No descante do “brasileiro”passou-se algo, que ficou, para sempre, como o segredo mais bem guardado da terra. E, sessenta anos depois, o segredo já virou esquecimento e assim ficará, porque os principais possíveis actores de cena, já cá não estão para que algo se possa adiantar ao relembrar episódios que mais não serão que isso mesmo: lembranças.
Lá nos fundos da aldeia, no lugar chamado Vimeirinho, entre dois riachos, que pouco depois se juntam para começar a ribeira da Pedreguina, foi levantada uma das melhores casas da Serra. Era, pelo menos, a mais vistosa e espampanante, que antes de qualquer outra dava nas vistas a quem entrava na povoação, vindo dos lados do Casalinho, logo depois da “Arrompida”.
O “brasileiro” tinha ido para fora, com despedidas da família e tudo, havia mais de trinta anos, e não mais voltara. As notícias, raras e circunstantes, não foram suficientes para que alguém tivesse uma ideia clara de tantos anos de ausência.
Chegou, finalmente, uma carta, com carimbo de “Belgique”, não muito pródiga em explicações e quase se limitando a dizer que chegava dentro de uma semana e se demoraria à volta de seis meses, para se casar.
Chegou, para exibir o resultado de muitos litros de suor, carradas de privações de toda a espécie e tilintando bastantes libras nos bolsos.
Histórias infindáveis e buscas porfiadas para encontrar noiva que o acompanhasse, mais uma ou duas dezenas de anos, pelas terras do Congo, onde duas ou três dúzias de lojas continuavam a fazer dinheiro todos os dias. Entregues aos encarregados, que passariam a ser chefiados por alguém que estivesse à altura e disposto a acompanhar o casal e começar vida em África.
Passeou pela terra e arredores as várias novidades: o carro, tipo espadalhão americano, marca “Pontiac”, com matrícula diferente das dos poucos automóveis que já tinham estado na terra e uma coisa nunca antes vista, por ali: tinha uma telefonia na parte da frente, ao lado do volante de pau.
Tudo muito bem, só que o diacho do espada também ficava atolado, como os mais fraquitos e por umas três vezes foi tirado dos atoleiros pelos bois dos Tios Henrique e Joaquim, que faziam o trabalho ao sobrinho, com a maior boa vontade.
Umas lunetas, em riba do nariz, com cabos de tartaruga e vidros meio pretos. Num dos dedos um grande anel de ouro, com uma meia libra em cima. Na roupa, a novidade ia toda para as camisas, de tecido muito fininho e com mangas cortadas – vestia uma lavada todos os dias, embora não trabalhasse para a sujar - e para o chapéu, de palhinha, meio acastanhado. Quando ia até ao meio dos pinheiros levava na cabeça uma coisa parecida com um capacete da tropa, feita de canas entrançadas.
Mas o que mais impressionava e atraia os homens, nas tabernas, para além das rodadas que o “brasileiro” alardeava, eram as histórias que o diabo do homem contava.
A começar que, lá pelas terras onde tinha os seus negócios – para cima de trinta lojas -, cada homem podia casar com quantas mulheres quisesse, desde que tivesse dinheiro para comprá-las.
É obra, Manel! Dizia-lhe um primo. E são como as de cá? Então e como é que um homem dá a volta a tudo aquilo? Acaba por não haver mulheres para todos! Mas que fartote!...
Depois, ao comentar o caso durante a ceifa, dizia o Abílio: Então, com tantas lojas, há-de ter e trazer muito bago. Porque não escolhe o homem umas três ou quatro das melhores em vez de vir cá tão longe procurar uma mulher? Certamente já andará enjoado daquilo de lá.
Também já lhe ouvi dizer que as de lá são todas pretas e quando elas são pequenas lhes rasgam o “biquinho da palolita”de forma que ficam com pouca garra para o serviço. O que é verdade é que alguma coisa há-de haver, mas também a chegar aos cinquenta não sei o que irá arranjar, por cá!
Salta de lá o Lampanas: ora, ora, com o pilim no bolso e tudo o resto, arranja o que quiser. Estão todas de bico no ar, é só escolher! Podes crer!
Em verdade, trinta anos de isolamento e um homem na força da vida, não ajudarão muito a manter-se sem contactos com mulheres.
Assim, a primeira coisa que o “brasileiro” fez, depois de chegar a Lisboa, foi dirigir-se a um médico, cuja recomendação trazia de um grande fornecedor das suas lojas, e manifestar o desejo de fazer todos os exames sobre possíveis doenças que tivessem qualquer implicação com o casamento e vida sexual que esperava vir a fazer com a futura mulher. E, durante oito dias fez dezenas de análises ao sangue, à urina, às fezes, ao esperma, à saliva. Sujeitou-se a radiografias, electrocardiogramas e electroencefalogramas.
