O Jaime nasceu no olival da Barca do Pego e, na companhia do clã, passava, na nossa aldeia, várias vezes por ano, ficando, quando calhava, algumas semanas.
Trazia a carroça com a garotada e a mulher e acomodava-se, no cabanal da rua da carreira, junto da atafona.
Estava no centro do povo, aproveitava o espaço para ir tosquiando as bestas que apareciam, dava dois dedos de conversa a quem passava e tinha a taberna à mão de semear.
Conhecia e era conhecido de toda a gente. Em pequeno ainda chegou a frequentar a escola local. Era como se fosse filho da terra e, dum modo geral, muito querido e estimado. Porém, nunca aceitou trabalhos no campo, fora das suas artes de tosquiador, ferrador, latoeiro e caldeireiro. Trazia, habitualmente, uns burritos e uma ou outra besta, presos atrás da carroça, para venda e troca.
A mulher e os filhos angariavam, de porta em porta, o sustento da família e, segundo palavras do Jaime, a Serra era terra onde se recebia mais do que o que se comia. Outras havia em que até a água era dada de má vontade, a crer nas afirmações do cigano.
Mas nessas nem apetecia poisar; fazia-se o serviço que havia, o mais rápido possível e … “ala moço, que se faz tarde”!...
Uma ocasião, teve de entrar numa demanda. Foi acusado, no tribunal de Mação, pelo Ti’ Chico Manco, de o ter enganado, vendendo-lhe uma besta velha e cansada, que nem dava para ir à horta, e, de cavalaria, nem com a albarda podia. Foram estas as queixas contra o sr. Jaime cigano, mais conhecido por Jaime Tarita, que a GNR teve dificuldade em notificar.
Foram ouvidas várias testemunhas de defesa. Eis um dos depoimentos:
É claro que a costela de cigano está lá – disse o Ti’ Abílio, ao tempo Cabo de Ordens –. É finório nos negócios, mas aldrabão nunca foi, mais que qualquer um de nós.
Posso afiançar, ao Senhor Doutor Juiz, que o Jaime não enganou o Chico Manco – Francisco Alves Mendes, melhor dizendo –, pois, eu próprio presenciei o negócio, assim como muitos outros, lá na taberna da Serra. Vendeu-lhe uma besta por duas notas. Acha o Senhor Doutor Juiz que, por esse dinheiro, lhe podia dar um cavalo de corrida!?... Será que o aldrabão é o Jaime!?...
Interrogado, o Jaime apenas disse que a besta do negócio sempre esteve à vista de toda a gente e se tivesse que meter gato por lebre não seria na Serra.
Acabei por ir em paz e com a caderneta limpinha como, orgulhosamente, se gabava o Jaime Tarita, quando lhe falavam no tribunal.
Numa das passagens pela terra, o Jaime cruzou-se com uma trupe de ciganos, desconhecidos por ali, mas que o Jaime conhecia, de ginjeira.
Passavam a vida a vender gado barato, não eram de confiança, parecia que tinham cola nos dedos e, pior ainda, eram como os espanhóis: tinham os olhos na ponta dos dedos. Estes foram os avisos feitos na taberna, destinados a precaver quem com eles quisesse fazer algum negócio, ou permitisse que se aproximassem.
À saída da missa, no largo das tabernas, juntou-se gente.
Os ciganos tinham um burro, muito bem apresentado, com pouca idade, bom de cavalaria e manso como as pedras da calçada. Não havia dúvida que valia tanto como o do Jaime e estavam a pedir vinte e quatro notas, enquanto o outro não desamarrava das quarenta.
O Jaime não conseguiu aproximar-se da pechincha, mas, mesmo à distância, pôde ver
que o animal não via do olho esquerdo – os ciganos tinham-no à rédea curta e estavam sempre nesse lado do animal –.
O Jaime viu ainda, embora a albarda nunca fosse tirada, que havia sinais de cicatrizes por cima dos quartos traseiros e numa das patas estavam sobrepostas duas ferraduras.
