sexta-feira, 2 de julho de 2010

Tiro aos pratos

Desde os últimos torneios de tiro aos pratos que a comissão de festas fazia todos os anos, na tapada do dr. Aníbal, ali ao campo da bola, não saía da cabeça do sr. Francisco Tapada a ideia de comprar o que fosse preciso para que os filhos, viessem a ser campeões num dos anos seguintes.

Tinha um compadre que já vários anos ganhara taças e prémios e que toda a gente dizia que era uma das melhores espingardas da região.

Na maior parte dos torneios das festas dos arredores, o compadre Xico, já tinha ganho para pagar as espingardas que possuía e era muito conceituado pela sua habilidade naquele desporto, cada vez mais em voga.

Ninguém mais indicado que o mestre para lhe explicar o que devia fazer para meter o filho Abel naquelas andanças do tiro aos pratos.

É que já tinha ouvido falar na caça às rolas, nas batidas às raposas, no tiro aos pombos, mas isso não o entusiasmava: atirar a um prato é que lhe parecia bem. Matar ali centenas de pombos, isso não!

Perguntou ao compadre se estavam garantidas todas as condições de segurança e não havia perigo se o Abel, por sinal afilhado dele, se metesse nessas coisas. Qual a arma que recomendava para o afilhado e se arranjava algum tempo e paciência para o ensinar a atirar, pois queria que já no próximo ano fosse um digno concorrente do padrinho.

Olhe, compadre, estamos a tratar de armas e, ainda que a segurança comece em cada um, o perigo pode vir de qualquer descuido. Mas o Abel tem idade e é suficientemente responsável para se meter entre os profissionais e tentar ganhar alguma coisa. Depende das condições de visão adaptadas ao tiro, do gosto pela modalidade e de muito treino e muitas horas, com a mesma arma.

Quanto a armas, há muitas possibilidades e recomendo-lhe que lhe compre logo uma coisa de jeito, como se ele fosse já um grande campeão. Olhe eu gostava de ter uma espingarda francesa, de canos sobrepostos, de cinco tiros, calibre doze e com possibilidade de adaptação de mira.

Um brinquedo desses, se for uma Verney-Carron, custa uma mão cheia de notas e depois acessórios e cartuchos não são nada baratos. Há ainda as inscrições nas diversas competições e eu recomendo-lhe que inscreva o rapaz num clube de tiro – pode ser em Monsanto, lá em Lisboa -, onde vai aprender a usar tecnicamente a arma e, se tiver aptidão, a ser um campeão.

Olhe compadre aquilo que eu aprendi, por montes e vales, atrás de coelhos, lebres e perdizes, pode o rapaz aprender numa carreira de tiro, atirando aos pratos.

Dinheiro não é problema, compadre. O que lhe peço é que dê uma palavrinha ao moço, quando ele por aqui vier e estou cá a pensar que no próximo ano, se Deus quiser, há-de acabar o curso de Engenharia.

Um dos prémios pode ser isso, não acha? Quero saber o que pensa ele e espero que dê uma ajudinha.

Desde que comecei a trabalhar como marçano, lá em Lisboa, tenho-me desunhado e nem férias em condições tenho tido: Os rapazes vão gozando qualquer coisa quando não têm aulas; mas eu e a comadre, além de dois cruzeiritos e uma viagem a Roma, para ver o Santo Padre, pouco gozamos o que tenho andado a juntar. São uns sete prédios a render e, de há uns cinco anos para cá, a Sociedade de Construções, que vai indo muito bem e gostaria que o Abel fizesse um pouco de publicidade daquilo que é também deles.

O compadre podia ir lá a Lisboa e levar-me a um armeiro de sua confiança para comprarmos tudo o que for preciso. Isto depois de sondar o rapaz, mas isso, num dos próximos dias, já nós faremos: eu dou um toque e o compadre mostra-lhe aqui as suas armas e entusiasma-o. Fica combinado!?

O conjunto de arma e equipamentos diversos, uma inscrição e trinta aulas no clube de tiro de Monsanto, incluindo a documentação, custaram para cima de sessenta contos, que naqueles anos cinquenta chegava para um automóvel de gama média. Mas automóvel já o rapaz tinha – era o condutor do pai.

O Abel tinha todas as condições para vir a ser um campeão de tiro. Foi o diagnóstico que lhe fez o mestre, lá no clube de tiro. Os reflexos é que ainda precisavam de muito treino.

Era fundamental que praticasse muito e, se gostasse de caça, poderia desenvolver os reflexos nessa actividade. Podia também inscrever-se num clube de tiro aos pratos e treinar…treinar… treinar.

Um dia o padrinho convenceu o compadre a fazer lá para os lados do campo da bola, não longe do local onde a comissão de festas costumava fazer os fossos para colocar a máquina de lançamento de pratos, umas instalações para praticar essa modalidade. E lá poderia treinar com o afilhado e até com outros atiradores das redondezas. Talvez até cobrariam para as despesas. Até podia nascer dali uma mini associação de atiradores do concelho. E a ideia foi do inteiro agrado do sr Francisco Tapada que aprovaria tudo o que sentisse como estímulo do seu amor-próprio e da obra que, a pulso e com grande sucesso, vinha construindo lá na capital.

