segunda-feira, 11 de outubro de 2010

As onze casas

Quando a menina ainda mal sabia contar, contou, um dia, aquelas casas e encontrou onze.

Nunca mais esqueceu que algures, num lugar que muito pouca gente conhecia – o que achava uma pena – havia onze casas, onde tinham nascido, crescido e morrido muitas pessoas. Gente tão engraçada e importante, ainda que a maior parte deles nunca de lá tivesse saído e bastasse o nome de baptismo, ou uma alcunha, para a sua identificação.

A casa do Ti’Serafim, imponente, resistindo de pé e mostrando a sua varanda de madeira, sobre os cómodos dos animais; a da Ti’Deolinda, onde ainda restavam os alegretes e restos de cravinas brancas que tantas vezes alegraram os altares da capela; a da Rosita, reduzida a um monte de pedras, onde a parede da janelita – a da Rosita – se mantinha de pé, por entre as silvas e ramos de um sabugueiro que ali medrava; a da Ti’Perpétua, que só a memória podia imaginar; lá no cimo da cumeada, a da Ti’Leonor, decepada pelo alargamento da estrada e, virada a poente, a da Tia Carmina, de onde tantas vezes a menina tinha visto descer o sol abaixo do horizonte.

A da madrinha, Tia Maximina, donde trazia cotos de velas retirados da igreja, para prolongar as leituras nos longos serões de inverno, às escondidas da mãe; a da Ti’Augusta, limpinha e a cheirar a lavado e a qualquer coisa exótica que ainda hoje excita o olfacto da menina; pelo contrário, a da Ti’Rosa, baixinha, de telha vã e com algumas telhas levantadas, por cima da lareira para deixar sair a fumarada que dava um ar sombrio, pesado e bafiento, na cozinha; e a da Ti’Ana, que um dia voltou, lá de S. Simão, para os lados de Litém, onde sempre fizera vida, com a madrinha, criada de padre.

Finalmente a casa da Boxa, onde estavam as raízes da menina, e marco de várias gerações de gente especial, que apesar da exiguidade de meios e estímulos, sempre soube olhar para cima, cultivar o espírito ao lado das terras e servir de pólo de muitas das actividades da terra. Desde as festas e acontecimentos na eira, à casa da escola, onde aprenderam as primeiras letras muitas crianças, passando pelos bailes e festanças, quer por ocasião de ceifas, malhas, recolhas de milho, feijão, chícharos e outras novidades… gente diferente, voltada para coisas diferentes das do dia-a-dia da terra.

Falta referir as de Lisboa, onde morou o Ti’Manel e por onde passou a menina, quando foi em busca de mais saber, maiores horizontes, melhores meios e mais, muito mais discernimento e cultura, de que trazia o gérmen lá da casa da Boxa e dos seus avoengos directos e colaterais.

As casas não eram as únicas da Terra.

Havia outras sem ninguém especial para a pequenita. E havia também casas de ninguém, que já tinham sido lares de alguém, assim como outras que ainda podiam ser ocupadas e algumas de que restavam sinais de terem sido. Era confuso de mais e por isso a menina iria ficar-se por aquelas onze, cujas pessoas, simples, lhe diziam mais.

As ligações entre as casas e os nomes que de lá respondiam, resumiam a história da terra e das gentes que, em cada época, foram o povo do lugar.

As casas eram o bilhete de identidade de quem lá vivia, ou lá tinha vivido.

As pedras de xisto, lousinhas muito bem arrumadas no barro que as une, as padieiras das portas e janelas, as lajes mais compridas e meticulosamente travadas, resistiram a intempéries, mexidas da Terra e agressões naturais, mantendo os cunhais perpendiculares e as traves e barrotes, mais velhas que todos os do local, conservavam os telhados todos alinhados. As soleiras das portas e os parapeitos das janelas, ouviam ainda o ranger dos gonzos ferrugentos e das taramelas há muito cerradas.

Por trás de portas e janelas as trancas fechavam o que, de um modo geral, se mantinha aberto; os da terra não mexeriam no alheio e qualquer estranho era imediatamente referenciado e vigiado, tornando assim dispensáveis as chaves e fechaduras.

Até os cães tinham o registo olfactivo e visual de toda a gente da terra e evidenciavam logo, a qualquer forasteiro, o seu estado de alerta, mostrando os dentes, com ar de desprezo e mirando, pelo canto do olho.

As pernadas mais direitas de castanho, eram utilizadas para barrotes e traves dos telhados. As madeiras melhores e mais grossas, serradas nas burras e cavaletes, aplicavam-se nos sobrados, nas arcas de cerejeira, laranjeira ou nogueira, nos estrados das camas de ferro e nas cómodas, das casas mais abastadas, que ostentavam, na parte superior, um oratório.