Ao fim dos resultados de todos os exames, recebeu os parabéns do médico e um certificado negativo de todos os exames efectuados. Foi, pois, cheio de confiança que partiu em busca de companheira para levar com ele para África.
Como seis meses passavam depressa e não havia tempo a perder, alguém, chegado, lhe fez elogios da Professora que estava na terra havia perto de vinte anos, toda a gente conhecia, era de gente humilde mas honrada de uma aldeola do concelho de Proença-a-Nova e, nada havia a apontar-lhe.
Devia andar pelos quarenta anos, talvez um pouco menos o que ainda devia permitir um ou dois filhos. Mas, nestas coisas, sabes como é, sobrinho, é preciso dois quererem e isso só saberás se te chegares. Como ela é visita cá de casa, peço-lhe que chegue cá amanhã e ficará para jantar connosco, se assim quiseres.
Na segunda conversa o Manuel Ambrósio disse abertamente o que queria e convidou a Maria da Conceição a dispor-se a conversar com ele para verem se estariam de acordo em unir as vidas e casarem, logo que fosse possível, pois deveriam, se assim acordassem, aproveitar o tempo o melhor possível e ela deveria, inclusivamente, pedir a saída do serviço, logo que tomasse uma decisão, para poderem tratar de tudo, incluindo o casamento.
Quatro meses depois, estavam diante do Senhor dos Aflitos, na capela lá da Serra, a consumar o seu casamento.
A boda estendia-se por três dias, de que o descante era muitas vezes o começo de novos casamentos. O “brasileiro” contratou o melhor acordeonista das redondezas, para os bailes dos três dias e encarregou o primo e um cunhado de todos os preparativos. A mãe, viúva e já de avançada idade, só dizia: para quê tantas coisas, filho? Nunca se fez uma boda cá na terra em que se tirasse a samarra a mais de três cabeças de gado e tu falas em quatro.
Aí o Manuel Ambrósio chegou-se ao ouvido do primo e disse-lhe: Ai já houve um casamento com quatro cabeças de gado?! Então, para o meu, que sejam oito! Vinho, do melhor e que chegue bem para todos.
De resto, eu me encarregarei de dar uma palavrinha às cozinheiras antes de começarem a trabalhar; Antes quero que sobre vinte a que falte um só que seja. Compreenderam?! Boda é só uma; é festa; é fartura!
E, para o primo, tua mulher e gaiatos, fatos e calçado, para todos, são por minha conta; para o cunhado Xico, minha única irmã e vossas filhas, igual ao que acabo de dizer ao primo. Tratem também das roupas da mãe. Ah! E se na terra alguém disser que não tem roupa para a festa tratem disso e só terão, depois, de me dizer quanto gastaram.
Não se esqueçam que todas as pessoas da aldeia são convidadas para a boda. E, passem palavra: Por ora não teremos casa cá na terra e por isso, ninguém vai dar prendas aos noivos.
Quando um dia voltarmos de África, teremos todo o gosto em receber as lembranças do nosso casamento; até lá apenas desejamos que seja uma boda à altura, onde toda a aldeia, sem excepção, se sinta em família e que fique como nossa recordação, enquanto andarmos lá por longe.
O baile do domingo, segundo dia da boda, foi interrompido a meio do serão para que todos passassem às mesas, descansassem um pouco e ceassem.
Foi avisado que também as pessoas de fora da terra, eram convidadas a partir daquele momento para matarem o bicho e provarem as bebidas.
O Victor Figueira pousou a concertina sobre a cadeira do salão do baile, o primo Manuel desceu o petromax e à frente dos dançarinos, dirigiu-se ao coberto especialmente preparado para servir a todos os da boda, que acabavam por ser todos os da terra e agora, ao serão, ainda os de fora.
Uma meia hora depois, o Manuel voltou com o petromax, já reabastecido de petróleo e uma luminosidade renovada. Entrou no salão, subiu ao estrado do tocador e pendurou o candeeiro. Viu a cadeira do acordeonista vazia e não ligou, pensando que o Victor tinha levado a concertina para qualquer coisa.
Ao regressarem todos, ficaram a olhar uns para os outros, com cara de parvos, à espera que alguém trouxesse o instrumento para continuar o baile. O tocador sobre o estrado, sem perceber o que se passava, encolhia os ombros.
Como o impasse já fosse longo e qualquer brincadeira de mau gosto já tivesse tido tempo de acabar, chegou-se à frente o primo Xico do “brasileiro” e, dirigindo-se a todos, disse:
Sabemos que um qualquer engraçadinho terá escondido a concertina, mas chega de brincadeiras. Vamos lá a trazer o instrumento para continuarmos a divertir-nos em honra dos noivos.
Todos olharam para todos e não faltava ninguém. Também não havia sinais da concertina.