No ano seguinte, ainda não funcionaram as competições de tiro aos pratos nas instalações do sr Tapada, junto do campo da bola, mas dois anos depois já havia muito movimento e já se tinha organizado um torneio a que compareceram catorze concorrentes e feitas as contas, afora as taças e menções honrosas, os três primeiros classificados, arrecadaram prémios pecuniários de trinta, quinze e cinco contos de réis.

Evidentemente que a comissão de festas negociou e contratou as instalações do campo da bola, como começaram a ser conhecidas e organizou um dos melhores torneios de tiro aos pratos de toda aquela região, na área do pinhal.

Conseguiu-se juntar, apoios, inscrições, publicidade e bilheteira, um montante de prémios de cem contos para o primeiro prémio, quarenta, para o segundo e dez contos de réis para o terceiro classificado.

Também os sessenta por cento do valor das apostas destinados aos que apostaram nos ganhadores, juntaram cem contos de prémios, que remuneraram quem apostou nos atiradores vencedores. O prémio pela aposta na espingarda vencedora, foi doze vezes o valor apostado.

Foi porém nessa altura que o insólito aconteceu:

Antes de iniciar as provas, são sorteadas as portas dos atiradores, é estabelecida a ordem para cada atirar e, no final, são leiloadas as espingardas, onde cada um faz as apostas que entende até um valor estabelecido, ou não, em quem pensa que vai ganhar, ou ficar entre os melhores.

No final, os premiados, isto é os que apostaram nos vencedores irão receber, proporcionalmente ao que apostaram, sessenta por cento do total das apostas, ficando os outros quarenta por cento para dividir pelos três vencedores.

Cada espingarda é leiloada, depois de anunciado o nome e naturalidade do atirador, últimas cinco provas em que participou e troféus conquistados nessas provas, bem como números de pratos lançados, partidos e total de tiros – uma vez que cada concorrente pode usar dois tiros para cada prato.

Cada apostador toma os seus apontamentos e no fim da informação vai à mesa fazer as suas apostas – mínimo de cem escudos por aposta -. O organizador começa pela espingarda nº 1 e põe a arma a leilão para que todos possam apostar naquela arma, se assim quiserem e quanto quiserem. Os apostadores gritam: arma nº X, Y escudos e depois de entregarem o dinheiro recebem o respectivo recibo, para irem no final receber o prémio se aquela arma for premiada, isto é, se ficar em primeiro, segundo ou terceiro lugar.

Quando o sr. Francisco Tapada, que ainda nem tinha entrado bem na engrenagem das apostas, ouviu: Está em leilão a arma do senhor Abel Tapada, cujo curriculum é muito fácil de explicar: participa pela primeira vez em provas oficiais.

Um tanto ou quanto timidamente aposta de lá um sujeito que tinha ouvido dizer que o rapaz iria fazer surpresa: Dou cinco contos pela espingarda nº 7, do senhor Abel Tapada.

Muito agitado, salta de lá o pai, sr Francisco Tapada, vai ao pé do compadre e grita para a Organização: esperem lá! Deve haver aqui um engano qualquer!

Então ainda há pouco dei quase cinquenta contos de réis pela arma do meu filho e querem agora vendê-la por cinco contos de réis!? Isso não pode ser! Então o que vou fazer, compadre? Eu não quero sustentar ninguém e aquela arma faz falta ao meu filho engenheiro que até vai ganhar, hoje, com ela.

Bem, compadre, se tem tanta fé, aposte na arma do seu filho: se aquele amigo dá cinco contos, ofereça o compadre dez!

Levantou o dedo e disse alto e bom som: quinze contos pela arma nº7, do
meu filho Abel e outros quinze pela arma nº 9, do meu compadre Xico Craveiro. Concorda compadre?

O sr Craveiro encolheu os ombros e pouco depois, um outro apostador oferecia outros cinco contos pela espingarda do eng. Tapada. Aí o pai, cheio de orgulho, levantou o dedo e gritou; mais dez contos pela arma do meu filho, acho que é a nº 7.

Terminada a prova e feitas as contas, verificou-se que o atirador nº 7 ficou em 2º lugar, em igualdade com o 3º, sr Xico Craveiro. Dizia o regulamento que iria ser feita uma sessão de cinco pratos para cada um, alternadamente. No final, o atirador número 7 partiu os cinco pratos com seis tiros e o sr Xico partiu os cinco pratos, com sete tiros, sendo proclamado em segundo lugar o concorrente nº7 e em terceiro o concorrente nº9.

O sr. Francisco tapada, foi o grande vencedor, pois apostou forte nos vencedores dos segundo e terceiro prémios. Ao certo, ao certo, o sr Francisco Tapadas nem soube quanto iria receber de prémios, pois disse ao filho que guardasse o prémio referente ao 2º lugar e o dele, das apostas, que desse metade para S. Sebastião e outra metade para S. Miguel, santos da sua devoção.

Mais tarde, bebendo um copo na adega do compadre, ainda se riram. O sr Francisco Tapada segredou aos amigos que por ali estavam, na patuscada:

Sabem, é que eu ainda hoje não percebo como é que o meu filho ficou quedo e calado, quando queriam comprar a sua arma por cinco contos, sabendo que eu, ainda não há muito, dei quase quarenta por ela!?