O comprador mais entusiasmado era o Ti’Jorge Moleiro que não gostava do Jaime nem usava os seus serviços.
Gabava-se de saber tosquiar melhor que o Jaime e que ainda o Jaime não era nado já ela mexia em bestas. Daí a razão do Jaime se afastar do novelo de gente que presenciava o negócio, como convinha aos ciganos, e se refugiar na taberna a beber um copo e, de conversa com clientes seus de longa data, foi enumerando as razões por que o burro dos ciganos era tão barato.
Feito o trato e passadas as notas, os ciganos desapareceram como que por encanto e, todo vaidoso da sua aquisição, entrava na tasca o Ti Jorge, para comemorar o bom negócio que acabava de fazer.
Atirou, assim como que em ar de desafio:
Ó Jaime, não queres dar quarenta notas pelo belo animal que acabo de comprar?!... Com albarda e tudo, ainda te tiro cinco notas. Eu ganho bom dinheiro e tu ficas com uma estampa de burro.
Olhe Ti Jorge, caro ou barato, vendo o que é meu, sirvo os meus clientes e, pode estar certo que não vendo gado cego, descomposto de quartos traseiros, com costelas partidas, ou coisa pior, e com duas ferraduras na mesma pata. Deus lhe dê mais saúde que a do animal que acaba de comprar.
É que quando eu nasci já o Ti’Jorge mexia em bestas, mas estes dois olhos que a terra me há-de comer, vêem melhor os defeitos dos burros e as manhas dos ciganos que o Ti’Jorge alguma vez há-de enxergar.
E, voltando-se para a assistência que entretanto se ia juntando, disse, com calma e serenidade: quando alguém quiser uma besta mais ou menos brava, mas sem maleita e defeito físico grave, pode pedir o meu conselho, ou comprar os meus animais – não levo nada por isso, desde que esses amigos não saibam mais do que eu e peçam, por isso, a minha ajuda...
Nesta altura já muitos iam dizendo, em surdina, mas perfeitamente audível na assistência: mas que diabo quer o Jaime dizer quando se refere a animais sem maleita e defeito físico grave?...
Até o Ti’Jorge, começava a cair em si e a interrogar-se sobre o que quereria o cigano dizer. Mas não daria, ainda, parte de fraco e, para rematar, pediu mais uns copos para os circunstantes. Porém, logo que os ânimos serenaram, saiu, sorrateiramente, e dirigiu-se ao palheiro onde tinha guardado o animal.
Qual não foi o seu espanto quando viu o burrito deitado, mostrando uma enorme cicatriz na região lombar, levantando-se com dificuldade, com uma perna a claudicar e mostrando, de facto, cegueira num olho.
Vociferou e saiu do palheiro proferindo as maiores barbaridades e impropérios contra os ciganos que, tinham dado “às de vila Diogo” e desaparecido, como que por encanto.
Recolheu-se a casa e menos de oito dias passados, já com o burro enterrado e mais umas três notas gastas com o veterinário, atreveu-se a entrar na taberna, avisando que não lhe falassem mais de burros, nem de ciganos.
Todavia, fazia a justiça de dizer que, quanto a ciganos, só o Jaime merecia ser bem recebido; era o terceiro negócio que fechava com ciganos e sempre fora enganado.
De futuro, só comprarei bestas ao Jaime, ou com o seu conselho. Logo que por cá apareça, há-de ter um bom jantarinho de carne, como pedido das minhas desculpas.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
O Tonho Rosa
Amante da água, minava-se por chapinhar nas levadas das regas, no Verão, e nas valetas dos caminhos, no tempo das chuvas.
Sempre descalço, as calças pelo meio da barriga das pernas e amarradas na cintura por um cordel, tapava o tronco com o que restava de uma camisa e por cima farrapos de um velho casaco de serrobeco amarelado. Na cabeça, a carapuça de sempre; melhor dizendo, os restos de um barrete preto que apanhou algures e não voltou a tirar da cabeça.
