sábado, 30 de outubro de 2010

A Ti’Coluna

No cimo do esconso da rua de S. Pedro, onde acabava a calçada de pedras reboludas e escorregadias e começavam os degraus das escadas que iriam terminar frente ao portão do colégio, as casas, de um lado e do outro, eram as do Ferreira Mesquita e da sogra.

Por ali andavam sempre os garotos, ranhosos e reveladores de falta de cuidados, à mistura com galinhas, gatos e um cãozito, pouco agressivo para os passantes e com as carraças nas orelhas, bem visíveis.

Uns metros mais abaixo, à direita de quem descia, numa casita térrea, com frente de uma porta e uma janela, telhado de uma só água, a correr para a rua e com um quintalito nas traseiras, morava a Ti’Coluna, mais conhecida por “comadre Coluna”, devido aos inúmeros nascimentos a que havia já assistido.

Mulher corpulenta, de idade bastante avançada, capaz de satisfazer as suas necessidades, passava os dias à janela, a ver os estudantes, e uma vez por dia, descia até à praça, com a alcofa das compras.

Parava, normalmente, ao cimo do primeiro lance de escadas e sentava-se num pequeno patamar à porta da casa do sr Luís Catarino, a seguir à torre do relógio.

Descansava, ouvia e dava as notícias, tomava fôlego e lá arrancava, rua acima até chegar a sua casa.

Quando calhava dar-lhe uma ajudinha no transporte da alcofa, quer fosse o António Agostinho, filho da Ti’Mari’Bela, quer fosse um dos seus hóspedes, entre os quais eu me incluía, havia sempre uma pequena história e duas ou três ervilhanas, um rebuçadito, ou uma bolacha que já estava preparada junto da porta de casa, numa pequena terrina, sobre a mesa da salita.

Quando descia, voltava a parar na torre do relógio, cumprimentava os que passavam, pois era conhecida d os estudantes, que subiam e desciam, duas ou quatro vezes por dia, a rua mais inclinada da vila, no dizer da Ti’Coluna.

As histórias da velhota prendiam-se com as três gerações que compunham a sua vida, como dizia. Reportavam aos tempos da Monarquia e aos anos que se lhe seguiram, nos atribulados primeiros percalços da República.

Falava das saudades do rei D. Carlos que tivera oportunidade de ver, em Lisboa, das dificuldades que a velhice lhe revelou: mãe de vários filhos, nunca quis encostar-se a nenhum, apesar de todos viverem bem.

Mas, sozinha, vivia contente por ver tanta gente nova a fazer pela vida, subindo e descendo a ladeira de S. Pedro que, durante décadas foi rua pacata e morta, onde raramente passava alguém e agora fervia de gente e vida.

Desde que veio o colégio, foi uma alegria, um rejuvenescer para as gentes daquela rua cuja vida corria toda no sentida da praça e agora era ao contrário.

Mulher devota e cumpridora dos seus deveres de cristã, ajudava nos arranjos das igrejas e não faltava às principais cerimónias religiosas.

Era especialista na assistência a partos e tratava, como ninguém, um doente acamado. Ajudava, sempre que sentia necessidades e até onde as forças lhe permitiam.

Nunca consegui saber a idade da Ti’Coluna, mas parece-me que seria quase centenária.

Na base das suas opiniões, as coisas não acontecem por acaso e ia explicando o que a vida lhe ensinara:

- Estás a ver esta ladeira, a maior da vila, que todos os dias tens de subir para chegares ao colégio? E, depois, quando chegas lá ao cimo, tens a vila a teus pés, olhas e vês lá longe as terras de Gavião, ou se olhares para o outro lado, as serras do Bando e, mais longe, os montes já da Beira Baixa quase toda!

Na vida, os caminhos mais difíceis levam-nos às coisas melhores.

Quantos há que nunca subiram a ladeira da rua de S. Pedro, porque só havia lá eucaliptos e para chegar ao Calvário iam dar uma volta.

E que bom teria sido, se tivessem subido a rua, para o colégio: teriam hoje melhor emprego, teriam sido alguém diferente do que são, poderiam chegar mais alto.

Não achas que vale a pena subir a rua?

Até eu, que sou muito mais velha, gosto de morar cá em cima: vejo mais longe!... Já aprendeste o que é o horizonte? Gostas de estudar Geografia?...
Mas, cuidado: é preciso força e determinação.

Vês os do Ferreira Mesquita, não sobem até ao cimo da rua, espalham-se por ela abaixo à espera que lhe dêem alguma coisa para comer.

Também não têm quem os mande estudar, mas isso não é o caso dos meninos a quem os pais não querem que nada falte. A esses ninguém perdoaria que não aproveitassem bem as oportunidades que lhes estendem à frente.

Lembrem-se, pois, que há que subir e descer a rua, tantas vezes quantas for preciso e quanto mais depressa deixarem de subir, porque chegaram ao cimo, melhor. Uma coisa é certa, desistir, nunca!...;

É para os fracos e dos fracos não reza a História.

Porém, cá a velhota quer deixar-te um último aviso: quando se chega ao cimo das ladeiras temos de continuar a andar; o mundo não para e a vida não se esgota ali.

Atrás duma subida vem sempre outra e, por vezes, até mais íngreme; porém as forças aumentam com o exercício e as dificuldades diminuem com a força da nossa vontade.

Lembrem-se do que lhes diz a velha Coluna e, se puderem, cheguem à minha idade, rijos como eu; a vida deixar-se-á dominar e as coisas boas vão fazer-vos esquecer o que parece mais difícil e complicado, em cada dia que passa.

Vou pedir a Deus que vos satisfaça todos os vossos desejos, mas não se esqueçam de ajudar sempre a consegui-los!... A vossa ajuda é para lá de meio caminho andado!...