Na noite de Inverno, o vento e a chuva calaram-se pouco depois do pôr-do-sol; só os cães, as aves nocturnas e os balidos e chocalhos dos rebanhos, nas cortes, quebravam o silêncio que se abatera sobre o povoado.
A quietude e a escuridão adensavam de tal forma a atmosfera que não havia nariz que ousasse arriscar-se fora das portas.
Até as tabernas da terra fecharam, bem cedo, as portas, pondo na rua os últimos bêbedos que podiam pedir ainda mais um copito e embrulhar um paivante, aumentando o rol.
Umas duas, ou três horas depois de se recolher, o Zé da Ti’Ana, já com a carraspana meio curtida, precisou de sair para se ir baixar junto da parede do quintal, debaixo da videira que trepava na figueira despidas de folhas.
Ao olhar para os lados da Estrela, arrepiou-se todo; não havia qualquer clarão de luar e em vez de reflexo e vento, a serra mandava camadas sucessivas de borrasca e um frio de cortar à faca.
Não se enxergava, através do nevoeiro, mais de meia dúzia de metros; nem sequer se via até à outra parede do quintalzito.
Os paus das árvores pingavam e as pedras que procurou, aos apalpões, para se limpar, estavam geladas e molhadas.
Não chovia, mas a humidade era tanta que atravessava a roupa e enregelava até os ossos mais escondidos do corpo.
Voltou a entrar em casa e deitou-se.
Ao clarear do dia pouco mais luz se fez; o nevoeiro e a humidade, ajudados pelo frio, não deixaram nascer o sol.
O Zé levantou-se e foi pensar o burrito e as duas cabras, trazendo, numa malga encardida, uma pequena quantidade de leite que bebeu, ainda quente, dum trago. Acompanhou com uma côdea de pão espanhol e duas dentadas do queijo amarelo, que davam na sacristia.
Quando corria a tranqueta da porta, o Zé da Ti’Ana pensou na caminhada que teria de fazer, até aos barrocais, lá em baixo, a meio caminho da ribeira.
Talvez estivesse menos frio nas grutas do barroco maior do que ali em casa, onde a telha vã não vedava frio nem humidade e só a poder do peso da roupa, na cama, se arranjava algum calor; já que o da fogueira das giestas, se tinha acabado umas horas antes, engolido pela invernia.
Mas, ainda faltava algum tempo para a hora a que teria de ir cumprir a promessa que fizera a si próprio e ficou-se, um pouco mais, debaixo de telha.
Espreitou, pela janelita, e não viu vivalma.
Pouco depois, saiu de casa, canada fora, rumo aos barrocais.
Esticou o passo e só se deteve às vistas da ribeira, junto ao amontoado de barrocos, que tão bem conhecia, a meias com cães, gatos-bravos, raposas e lobos.
Entrou, procurou o esconderijo onde guardava as escopetas e o fuzil e partiu dali em direcção à casa do Manel Caldeireiro, onde, em permanência, só estava a Rita, filha do Manel que ganhava a vida de terra em terra e fazia ausências de semanas.
A moçoila, na casa dos trinta, de compleição física avantajada, olhos grandes, cabelos pretos e pele morena, recebia os seus amigos, ao que se dizia; todavia, ninguém jamais ousou apontar-lhe fosse o que fosse, mais com receio do mau feitio do caldeireiro que com respeito pela cachopa.
Havia fanfarrões que se gabavam, à boca pequena, disto e daquilo e nunca tinham, sequer, chegado perto da rapariga.
O Zé da Ti’Ana, mais entradote, vivia só, desde que perdera a mãe e sofria, cada vez que as línguas, soltas pelo vinho, se referiam à Rita, ocultando o seu nome, mas sendo suficientemente denunciadores, para cantar façanhas.
De todas as vezes que chegara às falas com a rapariga sempre esbarrara com uma resistência inultrapassável.
Das espreitas e investigações que lhe levaram noites a fio, nada resultou em desabono.
Tomou a decisão de pedir a rapariga em casamento, perguntando-lhe, apenas, se, a partir daquele dia, poderia obrigar, ainda que a poder de sangue, quem dissesse fosse o que fosse, a prová-lo.
A Rita olhou-o nos olhos e jurou total inocência, porque tudo o que pudessem dizer dela ela mentira.
Com a confirmação da rapariga, o Zé passou nas tabernas e disse que se casaria com a Rita.
Jurou que, a partir de então, quem acusasse a sua noiva fosse do que fosse, ou provava, ou morria.