo. Que não se preocupassem com ele, pois tinha saúde, ganhava para ele e viveria como escolheu, o melhor que pudesse. 

Antes do Natal desse ano, completou vinte e um anos e conseguiu entrar a bordo de um cargueiro, que tinha ajudado a descarregar, como ajudante da tripulação. 

Andou nessa vida quase três anos, até que, procurado como refractário ao serviço militar, acabou por ser detido e enviado para o Depósito Disciplinar de Penamacor. 

Evadiu-se e andou por Lisboa, até embarcar, de novo. Foi acabar no Forte Militar de Elvas, onde deveria cumprir sete anos de reclusão. 

Porém, com as boas graças pelo seu bom comportamento, a sua disponibilidade e habilidade para pequenos trabalhos da sua arte e o seu espírito aventureiro, havia, mais uma vez, de fugir, quando lhe faltava cumprir menos de doze meses de pena. 

Foi nesta altura que nos anúncios da sua fuga, apareceu pela primeira vez a alcunha do”Fortes”, que se evadiu, saindo normalmente, abrindo uma porta de que forjara a chave e acompanhando, com toda a normalidade os que saíam para a cidade. 

Não demorou muito a ser recrutado por quadrilhas de assaltantes que praticavam pequenos furtos e viviam a monte, muitas vezes com a conivência de populações que os encobriam em troca de alguma protecção. 

O “Fortes” fazia todo o tipo de chaves e não havia fechadura que lhe resistisse; era, por isso, muito requisitado para trabalhos da especialidade. 

Não tinha grupo certo e recusava a violência. Vivia, clandestino, de terra em terra, passando duas ou três noites em cada casa. Recorria às casas dos conhecidos das prisões, a quem garantia segurança e protecção e só saía de noite. 

Numa das passagens pela Serra, onde, ao que se dizia, o “Fortes” tinha um amigo, que fora soldado no Forte de Elvas, alguém disse ter visto, lá pelos cimos do casal, já ao lusco-fusco, um homem estranho, de estatura anormal, com um ar aterrador e um saco às costas, onde devia guardar as armas. 

Em surdina e com a máxima cautela, para não ser vistos, todos falavam que estava na terra o “Fortes” e, por isso, era necessário esconder ouro e valores, bem como trancar portas e janelas. O perigo andava por perto e havia que tomar todos os cuidados. 

Principalmente a garotada ficava aterrorizada quando se falava que o “Fortes” estava na terra. Recordo os quadros que se pintavam e o que se dizia sobre as quadrilhas a que pertencia. 

O meu pai, homem muito ponderado e sensato, explicou-me que o Ti’Augusto, do Cimo do Casal, foi soldado no Forte de Elvas e ficou amigo dum preso que, às vezes, o vinha visitar, mas não fazia mal a ninguém, principalmente na terra do seu amigo. 

Para mim o assunto ficou encerrado. 

Todavia, nunca ninguém me conseguiu explicar como era o “Fortes”, que visitava o amigo da Serra. Seria o Domingos, da Barroca do Cobrão que passava lá na terra? 

É que da boca do hospedeiro nunca saíu uma palavra sobre a assunto.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A vinha do Pedrógão


As videiras do Pedrógão sempre me deram mais trabalho e canseira que vinho. 

Não sei onde estava com a cabeça, quando ofereci dinheiro por uma pedreguina daquelas; nem os dos Espinheiros, os da Ribeira de Boas Eiras, ou os do Monte Penedo, que estavam ali perto, alguma vez lhe pegaram e havia de vir eu, lá quase do outro lado do mundo, meter-me em trabalhos. 

Mas, o Alberto nunca mais se descosia com o dinheiro do azeite que me comprou e, assim como assim, sempre se acertaram as contas. 

Se um dia arranjar algum inimigo e lhe quiser dar um presente, arranjo aqui, sem grande trabalho, um bom saco de lacraus para lhe levar. 

O Tonho da Lameira diz que é o único sítio, do termo do Penhascoso, onde já viu uma “abíbora”, mesmo daquelas que têm a cabeça em forma de três bicos e um dente a sobressair, por onde deitam o veneno que mata, em três tempos, um qualquer maltês. 

Estas e outras histórias iam amainando a caloraça que se sentia, quando se ia fazer a cava das videiras. 

E, para rematar, o Courela atirava lá da ponta: isto nem vai dar para encher os garrafões que aqui havemos de beber nos três dias da cava, quanto mais para a poda, desladroar, enxofrar e deitar as caldas. 