Era o filho mais novo de uma irmandade de quatro rapazes e três raparigas, e o único com fraqueza de cabeça e poucochinho – como dizia a mãe, quando lhe notava uma grande tristeza no olhar e o via ficar quieto até que o importunassem.
Desde pequeno que manifestou atrasos: custou-lhe a falar e nunca o fez perfeitamente – emitia uns sons, perceptíveis para quem estava habituado, mas indecifráveis para os estranhos –.
Nunca aprendeu a ler nem escrever, não fazia com a perfeição mínima qualquer trabalho, não dava conta de um recado e seguia sempre à frente, ou atrás, dos pais e irmãos, quando ia para as hortas.
Convivia bem com qualquer animal e afastava-se das pessoas: já tinha apanhado coices de bestas, mordidelas de cães, arranhadelas de gatos, socos e pontapés dos irmãos e de outros garotos e continuava sem medo de nada.
As feridas cicatrizavam com muita facilidade e, embora deixasse cortar o cabelo, nunca ninguém foi capaz de lhe cortar as unhas das mãos, já que as dos pés andavam gastas pelas pedras e serviam de protecção natural.
A muito custo lá o levaram às sortes; No entanto entrou primeiro que todos os outros e foi logo dispensado; era evidente a sua indisponibilidade para o serviço militar, na opinião do médico que o viu e mandou em paz e isento de taxa militar.
Assim vivia lá na Terra; esperando, sentado na beira das hortas, enquanto irmãos e
pais trabalhavam, até que chegasse a hora das refeições.
Comia sempre com as mãos e era muito amigo de pão e fruta, de toda a espécie, que tanto colhia nas árvores das hortas da família, como nas que estivessem mais à mão. Gostava muito de queijo e mamava nas cabras, à mistura com os cabritos.
Tinha boa saúde, se bem que fraca compleição física.
Aí pelos treze ou catorze anos notaram-lhe as primeiras perturbações que a mãe chamava “acidentes”. Entrava em transe, esbugalhava os olhos, espumava pela boca, rangia os dentes e contorcia-se espojado no chão. Sinais evidentes de epilepsia, que o acompanhou por toda a vida. Quando lhe davam os “acidentes”, era esperar que passassem, deixá-lo tranquilizar e descansar. Nada mais, como dizia a mãe, conformada com a desgraça.
Houve uma altura em que deram pela falta do Tonho; teria ele á volta de vinte e cinco anos.
Procuraram por todos os recantos em volta da aldeia e nem sinais do moço.
Chegaram mesmo a procurar em poços e nos pegos da ribeira, dada a atracção que ele sentia pela água.
Ao fim de uma semana, participaram o desaparecimento na Guarda Republicana do concelho, mas nem uma fotografia havia e os sinais comunicados eram comuns a muitos pedintes que ao tempo enxameavam pelas aldeias.
Um mês passado e nem sinais de morte, ou vida, do rapaz. Num raio de muitos quilómetros todas as Terras fizeram buscas, em vão.
Quase três meses passados, sobre a madrugada, o pai do Tonho saiu à tapada para as necessidades e, encontra o moço sentado nas guardas da eira.
Estava acordado, com a cabeça entre as mãos e olhando para o pai, cheio de medo, esperando a sova que pensava lhe iria cair em cima.
Metia dó ver aquele homem feito, tal e qual um animalzinho indefeso, à espera de um pontapé, dizia, comovido até às lágrimas, o Ti Adriano Marques, que acrescentava: Chamei-o, encostei-o a mim, acarinhei-o e perguntei-lhe: onde te meteste, Tonho? Tens fome? Anda, vai para o palheiro dormir, que amanhã dizes-me tudo, está bem? Nunca mais vou esquecer a cara do rapaz, como um menino, quando percebeu que lhe dava carinho e não porrada.
A todas as perguntas encolheu os ombros e parecia não perceber o que lhe perguntavam, porque não mostrava lembrar-se de nada.