Aí o noivo pediu ao primo que fosse buscar a grafonola e os discos e que ninguém se fosse embora, pois o baile ia continuar, de uma maneira, ou de outra. Colocou-se a caixa na cadeira do tocador e a grafonola começou a tocar passo dobles, tangos, valsas e corridinhos, muito do agrado dos pares dançantes. E, já altas horas quanto se acabou o baile, os rapazes da terra fizeram uma investigação junto de todos os da terra e também aos de fora a fim de averiguar o que se tinha passado com a concertina.
Ali ao lado o “brasileiro” galhofava com o tocador: Oh! Victor, não é a concertina que o ensina a tocar, pois não!? Então não se preocupe! Todos os males fossem o desaparecimento de um acordeão! Quanto lhe custa agora um instrumento um pouco melhor que o seu? E está preparado para tocar um topo de gama? Sabe, por acaso, o que isso é?
Não que se sentisse apoucado, mas antes levando a conversa para o ânimo que o Senhor Ambrósio lhe queria transmitir, disse: Sei, sim senhor o que é um topo de gama. O meu é isso mesmo. Quando o comprei, vai para três anos, era o melhor que o mercado oferecia para amadores de acordeão.
Custou-me muito a pagar o dinheiro que pedi emprestados e só há muito poucos meses acabei de liquidar. Nunca pensei que uma coisa assim me ia acontecer! Valha-me Deus!
Então e seguro, não tem? Estas coisas são de prevenir. Mas estamos para aqui a preocupar-nos quando afinal o mais importante já se passou.
Parece-me, não desfazendo, que o baile até acabou por correr bem, com os discos. E olhe que aquela geringonça, com o altifalante e a colecção de discos, talvez ultrapasse o custo de um acordeão como o seu. Mas não é a mesma coisa e antes de mais deixe-me felicitá-lo pela sua arte; pedi o melhor e, de facto, o meu primo Xico assim fez, pois você não fica atrás dos que por aí se vêm; parabéns!
Obrigado, senhor Ambrósio. Faz-se o que se pode e até à data tenho comprado e ensaiado novas músicas, sobretudo na nossa área – dança -. Graças a Deus não me falta trabalho e, para estar aqui na sua festa, deixei de ir a um cliente certo.
E logo aqui me foi acontecer uma destas!? Se amanhã não aparecer o acordeão, vou-me mas é embora, se me der licença.
Não Victor. Apareça, ou não, o instrumento, não se vai nada embora. Tem alguém conhecido que lhe empreste uma concertina para amanhã à noite? Se tiver, vamos buscá-la, se não, fica no baile connosco, pois só faremos contas depois de amanhã. E, olhe que, se não estiver a tocar… há por aí muitas raparigas… quem sabe! Aproveite, homem; não há-de ser sempre a tocar!
Correram as mais variadas versões; porém nenhuma delas mais verdadeira que a anterior, ou a seguinte, e, todas elas, sem confirmação. Dizia-se que o “brasileiro” quis levar a concertina do seu descante como recordação e mandou guardá-la, quando o salão ficou às escuras. Alguém se aproveitou e roubou o acordeão para o vender depois. O próprio tocador tinha descoberto um defeito no instrumento e tê-lo-ia feito desaparecer, combinado com um amigo, para tentar que o brasileiro lhe pagasse um novo. Tratar-se-ia de um trabalho encomendado por um vendedor de concertinas. Hipóteses!
Contos e lendas – ao certo, ao certo, nunca se soube se alguém terá contado a mais alguém o destino da concertina do descante da boda do brasileiro da Serra. Um verdadeiro segredo.
De concreto, sabe-se que o “brasileiro”pagou uma concertina nova, topo de gama na versão amadores, ao Victor e quando soube que se iria casar, com uma noiva que começou a namorar quando no descante lhe roubaram o instrumento, pediu ao primo que lhe desse, em seu nome, uma choruda prenda de casamento.
O tocador nunca desistiu de encontrar a velha concertina roubada, mas, na opinião dos mais desconfiados, apenas queria deitar poeira para os olhos dos outros, já que sabia, perfeitamente, porque o brasileiro lhe dissera, o destino que teve a concertina. Quem sabe se foi decorar um dos salões da casa que o senhor Manuel Ambrósio tinha em Leopoldville, hoje Kinshasa.
A nova concertina, que fazia a inveja de todos os tocadores concorrentes, de uma sonoridade impecável e com escalas mais evoluídas que as vulgares do mercado, exibia com letras bem grandes e prateadas, o nome do Victor Figueira. Mas na gíria todos brincavam, chamando-lhe a concertina do “brasileiro da Serra”.
O Victor Figueira, não se incomodava nada com isso; passou a ter ainda mais trabalho e a fazer-se pagar melhor. Com ela ganhava a vida e, dupla vantagem: não lhe custou a pagar!