Mas, do mal o menos, temos água boa, além na fonte do Outeirão e, rapaziada, belas vistas sobre os nateiros do Tejo e sempre vemos os comboios a passar. 

O Ti’Manel Caçador, dizia que continuava convencido que o terreno era muito e valia, à vontade, o dinheiro que tinha dado por ele. 

A vinha, a seara e as hortas não dariam grande coisa, mas se alguém cavasse nos altos, ou fizesse ali uma mina e lograsse água, com fartura, como lhe garantiam os vedores da Ribeira, ficava ali com um bom casal e uma casa ali ficava com uma vista soberba sobre todas as terras em frente e até para lá do Tejo. 

Então, Ti’Manel, vá esperando sentado, porque os homens dos Espinheiros disseram que há-de passar uma estrada, lá ao fundo do vale. 

Parece que é a ligação de Abrantes a Castelo Branco, pelo lado de cá do Tejo. Assim já qualquer magnata se convenceria a enterrar aqui dinheiro. 

Mesmo sabendo que se vão rir, cá o Adelino sempre dita a sua sentença: O melhor que tem aqui são as pedras; elas é que hão-de render mais dinheiro. Deixem os caminhos melhores chegarem-se cá e verão se o parvo do Adelino sabia o que dizia, ou não. 

Reparem que lá em cima, naquele penedo de granito, já alguém andou a morder e o Ti’ Ricardo, do moinho da Calhameira, sempre disse que a melhor pedra para as galgas dum lagar, ou as mós de um moinho, estava ali, no cima das hortas do Pedrógão. 

Cá estão elas, e na sua, Ti’Manel. Tirá-las de cá é que, por enquanto, não é pêra doce. 

O Américo vendeu-a por duas razões; ou mesmo três, digo eu: porque estava com a corda na garganta e, sendo homem sério queria pagar a quem devia, porque isto não lhe dizia nada – uma herança que nunca esperou que lhe fosse cair nas mãos - e porque se convenceu que a negociar poderá ganhar muito mais que com a caneta que os pais lhe deixaram, tal como os nossos nos deram a nós: um enxadão, uma roçadoira, ou uma picareta. Ganha-se para a bucha e viva o velho. 

Disseram que isto lhe ficou por trinta e picos contos de réis. Foi bem comprada e dou-lhe meia dúzia de anos para ouvir meio cento de donas Marias. Sempre há-de lucrar para juros do dinheiro e ganhar algum. Vai ver. 

Deus te oiça, Abílio. Mas agora preciso mais de dinheiro que de terras e vamos a ver se conseguirei esperar por esse tempo de valorização. 

São três todos os meses no colégio de Mação e lá em casa não há nenhuma máquina de fazer dinheiro. 

Já pensei numas coisas que tenho lá para o Sardoal, mas não me parece avisado vender oliveiras para pagar pedras, como vocês dizem. 

Mas, são horas de meter uma bucha e beber mais um copo; não havemos de voltar para casa com vinho nos garrafões. Se os levarmos cheios, será de água fresca além da fonte do Outeirão. E os meus problemas sou eu que terei de os resolver e, tal como vocês sabem, nunca fiquei a dever nada a ninguém. 

O André Falinhas era o único de Penhascoso que fazia parte da companha da cava da vinha e, mula como sempre, gostava mais de ouvir que de falar. 

Mas, desta vez, sempre foi dizendo que tinha estado lá na do sr. Joaquim Mestre um sujeito a fazer perguntas sobre aquele assento, se alguém conhecia bem as estremas, a quem pertencia, a que povoação e freguesia pertencerá uma casa feita no local, etc. 

Por isto e pelo que vocês foram dizendo, parece-me que tem toda a vantagem em ir por lá toscar o que se passou, ou se passa. Fale com o Sr Joaquim; ele até é da vossa terra e como esteve bastante tempo de prosa com o tal sujeito, deve saber ao que vinha, se alguma coisa procurava. Ouvi qualquer coisa a dizer que o homem é pato-bravo, na construção civil. 

Na ida para a Serra, ainda com um bom bocado de sol, pois as coisas tinham corrido bem e o trabalho desse terceiro dia acabou a meio da tarde, uma vez que a empreitada estava feita e os três dias ganhos, o Ti’Manel disse que ia passar na do Joaquim Mestre e convidava quem quisesse acompanhá-lo a beber um copo, antes de irem para casa. 