Estive a dormir lá na pedra do meio dos pinheiros; não fiz mal a ninguém, não vi ninguém e andei por muito longe, dentro de uma camioneta de pinheiros. E mais não disse.
Passados muitos meses, um dia no largo da taberna, apareceu um pedinte, nunca antes visto por ali e que tinha acabado de dar a volta ao povo.
Interrogado, por uns homens que ali estavam, sobre a sua proveniência, porque nunca por ali tinha aparecido e outros assuntos de circunstância, acabaram bebendo um copo e em conversa fiada. Nisto…
Chega à porta da taberna o Tonho Rosa e mal fitou o pedinte, desatou numa corrida, só parando lá em casa, escondido no palheiro onde dormia, habitualmente.
O esmolante parecia ter visto um fantasma; fechou os olhos, abanou a cabeça, como que procurando acordar dum sonho e perguntou: conhecem aquele homem que aqui esteve há momentos? É que andou comigo e mais uns colegas meus, lá pela ribeira da Isna, nas terras de Oleiros e encostas do Moradal. Nunca pediu, acompanhava-nos, como que maravilhado, e ia comendo o que lhe dávamos.
Ele tem uns ataques de vez em quando, não tem? Só sei que disse que se chama Tonho e que foi posto fora de casa pelos pais.
Até que um dia, estávamos todos bêbedos, na malhada, adormecemos e, de manhã o Tonho tinha desaparecido, sem levar nada e sem deixar rasto. Até que hoje…
Pois não restam dúvidas sobre as suas palavras; o rapaz é filhote daqui, nunca fez mal a ninguém, mas é apoucado e tem “acidentes”, de vez em quando. De facto, aqui há meses esteve desaparecido uns tempos e nunca conseguimos saber onde esteve, ou por onde andou.
Não se importa que mandemos chamar a família, pois vão querer falar consigo, apenas para ficarem a saber o que tem a dizer-lhes?
Por mim estou às ordens e tenho todo o tempo do mundo para ajudar, se puder ser útil para esclarecer qualquer coisa sobre o rapaz. Tenho muito boa ideia dele.
Veio o Ti’Adriano e acabaram por estar de prosa um bom par de horas. Depois acabou por convidar o pedinte para a ceia e para um encontro com o Tonho, mas teria que primeiro ir preparar as coisas, para o rapaz não desaparecer.
Que ficasse ali, na taberna, que depois mandaria chamá-lo, quando tudo estivesse preparado.
Lá em casa, o Tonho, cabisbaixo e muito tímido, andava por ali, cheio de medo e, quando viu o pai chegar, percebeu que ele lhe queria falar e foi ter com ele. Cabeça no chão, chegou-se ao pai, como que a pedir protecção e ali ficou muito quieto.
Quando o pai lhe levantou a cabeça e a olhar bem fixo para ele lhe disse que já sabia por onde ele tinha andado, com quem tinha acompanhado e ficou muito contente quando soube que sempre se tinha portado bem, não tinha roubado nada e que quando quis voltar para casa, voltou e pronto.
Mas os amigos dele ficaram tristes e preocupados quando viram desaparecer o colega e fartaram-se de procurá-lo sem conseguirem encontrá-lo. Dizem que sempre te trataram bem; É verdade?
E, quando o Tonho acenou com a cabeça que sim, o pai disse-lhe: É que aquele pobre que tu viste lá na taberna do Manel é um desses teus colegas, não é? Então porque fugiste? Não queres conversar com ele? Perguntar pelos outros amigos?
O Tonho, mais confiante e percebendo que afinal o pai, não lhe ia bater, sorriu, o que era raro nele, e abanou a cabeça em sinal de aprovação e contentamento.
O pai fez sinal ao irmão mais velho e disse-lhe que fosse à taberna e trouxesse o pedinte que lá estava, mandando adiantar a ceia pois o pobre cearia com eles e, se estivesse de acordo, dormiria no palheiro, ao pé dos rapazes.
