Os pinheiros da Caldeirinha andam a comer de três concelhos; não admira, pois, que aqueles sapeirões gozem mais que os dos vizinhos que, naquela pissara, pouco mais têm que terra para sobreviverem.
Cada uma daquelas árvores vale por uma boa meia dúzia das da courela vizinha.
Só mete ali o ferro quem pagar bem.
Com estas afirmações, o Ti’Alberto entrava na taberna seguido pelo Bento, comprador de resinas por conta das fábricas de Leiria. E, já ao pé do balcão, acenou ao Manuel que deitasse uns copos de vinho, convidando o Chico Alfaiate, resineiro da terra, a beber com eles e a dizer se havia em toda a área das redondezas pinheiros mais leiteiros que os da sua,da Caldeirinha.
O resineiro confirmou que, de facto, não conhecia árvores que melhor fundissem do que um bom magote lá da Caldeirinha, embora também lá houvesse alguns mais fracotes.
Dava gosto passar a mudar os canecos duas ou três vezes, em cada colha. São árvores desenxovalhadas; deviam espalhar-se os pinhões delas por mais lados…
Aqui, entrou o Ti’Alberto: E a terra também a espalhavam, ora não?!...
O Bento que sabia ser verdade tudo o que acabava de ouvir, embora não lhe conviesse a conversa, acercou-se do Ti’Alberto, estendeu a mão e disse-lhe, em surdina: não se fala mais nisso; são os dez mil réis por cada bica da Caldeirinha e pelos seus restantes, o preço de toda a área: seis mil réis.
Está feito?!... O Ti’Alberto acenou ao taberneiro que deitasse mais uns copos e disse: Está feito, homem… mais um ano em que me enganas, mas… nunca o diabo mais nos leve!...
Ao recordar estas cenas, repassadas de uma simplicidade tão pungente e enternecedora, em que em frente do balcão da taberna se faziam os negócios, repletos de arte e manha, mas envolvidos numa ingenuidade pura e sã, não podemos esquecer as premonições da última frase do Ti’Alberto: … nunca o diabo mais nos leve!...
É que, desde aqueles anos sessenta em que muitos de nós, então jovens adolescentes, estudámos fora das nossas aldeias e por esse país além alcançámos lugares nunca pensados pelos nossos avós, à custa daqueles pinheiros que dando mais ou menos resina rendiam os cobres com que os nossos pais pagavam estudos, aboletamento e confortos que nunca tinham experimentado, tudo mudou…
E, infelizmente, tudo o diabo lhes levou!...
As transformações políticas, primeiro; os incêndios, depois, reduziram a nada aquela exploração de uma matéria-prima que, como nos ensinaram na escola, dava origem a uma farta gama de produtos, desde farmacêuticos a químicos e cosméticos e constituía uma riqueza nacional.
Nunca compreendemos como foi possível tal estado de coisas e é com muita mágoa que só na lembrança restam aqueles pinhais, de árvores esbeltas, que, generosamente, vertiam nos canecos a resina que escorria das suas sangrias.
Não se mataram apenas os pinheiros; foram, com eles, muitas gotas de sangue das gentes que viram o diabo levar-lhes tudo, quer ele vestisse a pele dos políticos, quer fosse um qualquer incendiário.
Aquelas gentes, que passaram a depender das esmolas dos poderes públicos, podem até viver melhor, ter melhores acessos e comunicações, desfrutar de alguns confortos das sociedades modernas, mas não são felizes… nunca aprenderam, nem se conformaram, a viver de esmolas; nunca comeram nada que não soubessem como lhes chegava às mãos e sempre se consideraram senhores de si próprios; nunca perceberam as razões dos que, alto e bom som, dizem que lhes vão fechar o hospital, a escola ou o posto médico; nunca aceitaram os que querem proibi-los de beber a água dos seus poços, comer a carne dos seus porcos e a desfrutar da floresta que, impunemente, alguns teimam em queimar-lhes.
Gentes de tanto querer, almas de tanta fé e vontades tão indómitas, deram lugar a populações descrentes, almas sem esperança e velhos resignados; todos sem alegria e esperando, pacientemente, o resto dos seus dias.