Na cozinha, os cântaros e outros utensílios de barro vermelho, estavam arrumados na cantareira e, num dos lados, debaixo da chaminé, que se elevava acima do fumeiro, estava a lareira, onde sobre as trempes ferviam as panelas de ferro, de arco ou de três pés, as caldeiras de cobre e os tachos de folha.

As talhas do azeite, do mel e das azeitonas curtidas, bem como a salgadeira, guardavam-se na despensa.

A cozinha era a principal divisão da casa. Ali se comia, guardava a lenha, no respectivo canto, se guardava a masseira com a farinha para preparar o pão que, semanalmente, se cozia no forno da casa, ou, no comunitário, usado por toda a aldeia. Estava ainda a francela dos queijos e suspensa dos barrotes do telhado a tábua onde, depois de feitos, os queijos faziam a primeira seca, antes de serem vendidos, ou guardados em azeite, para conduto de todo o ano.

Na casa “grande”, também dita “de fora” estavam os pertences para a higiene das visitas: lavatório, com bacia, jarro da água e toalha de linho. Duas ou três arcas com roupas, ou cereais, onde se guardava o pão cozido, bolos, algumas frutas e não raro a bolsita do dinheiro para mercearia, peixe e farrapos que os tendeiros iam vender, de porta em porta.

Muitas vezes, na cabana anexa, havia uma lareira que poupava a da casa e lá se passavam os serões das longas noites de inverno.

O pucarinho sobre o asado, que ocupava a prateleira inferior da cantareira, juntamente com o cântaro, estava sempre preparado para dessedentar quem precisasse.

Sob o sobrado viajavam os gatos, que mantinham o espaço livre de ratos e outros hóspedes indesejáveis e para lá se esgueiravam pela gateira, aberta junto da porta e acabando por sair do lado oposto, junto ao canto da lenha.

Os campos, as hortas e o aproveitamento de tudo o que fosse terra arável e possível de ser regada pelas levadas feitas e conservadas a preceito, bem como as cortes de animais, as estrumeiras nas ruas das testadas das casas, onde se preparava o esterco com que se adubavam as terras menos férteis, eram outra parte dos rituais da vida rural das aldeias.

A iluminação por candeias e lanternas de azeite e, mais tarde, pelos candeeiros de petróleo, viria, muitos anos mais tarde, a ser substituída pela electricidade que a menina conheceu, pela primeira vez, quando foi à vila e utilizou, anos depois, quando foi para a cidade grande, para casa dos tios, à procura de mais vida, que só poderia encontrar em salas maiores que a da casa da Boxa, onde o pai ensinava os meninos e meninas da terra.

Porém, quanto mais ia compreendendo que afinal o mundo já era diferente e que todos os dias caminhava para coisas mais sofisticadas, mais os olhitos se encantavam com o bucolismo dos campos, a serenidade das gentes, a simplicidade daquelas casas, a beleza dos campos, o chilrear dos passaritos nas árvores dos quintais e das tapadas.

Depois, o balido dos cordeirinhos, os chocalhos e o chiar das rodas das carroças, davam lugar ao pesado silêncio que, com o escuro, se abatia sobre as casas da aldeia. Só o ladrar dos cães quebrava o encanto, a serenidade e o misticismo da noite que voltaria a despertar o carinho e apreço por aquelas gentes que elevavam tão alto o espírito ao falarem com Deus, não para se lamentarem, mas para agradecerem.

Anos depois, já no bulício da grande metrópole, com a influência de muitas leituras e tendo contacto com todo um manancial de recursos que a vida lhe não mostrou logo ao acordar para ela, as reminiscências da infância seriam capazes de descrever pedra por pedra, planta por planta e até latido por latido, tudo o que deixara entre aquelas onze casas, que continuavam a ser um mundo, independente de todos os mundos que viessem a cruzar-se na sua vida.

E, não raro, relembrava tudo o que temporariamente deixara para trás, no tempo, mas mantinha bem presente na sua memória. Na cidade tinha pouca Natureza para sentir e amar, mas a sua imaginação substituía-se à realidade e cada vez eram mais fortes os sentimentos de apego às realidades que lhe eram queridas e recordava com tantas saudades..

As casas, que não eram estendidas e encaixadas nos desvãos das terras, mas todas encostadas umas às outras, como cogumelos de favos de colmeias, com imensas janelas de vidro, casas de banho, luz eléctrica, telefone, rádios e, pouco depois, televisão, não fizeram esquecer as da terra. Eram mais feias.

