O António é barra na redacção e conto ou décima que ouça não mais se lhe passa da memória.
Todavia aprendeu a ler com alguma dificuldade e quanto a contas e problemas, estamos falados: é o cabo dos trabalhos. Desenha com bastante dificuldade, na História e na Geografia, vai indo.
Estou em crer que mais um anito de escola não havia de lhe fazer mal nenhum. Assim, como assim, não tem grande corpo, é novo e tem muito tempo de ir aprender o ofício com o pai.
Foi com estas palavras que, por alturas da Páscoa, a senhora Professora fez o ponto da situação à mãe do Tonho dos Gatos, filho do caldeireiro da terra e, na boca da mãe, Ti’Engrácia, a mais fina das criaturas que Deus ao Mundo deitou e, sem sombra de dúvidas, o mais esperto dos alunos da escola.
Chegou a casa pior que uma fera: Então não queres lá ver, homem!? Disse-me que o nosso moço é fino, que escreve que nem um artista, mas que acha que ele deve fazer mais um ano de escola. Isso é que era bom! Pois se é dos melhores que vá a exame e logo se verá! Se calhar não lhe leva tanto como os outros; nem todos podem ser ricos e ter mimos para a paparicar a toda a hora.
O caldeireiro Eduardo, homem comedido e sensato, abanou a cabeça e não dando muita importância ao caso, desviou a conversa para assuntos do trabalho, dizendo que havia ali obra para entregar, pronta desde o princípio da semana e era melhor que ela fosse fazer isso. Ou não lhe fazia falta o dinheiro dos trabalhos? Quanto ao Tónio e à Professora, deixa por minha conta que eu trato de tudo; para a semana vou lá falar com a dona Elvira; não é assim que se chama a Professora? Veremos o que é melhor para o rapaz!
Pois é homem, já estou mesmo a ver!... Todos de enfiam o carapuço!... Acreditas em toda a gente!... Estou mesmo a ver que ainda o cachopo há-de querer ir assentar praça e não ter feito o exame. Então se todos os outros estão capazes par ir a exame, porque diabo não há-de estar o nosso? Então ele é menos que os outros, ou quê? Podes ir lá falar com a Professora, mas vê se não te deixas enrolar, como é teu costume!
O caldeireiro encolheu os ombros, sentou-se junto da mesa onde tinha os trabalhos, puxou o maço de “Provisórios”do bolso pequeno da jaqueta, acendeu um cigarro e recomeçou a trabalhar.
Mas, num salto o caldeireiro, voltou-se para a mulher, abriu-lhe muito os olhos e gritou-lhe: Querem lá ver o raio da mulher!? Não sabe dizer duas coisas, é burra todos os dias e parece que agora é ela que veste calças, cá em casa! Cala-te minha estúpida, pois se calhar nem percebeste direito o que a Senhora Professora te disse. Achas que ela tem algum interesse em não passar os alunos? Achas que qualquer artista tem algum gozo em não ver bem compensado e pago o seu trabalho? Cala-te que eu lá irei tratar do caso.
Passados dias, já depois das férias da Páscoa, o caldeireiro foi um dia lá à Horta Velha, a casa da Senhora Professora e pediu à rapariga que anunciasse o pai do António Pires que gostaria de ter uma conversa, com a Senhora, sobre o menino. Se achasse que ele devia ir à escola, que fizesse o favor de dizer.
Convidado a entrar, descobriu-se e sentou-se à mesa onde já estava a Professora, que, logo lhe perguntou se se passava alguma coisa com o menino, pois, nesse dia não tinha ido à escola e todos disseram que não o tinham visto.
Não minha senhora, o meu filho está bem e só faltou à escola porque a mãe foi comprar-me uns materiais para a arte e ele acompanhou-a. Que nos desculpe, pois devíamos tê-la mandado avisar. O que me traz cá é aquela conversa que teve com a minha mulher sobre os estudos do rapaz. É que nem sei se ela entendeu bem o que a Senhora lhe disse e, como todos queremos o melhor para o menino, gostaria de deixar tudo em pratos limpos.
Olhe senhor Eduardo – é este o seu nome? Não é? -, o seu pequeno é muito bom na Redacção e escreve com poucos erros no ditado; nas contas e nos problemas tem bastante dificuldade. Na História e Geografia vai-se safando e a desenhar também não é lá grande coisa. Mas ainda faltam quase três meses para o exame e até lá ainda muita água vai correr por baixo das pontes, apesar de caminharmos para o Verão. Neste tempo ainda há-de melhorar muito e até é muito natural que possa ir fazer um bom exame.