Ia ver se não demorava muito e pedia que não houvesse grandes falas sobre as conversas que tinham tido. Para todos os efeitos aquilo era para tratar e desenvolver. 

O Ti’Manel, na altura da compra, ouviu das boas da mulher. 

Também alguns que, nos últimos tempos, lhe davam dinheiro, a juros, para as despesas que os filhos faziam no colégio, logo lhe atiraram à cara: A nós pedes-nos paciência quando se vencem uns patacos de juro, ou quando precisamos que nos devolvas o emprestado; para enterrar dinheiro, lá onde o diabo perdeu as botas, até parece que nadas em fartura. Toma tento, homem. 

Estas coisas martelavam na cabeça do Ti’Manel, mas havia que manter a calma, agir com muita discrição e deixá-los vir até ele, pois qualquer coisa lhe dizia que fizera um bom negócio. 

Que ainda ninguém tinha dado pelos frutos, mas eles já lá estavam. E aquela do pato-bravo se interessar e querer ver o local, trazia água no bico. 

E, quando foi lá mais o pastor que andava por ali com um rebanho de cabras, não quis provar os cachos, nem saborear um figo, examinou a preceito os caminhos, as distâncias até à estrada nacional e às casas dos Espinheiros e depois foi vasculhar bem os penedos e apanhou três ou quatro pedras que levou na bagageira do automóvel. 

Um dia mandou um bocado de pedra do penedo do Pedrógão a um cunhado que tinha em Lisboa, dizendo que não dissesse nada sobre a origem do calhau, mas que soubesse tudo sobre a qualidade da rocha, o seu valor para cantaria, a possibilidade de fazer com ela blocos para empedrados de ruas e estradas, a utilização para galgas de lagares e mós de moinhos de água, ou vento, etc. 

Se fosse preciso pagar alguma coisa por um relatório completo, que lhe desse nota desses custos. Que descobrisse um bom laboratório e mandasse fazer assim como que umas análises quando se está doente. 

A conversa com o Joaquim Mestre, deu-lhe as indicações que precisava, pois parece que afinal o pato-bravo não estaria interessado em vir para ali ver os comboios passar, ou produzir vinho, que teria altos custos e muito baixa qualidade, apesar da boa exposição, etc. 

Mas, olhe Ti´Manel, fiquei com a pulga atrás da orelha, porque as palavrinhas do finório não me convenceram: não é filhote destas bandas, não conhece ninguém por aqui e quando por lá andou com o cabreiro, apanhou umas pedras, andou a medir caminhos e quase nem olhou para as videiras, ou as outras árvores de fruto. 

Se ao menos pensasse nas arrobas de figos que podem produzir uns bons centos de litros de aguardente, que ultimamente tem sido procurada para o álcool. 

Assim, qualquer coisa me diz que não abriu o jogo e que queria saber mais, quando por cá passou. Mas, olhe que se voltar, virá preparado, pois saberá bem o que quer e, ou muito me engano, ou está por ali qualquer coisa escondida com o rabo de fora. Pense nisso; e não lhe disse nada antes, porque foi tudo tão vago que nem dei importância ao caso. Mas se voltar outra vez, posso levá-lo às falas consigo, se quiser! 

Podes levá-lo, à vontade. Mas gostaria que não dissesses nada sobre se penso vender, nem que me contaram alguma coisa sobre o que andou por lá a apalpar. 

Quanto ao valor, podes dizer que sabes que já ouviu cem notas. E que pensas até que alguém quer fazer ali uma quinta, pois é certo e seguro que debaixo daqueles penedos, que são dos maiores das redondezas, estando apenas uma parte muito pequena fora de terra, há muita água; um grande nascente, muito maior mesmo que o do Outeirão. É só explorá-lo! 

Vieram os papéis sobre a pedra do penedo do Pedrógão e lá se dizia, preto no branco, que se tratava de granito de elevada qualidade, com muito boas qualidades para trabalhos de cantarias, dureza média e bastante resistência a pressões. A agregação dos compostos da rocha era ideal para mós de moinho e galgas de lagares. Recomendava-se o registo da jazida. 

O Ti’Manel leu os papéis várias vezes e nem queria acreditar.

Depois soube que no organismo onde fizeram o estudo acabaram por ficar com a indicação da Terra, local de colheita e proprietário das terras. 