O Tonho ouviu o recado e mais uma vez riu. Estava contente!
Chegou o homem e aproximando-se do Tonho, abraçou-o e disse-lhe: Sabes que a rapaziada tem sentido muito a tua falta, lá por cima. Eu, achei que queria conhecer outras terras e estendi-me até aqui. Não estou arrependido; há aqui gente muito boa e amiga dos pobres.
E a melhor surpresa: encontrei um amigo, não é verdade?!...
O Tonho ia olhando para ele, baixando os olhos, voltando a olhar e parecia estar até a gostar. Mas quando o pedinte lhe perguntou porque se tinha ido embora, agitou-se e abanou a cabeça em sinal de desagrado, balbuciando: senti que ia ter “acidente” e fugi.
Estive escondido numa buraca lá na serra até passarem os sinais e depois meti-me numa camioneta que estava lá e vim ali para a nossa estrada.
Ninguém me fez mal; eu gostava muito da malta, mas agora quero ficar aqui e, olhando para o pai, calou-se. Ficou cabisbaixo e deixou que os outros continuassem a falar.
Só se levantou quando viu que o colega estava a comer pouco para se chegar junto dele e fazer gestos para que comesse muito, pois não queria que ficasse com fome.
Ao outro dia o mendigo seguiu o seu caminho e o Tonho continuou no dia a dia de todos os dias, acompanhando os pais e irmãos para as hortas.
O pedinte voltou a passar mais vezes e sempre ceava lá em casa e dormia no palheiro, com os rapazes.
Com o passar dos anos, a doença do Tonho foi-se agravando, os ataques vinham mais amiúde e provocavam mais incómodos, antes e depois de acontecerem.
Quando os pressentia o Tonho ficava aflito, inquieto e com sinais de ansiedade e sofrimento, até que numa dessas vezes, desatou a fugir e foi-se esconder numa gruta do penedo da ladeira dos brejos.
Quando foram no seu encalço, eram já abundantes os sinais de sangue na entrada da caverna e, lá dentro, estava deformado e com aspecto de grande sofrimento, depois de lutar contra a morte, o cadáver do Tonho Rosa.
O pedinte dos lados lá de cima, como ficou conhecido na terra, continuou a passar e a cear na casa dos pais do Tonho, indo de seguida dormir no palheiro.
Porém, nunca saía de ao pé da mesa sem pedir um Padre-nosso, pela alma daquele inocente que, segundo as suas próprias palavras, Deus já Lá tinha….
Sempre descalço, as calças pelo meio da barriga das pernas e amarradas na cintura por um cordel, tapava o tronco com o que restava de uma camisa e por cima farrapos de um velho casaco de serrobeco amarelado. Na cabeça, a carapuça de sempre; melhor dizendo, os restos de um barrete preto que apanhou algures e não voltou a tirar da cabeça.
Era o filho mais novo de uma irmandade de quatro rapazes e três raparigas, e o único com fraqueza de cabeça e poucochinho – como dizia a mãe, quando lhe notava uma grande tristeza no olhar e o via ficar quieto até que o importunassem.
Desde pequeno que manifestou atrasos: custou-lhe a falar e nunca o fez perfeitamente – emitia uns sons, perceptíveis para quem estava habituado, mas indecifráveis para os estranhos –.
Nunca aprendeu a ler nem escrever, não fazia com a perfeição mínima qualquer trabalho, não dava conta de um recado e seguia sempre à frente, ou atrás, dos pais e irmãos, quando ia para as hortas.
Convivia bem com qualquer animal e afastava-se das pessoas: já tinha apanhado coices de bestas, mordidelas de cães, arranhadelas de gatos, socos e pontapés dos irmãos e de outros garotos e continuava sem medo de nada.
As feridas cicatrizavam com muita facilidade e, embora deixasse cortar o cabelo, nunca ninguém foi capaz de lhe cortar as unhas das mãos, já que as dos pés andavam gastas pelas pedras e serviam de protecção natural.
