Três gaios e duas pegas disputavam a primazia na hortita do chão das oliveiras e logo que se aproximava alguém estranho, refugiavam-se nos eucaliptos e nas mimosas que da barreira do baldio pendiam sobre a horta, onde andavam a comer e a beber, e tinham uma tira, ao longo do valado, por sua conta.
O Ti’Recas andava consumido com todo aquele rosário de desgraças: ou os gaios e as pegas comiam tudo, ou as árvores que os acoitavam não deixavam vingar nada em quase meia horta. Alguém que por ali passasse tinha de ouvir todo o rol de acusações do velho Recas – era uma desgraça, logo na melhor horta da casa -.
Era tal o desânimo que tudo lhe passava pela cabeça: Chamar alguém, que tivesse uma boa arma e boa pontaria e dar cabo daquela passarada; Convencer o “Trocas”, tido como o melhor gaioleiro das redondezas, a caçar gaios e pegas para vender como aves de estimação; armar, ele próprio, costelas, boízes, ou outros estratagemas, para dar cabo daqueles demónios, cujos prejuízos ia contabilizando enquanto regava a água do açude, nos dias em que lhe pertencia, por partilha.
Da última vez que contou, os pássaros já tinham comido quatro maçarocas completas e começado mais duas; um prejuízo dos diabos, dizia o Ti’Recas, enquanto no meio do milho ia dando cabo dos rebentos dos eucaliptos e das acácias que iam invadindo a propriedade toda. Por mais esterco que para ali carrejasse não havia novidade que vingasse, uma vez que as raízes chupavam todo o chorume e humidade.
Um dia em que aproveitando a boa sombra das árvores, que tanto detestava, fazia a sesta, passou por ali o Ti’Tonho da Azenha que, antecipando-se às lamúrias do compadre Recas, foi dizendo:
Salve-o Deus, compadre. Ainda bem que tem aqui esta sombra tão agradável – não conheço, em toda a nossa ribeira, uma frondosidade assim; bem hajam tais árvores que, infelizmente acabam por lhe comer o chão quase todo, mas…
Ora aí está, salta de lá o Ti’Recas; por um lado esta peste que estende raízes até quase ao outro lado da horta e, por outro, a danada da passarada, que parece não ter milho em mais lado nenhum, fazem a escarpelada sem ser preciso levar o milho para a eira. E uma horta que podia dar milho para comer e vender, nem chega para uma ou duas cozeduras de pão. Mas, compadre, uns e outros vão ver como elas lhe mordem; tenho cá uns planos que darão cabo dos pássaros e sem dar fim às árvores, vão acabar com a mama do bom estrume e água duas vezes por semana.
O Ti’Tonho que sempre gostara de meter a sua colherada, não deixando de juntar veneno, disse que quanto aos pássaros pensava que se arranjasse uns moinhos a fazer barulho e uns bons espantalhos, com uns trastes velhos que acabasse de despir e tivesse o cuidado de não lavar, pois, até chover, teriam fedor suficiente para afugentar vivo que por ali passasse, e muito menos parasse para comer.
Apanhado desprevenido, o Ti’Recas nem pestanejou, mas quanto o compadre se despediu e seguiu ribeira abaixo, começou a digerir as palavras que lhe ouvira: essa do moinho a fazer barulho até está certa, mas a história dos espantalhos com a minha roupa e sem ser lavada… Quem julga o estardalho que é? Se calhar lava-se todos os dias e veste roupa lavada!... Vai ver, quando por cá passar, um fantoche, mas com o retrato dele desenhado no papel da cara – já quando andávamos na mestra ele me dizia que eu tinha muito jeito para fazer bonecos; pois chegou a hora de aplicar a minha habilidade e dar-lhe o troco dos trastes sem ser lavados, e fedendo, lá pendurados.
Quanto às “mais belas árvores de toda a ribeira”, também não há-de perder pela demora: vou mesmo avançar com o meu plano! E é para já, pois gostaria de apanhar as raízes quando estiverem na força do viço, para não me escaparem nenhumas. Em casa arranjou um novelo de baraços que esticou de ponta a ponta da horta, junto à barreira do terreno baldio e começou a cavar uma vala de uns setenta centímetros de largura, espalhando a terra, pelo lado da horta. Continuou a cavar e ao cabo de quase dois meses de trabalho, tinha cortado milhares de raízes que se dirigiam para a horta e a vala estava já mais funda que a altura dele. Já encontrava poucas raízes pelo que acabou por dar a vala como terminada.
Mas veio-lhe uma ideia genial à cabeça: Porque não revestia a vala com paredes – até tinha pedra suficiente ali ao lado – e depois, uns dois ou três palmos abaixo do nível da horta, fazia uma canalização com lajes e ganhava um bom bocado de horta. Pelo cano onde podia andar de pé ia examinando e cortando qualquer raiz que tentasse atravessá-lo e ir buscar chorume ou água à horta. E, se as árvores acabassem por secar, ainda tinha melhor lugar para dormir a sesta: não há fresco que se compare ao que vou ter dentro do túnel! E, com uma porta aqui à entrada até serve de arrecadação.
Com o tempo, as árvores começaram a não comer da horta, a novidade começou a vingar melhor quase até acima do túnel e, os gaios e as pegas acabaram por ser enganados pelo Ti’Recas que escondido no túnel, com acesso por um buraco para baixo de um pé de milho, conseguia disfarçar laços e pegar os três gaios e outras tantas pegas, que fizeram uns bons caldos, para vingar todas as inquietações que haviam originado ao velho Recas.
Uma das lajes acabou por ceder e o buraco não voltou a ser aberto; mas também, nessa altura, já não era preciso o túnel. O filho do Ti’Recas, ao tomar conta da horta, começou por limpar o baldio e, depois de cortar todas as mimosas e arrancar as raízes para que se extinguisse o mais possível a espécie, passou aos dois eucaliptos e cortou-os!... O Ti’Recas, na casa dos noventa e muitos, foi pela última vez ao chão dos gaios e cada machadada nos troncos das árvores não lhe doeram menos que facadas. Pensava ele, de si para si, com as suas recordações:
E eu que cheguei a praguejar contra aquelas duas árvores; dois dos primeiros eucaliptos que se plantaram nas redondezas e, inclusivamente, foram objecto da visita de muita gente, que nunca tinha visto semelhante espécie… Foi meu avô que trouxe as duas plantazitas duma feira da Ponte, embrulhadas numa saca molhada. Nunca soube que estava tão ligado a elas… Dava um braço, ou outra coisa qualquer, para…nunca vi nada na minha vida que mais impressão me causasse… aquelas árvores pelo ar abaixo a estatelarem-se no chão… mas não se curvaram, caíram direitinhas… Caíram direitinhas… Caíram direitinhas… Caíram direitinhas…
Até ao resto dos seus dias, era ouvir o Ti’Recas: Caíram direitinhas… Caíram direitinhas… Caíram direitinhas…