Foi uma exigência dos serviços de Geologia e Minas e só depois disso puderam fazer o relatório, que acabou por ser quase gratuito, uma vez que era em benefício do cadastro nacional. Porém, havia laboratórios particulares que cobrariam bons contos de réis e não perguntariam nada a ninguém. Se quisesse podiam indicar alguns. 

Depois, a data dos papéis ajustava-se à passagem do tal pato-bravo e da visita que fez com o pastor das cabras ao Pedrógão. Estava a começar a bater a bota com a perdigota. 

Havia que tomar um conselho com o sr. Doutor Calado, que embora fosse advogado, entendia de pedras, minérios e tudo o mais que se referisse a coisas da Natureza. 

Já a caminho de Mação, com uns calhaus que foi buscar ao penedo do Pedrógão e os papéis do Instituto de Lisboa, no bolso, começou a matutar: Jazida, registo, minas… 

Na audiência com o sr. Doutor Calado, o Ti´Manel abriu-se e, como a um confessor, relatou todas as suas suposições e dúvidas quanto à boa fé do pato-bravo e pediu que lhe explicasse muito bem tudo o que queria dizer o relatório do Instituto e se era de acreditar na sabedoria deles. 

O sr. Doutor, riu-se e disse-lhe: Oiça-me, com muita atenção. Aquele penedo, como diz, é um dos maiores afloramentos graníticos desta região. O que se vê é uma pequeníssima parte; você nem calcula o valor que ali tem. Parabéns! 

Aquilo pode ser rentabilizado de diversas formas: Você vende a propriedade e deixa a exploração ao futuro dono. Mas neste caso, os trinta e tal contos que você deu devem ser multiplicados por dez, ou quinze vezes. 

Outra hipótese, você vende a pedra ao metro cúbico, sendo os trabalhos de exploração e transporte por conta do comprador. Pode, ainda, fazer nas suas terras, instalações e produzir todo o tipo de cantarias, blocos para pavimentos, mós e galgas, padrões, marcos, esteios para vinha e pomares, etc. 

Ou, pode associar-se a alguém e desenvolver ali um bom negócio. Ah! E não se esqueça de mandar um dos seus filhos estudar geologia, para lhe estudar aquilo a sério. 

Se não se importar gostaria de passar por lá, ver se a terra que já tem é suficiente para uma indústria, a sério, se a exploração será rentável, se o escoamento dos produtos é melhor pelo Outeirão, ou pelos Espinheiros, etc. E se fossemos lá os dois? Escolha um dia e encontramo-nos lá, ao sol nado. 

Pode ser amanhã, senhor doutor? E, parece-me que a possibilidade de explorar as pedras me está a agradar. Vá pensando numa sociedade, sr. doutor: podemos ser nós os dois e mais alguém que tenha capital para avançar. Eu tenho local e pedras, o senhor sabedoria e conhecimento de materiais, um outro sócio terá que trazer dinheiro, ou crédito e conhecimentos de negócios. 

O dr. foi adiantando ideias e sondou aquele que ao tempo era o maior empreendedor da vila – o senhor Melro tinha chegado havia uns anos e tinha já dado mostras de alguém que sabe desenvolver um negócio e ganhar dinheiro. 

Havia também quem pudesse dispor de capital, mas não soubesse nada de negócios e isso não era o que procuravam. Iria sondar o sr. Melro e depois falaria ao Ti’Manel Caçador, inclusivamente já com rascunho do pacto da sociedade e tudo. 

No dia seguinte, depois de visitarem o Pedrógão, viriam para o escritório do doutor e dariam os primeiros passos na constituição de uma sociedade de exploração mineira e estabeleceriam as acções imediatas. 

Logo no terreno, o dr. Calado recomendou a compra de uma propriedade a norte da existente, para onde continuavam as pedras, com a desculpa de que queria fazer uma mina para encontrar água e podia ter de passar além da estrema. 

Enquanto não se soubesse mais nada, podiam ter o terreno por meia dúzia de patacos; depois que vissem desenvolver aquilo, os preços seriam muito mais elevados. 

Era preciso garantir, também espaço para alargar os caminhos: Diria que tinha um comprador interessado para fazer ali uma vivenda e uma quinta, mas queria caminhos alargados e possibilidade de explorar água, com fartura. 

Se mais alguma coisa aparecesse à venda em qualquer das estremas era de comprar, pois iriam precisar de espaço para fazer tudo o que se podia e inclusivamente vir a construir lá casas para os serviços, ou até para turismo. 