Ao contornar o jardim dos animais, para apanhar o eléctrico até à escola que lá em Benfica, ali nas barbas da mata de Monsanto, se erguia, imponente sobre as terras da quinta, onde ainda pastavam as vacas, minoravam, em silêncio, as carências de tudo o que de bom deixou para trás.

Respirava o cheiro dos bichos lá no jardim, ouvia os gritos das aves de rapina e outras vozes familiares, deleitava-se com o rebanho que nas terras da Estrada da Luz aparecia, aos fins de tarde, nos baldios onde ainda não tinham feito casas.

Na mata de Benfica, à sombra de árvores seculares, onde esvoaçavam pássaros, cujos trinados levavam a menina para os contrafortes da serra, sentada num banco de ferro, iludiu, muitas vezes, as saudades das onze casas e, fechando os olhos, deixava-se transportar até ao pé da ribeira onde a azenha rodopiava e de onde sairia o moleiro, empurrando o burrito, ladeira acima, levando os taleigos de farinha.

Até que foi morar mesmo ali para ao pé da mata; e, já havia um espaço para jardim, um cãozito para guardar a casa e um maior espaço para flores. O sol entrava dentro de casa que ainda cheirava a nova. A figueira e o limoeiro eram um faz de conta de pomar e quando se regavam as flores já se sentia o cheiro, tão característico e chamativo, de terra regada.

Para ir para a escola não era preciso ir “a cavalo” nos transportes e ao atravessar as ruas de vivendas até chegar junta da estação de comboio de Benfica ia contemplando as casas e os jardins que ainda no começo faziam adivinhar agradáveis vistas no futuro.

Nos dias de folga podia ir à mata de S. Domingos de Benfica, ali nas abas da Serra de Monsanto e, no primeiro Natal que passou no Bairro, lembra-se de um lindo presépio, à maneira da sua infância, feito com belos tufos de musgo da mata de S. Domingos.

Quando caminhava pelas ruas da cidade, não esquecia os regatos que atravessavam as ruas da aldeia, das manhãs de inverno em que o taró soprava cortante e o codo espalhava um lençol branco e quebradiço, sobre todas as terras.

Sentia a falta do brilho, do calor e do crepitar da lareira; estranhava a iluminação nocturna e o ruído dos motores dos carros e fazia-lhe falta o barulho dos cães para lhe trazer o sono.

Numa palavra o bulício do dia-a-dia da cidade provocava-lhe nostalgia e solidão. E, quem olhasse direito para aqueles olhos acabaria por ver neles uma ligação ao imaginário da arte, da contemplação e da distância que a menina associa e, talvez com fundamento, às suas ancestrais raízes da casa da Boxa.

As idas às onze casas são cada vez mais espaçadas. E são bem visíveis as mudanças que, conformados, aceitamos como sinais dos tempos. As transformações, porque as pedras se desagregassem e os telhados acabassem reduzidos a um montão de barrotes podres e telhas partidas; porque o progresso implica alargamento de ruas e acessos e leva na voragem as recordações e relíquias; porque um estrangeirado, ignorando a sensibilidade, da menina das onze casas, e de todos os espíritos que por lá pairam, passou um dia, por lá, e decidiu restaurar uma daquelas casas para passar o resto dos seus dias; ou, ainda, porque alguém a que o povo chama “cão do hortelão”, significando o que não come nem deixa comer, não repara, nem deixa reparar e não vende, não troca nem dá, como que perpetuando recordações que talvez não lhe sejam muito gratas, mas em que estão envolvidos os seus avós.

Nessas idas, as onze vão sendo dez, depois serão nove e, quem sabe, até quando haverá alguns vestígios do que foi ninho de amor, de sofrimento e também última morada, de muita gente que durante séculos e séculos foram os expoentes da massa anónima de onde brotaram e sobressaíram as elites que construíram a cultura e identidade de um País, com dez séculos de história.

Restarão, pelo menos enquanto a nossa geração sentir o apelo das raízes mais profundas da cultura e vivência que nos viram crescer, umas quantas casas da Boxa, que, sejamos razoáveis, hão-de ser cada vez menos, pois, parafraseando o nosso estimado poeta A. Aleixo…

Quem prende a água que corre
É por si próprio enganado.
O ribeirinho não morre
Vai correr para outro lado.

E, nada melhor que contar, ainda que sem a arte e engenho necessários, um pouco da sua história e das suas raízes, para homenagear aquela gente simples que, como a menina da casa da Boxa, viram aquilo que somos e o que podemos ser, embora sabendo, como o poeta, que a vida não vai mais parar… o ribeirinho, da vida, não morre.