Mas… Tenho andado a pensar no António e daí ter dito a sua mulher que quem sabe se não seria melhor andar mais um ano na escola. Tinha possibilidade de aperfeiçoar-se, ia acompanhando e aprendendo a arte consigo e no fim do ano fazia um bonito exame, ficando melhor preparado e sem custos de maior. Além disso, este ano é dos mais novos da aula e, no próximo ano, metade dos da 4ª classe serão mais velhos que ele. Mas, o meu interesse é passar os alunos; o professor não gosta de deixar alguém sem ir a exame; com o António é diferente: sinto muito orgulho em ver como escreve, parece um pequeno escritor. E, se estiverem de acordo, não via qualquer grande problema em não o propor a exame. Principalmente porque estou convencida que era bom para ele e ele acabaria por se sentir muito bem entre os mais novos – não devemos esquecer-nos que sempre foi o mais novo da sua classe.
Parecem-me, Senhora Professora, que as suas ideias são muito simpáticas e estou perfeitamente disposto, quando chegar a altura, a deixar o destino do moço nas suas mãos. Entretanto, até lá, o assunto fica entre nós, pois mesmo à minha Engrácia vou dizer-lhe que ainda falta muito tempo para os exames e a Senhora Professora fará, de acordo com a nossa opinião, o que for melhor.
O tempo passou a correr, os pais do António foram os dois chamados à escola para esclarecerem, com a Professora, se queriam deixar o filho na escola, durante mais um ano, isto é, repetir a quarta classe. E, convencidos, os três de que essa solução seria a melhor para o António, assim se fez. Na proposta de alunos para exame da quarta classe não figurava o António Pires.
No ano seguinte, com dez anos e meio, apresentou-se a exame um rapaz, de nome António Pires, com uma caligrafia impecável, um ditado sem erros e uma redacção formidável, sobre uma história a gosto do aluno, um desenho mediano e uma conta e prova real certas, embora o problema não estivesse completo. Porém, na prova oral, a desenvoltura na fala e a facilidade de expressão levaram o júri a dar-lhe “Distinção” e, uma das Senhoras Professoras a pedir todos os dados do rapaz, pois queria falar com os pais sobre uma hipótese de o mandar estudar para o Seminário, como um dos protegidos da Casa Robalo que todos os anos custeava dois novos alunos, até chegarem a padres, em Portalegre.
E, passados doze anos, o caldeireiro Eduardo Pires, a Dona Engrácia da Conceição e a Senhora Professora do António – que ele sempre fez questão de assim chamar -, eram os três Convidados de Honra na missa nova do Senhor Padre António Pires.
Constam da sua bibliografia catorze livros, desde hábitos e costumes das gentes da nossa terra a ensaios sobre teologia, dialéctica e oratória, destacando-se as cartas e sermões que, ao longo da sua carreira, foi escrevendo.
Uma curiosidade: os catorze livros, todos com a sobrecarga de “exemplar nº 1, dedicado e oferecido à Senhora Professora do António, com a maior gratidão do Mundo e um pedido de Bênção especial e longos anos de vida”, foram oferecidos à Biblioteca do Seminário Maior, num pequeno armário de madeira feito pelo pai do António. A Senhora Professora faleceu depois dos pais do Padre António, após receber o 10º livro, deixando escrito que a caixa com os livros deveria ser entregue ao autor para que a enviasse ao seu destino – Biblioteca do Seminário Maior.
E, num pequeno memorial, a Professora escreveu: Quero lembrar ao maior escritor que conheci que outros, muito grandes, nem sempre foram os maiores. Na Grécia, Sófocles - o grande mestre da tragédia – perdeu um concurso de obras trágicas. No Brasil, Guimarães Rosa – um dos maiores escritores de contos de língua portuguesa -, não venceu um concurso de contos. Em Portugal, Fernando Pessoa – um dos génios da nossa poesia – perdeu, um dia, um concurso de poesia. E, para finalizar, na Escola da Serra, o Padre António – o maior autor que conheci – perdeu um ano, repetindo a 4ª classe.
Que nos perdoe tão maravilhoso prejuízo.