O nome da firma podia ser: Granitos do Pedrógão, com sede em Mação e fábricas no Pedrógão – Penhascoso. 

Já em Mação, no escritório do dr. Calado, e com a presença do sr. Melro, foi explicado tudo o que pensava o dr. sobre uma sociedade de exploração mineira, trabalhos de cantaria, fornecimento de inertes e granéis, Lda. 

Teria três sócios, com três quotas iguais; uma constituída pelo terreno, outra pelo valor do terreno, realizada em dinheiro pelo sr. Melro e a terceira, de igual valor, a realizar, pertencente ao dr. Calado. A firma tinha três gerentes, sendo o primeiro executivo o sr. Melro. 

Havia que desenvolver registos, chamar um técnico de cantarias e muitas outras coisas, mas era urgente começar a trabalhar e poder responder ao concurso de fornecimento de cantarias para as escolas que, por todas as aldeias da região, iriam ser construídas. 

Estar em condições de concorrer ao fornecimento de muitos centos de vagões de gravilha que a CP iria comprar para reformar toda a linha da Beira Baixa e outras, etc. 

Por enquanto ficava tudo em segredo, até se conseguirem mais terras e até que o sr. dr. preparasse a escritura da nova sociedade. 

O sr. Melro gostou da ideia, deu os parabéns ao dr. e ficou imediatamente à disposição para discutir valores e acções a desenvolver, rapidamente. 

Ao fim do primeiro ano, com a empresa a trabalhar, em pleno, tendo já no activo, dezoito trabalhadores, três camiões, duas gruas, serras de corte, polimento de rochas e instrumentos de perfuração, a boca do corte da pedreira, tinha já vinte e dois metros de largura e oito metros de altura. 

Poderia cortar, mais de duzentos metros cúbicos de granito por mês no valor de mais de dois mil contos. 

O pato-bravo que não conseguiu chegar a tempo de comprar as terras, veio a associar-se, três anos mais tarde, com uma quota de vinte e quatro por cento da sociedade, que lhe custou dez mil contos e foi muito importante para a divulgação dos granitos do Pedrógão na área da construção e desenvolvimento na empresa da técnica de polimento que acabaria por criar uma nova empresa e transformaria a Granitos do Pedrógão e Associada, numa das maiores empresas do ramo em Portugal, chegando a exportar muita da sua produção, para vários países do Mundo, especialmente ricos em petróleo. 

Só num ano, com os desperdícios das cantarias e desbastes na pedreira, foram produzidos e vendidos à CP, duzentos e cinquenta vagões de gravilha, num total de mais de três mil metros cúbicos, descarregados pelos camiões da Granitos do Pedrógão para os vagões, num cais , especialmente feito entre as estações de Mouriscas e Alvega- Ortiga, na linha da Beira Baixa. 

Poucos anos depois, seria um dos maiores empreendimentos do concelho de Mação e quando comemorou vinte anos de actividade, tinha cento e oitenta empregados, em quatro locais diferentes de laboração, e facturava mais de cem mil contos por ano. 

Um pequeno império industrial como dizia o fundador, retirado dos trabalhos, mas ainda observador atento. 

Já velho, o Ti’Manel Caçador, respondia sempre da mesma maneira, quando lhe pediam que explicasse como teve a ideia de fazer uma empresa daquelas, num sítio daqueles: 

É que um dia, quando cavávamos a vinha, o velho Adelino, me recomendou que soubesse ter paciência e continuasse sempre a acreditar que ainda havia de ver aquelas uvas não a dar vinho, mas transformadas em pedras, penduradas nas cepas. Que o verdadeiro valor daquilo estava ali em cima, debaixo de um monte de pedras. 

E não é que era mesmo verdade! 

Tenho pena que o Adelino já cá não esteja para poder beber comigo, aqui à sombra e contemplando toda esta obra; aquilo que ele soube prever e não teve vergonha de dizer, mesmo sujeitando-se às risadas dos outros. Eu pensava como ele, mas tinha receio de cair no ridículo. 

Mas sempre acreditei na inteligência como a coisa mais valiosa que Deus nos deu; não conheço outra coisa capaz de transformar pedras em ouro! 

Poucos anos depois da sua morte, os herdeiros venderam a quota de vinte e seis por cento, que fazia maioria com um dos outros dois sócios fundadores, por setenta e cinco mil contos, a um consórcio mineiro, internacional, que viria a reduzir a actividade da Granitos do Pedrógão e Associadas.