A muito custo lá o levaram às sortes; No entanto entrou primeiro que todos os outros e foi logo dispensado; era evidente a sua indisponibilidade para o serviço militar, na opinião do médico que o viu e mandou em paz e isento de taxa militar.
Assim vivia lá na Terra; esperando, sentado na beira das hortas, enquanto irmãos e
pais trabalhavam, até que chegasse a hora das refeições.
Comia sempre com as mãos e era muito amigo de pão e fruta, de toda a espécie, que tanto colhia nas árvores das hortas da família, como nas que estivessem mais à mão. Gostava muito de queijo e mamava nas cabras, à mistura com os cabritos.
Tinha boa saúde, se bem que fraca compleição física.
Aí pelos treze ou catorze anos notaram-lhe as primeiras perturbações que a mãe chamava “acidentes”. Entrava em transe, esbugalhava os olhos, espumava pela boca, rangia os dentes e contorcia-se espojado no chão. Sinais evidentes de epilepsia, que o acompanhou por toda a vida. Quando lhe davam os “acidentes”, era esperar que passassem, deixá-lo tranquilizar e descansar. Nada mais, como dizia a mãe, conformada com a desgraça.
Houve uma altura em que deram pela falta do Tonho; teria ele á volta de vinte e cinco anos.
Procuraram por todos os recantos em volta da aldeia e nem sinais do moço.
Chegaram mesmo a procurar em poços e nos pegos da ribeira, dada a atracção que ele sentia pela água.
Ao fim de uma semana, participaram o desaparecimento na Guarda Republicana do concelho, mas nem uma fotografia havia e os sinais comunicados eram comuns a muitos pedintes que ao tempo enxameavam pelas aldeias.
Um mês passado e nem sinais de morte, ou vida, do rapaz. Num raio de muitos quilómetros todas as Terras fizeram buscas, em vão.
Quase três meses passados, sobre a madrugada, o pai do Tonho saiu à tapada para as necessidades e, encontra o moço sentado nas guardas da eira.
Estava acordado, com a cabeça entre as mãos e olhando para o pai, cheio de medo, esperando a sova que pensava lhe iria cair em cima.
Metia dó ver aquele homem feito, tal e qual um animalzinho indefeso, à espera de um pontapé, dizia, comovido até às lágrimas, o Ti Adriano Marques, que acrescentava: Chamei-o, encostei-o a mim, acarinhei-o e perguntei-lhe: onde te meteste, Tonho? Tens fome? Anda, vai para o palheiro dormir, que amanhã dizes-me tudo, está bem? Nunca mais vou esquecer a cara do rapaz, como um menino, quando percebeu que lhe dava carinho e não porrada.
A todas as perguntas encolheu os ombros e parecia não perceber o que lhe perguntavam, porque não mostrava lembrar-se de nada.
Estive a dormir lá na pedra do meio dos pinheiros; não fiz mal a ninguém, não vi ninguém e andei por muito longe, dentro de uma camioneta de pinheiros. E mais não disse.
Passados muitos meses, um dia no largo da taberna, apareceu um pedinte, nunca antes visto por ali e que tinha acabado de dar a volta ao povo.
Interrogado, por uns homens que ali estavam, sobre a sua proveniência, porque nunca por ali tinha aparecido e outros assuntos de circunstância, acabaram bebendo um copo e em conversa fiada. Nisto…
Chega à porta da taberna o Tonho Rosa e mal fitou o pedinte, desatou numa corrida, só parando lá em casa, escondido no palheiro onde dormia, habitualmente.
O esmolante parecia ter visto um fantasma; fechou os olhos, abanou a cabeça, como que procurando acordar dum sonho e perguntou: conhecem aquele homem que aqui esteve há momentos? É que andou comigo e mais uns colegas meus, lá pela ribeira da Isna, nas terras de Oleiros e encostas do Moradal. Nunca pediu, acompanhava-nos, como que maravilhado, e ia comendo o que lhe dávamos.
Ele tem uns ataques de vez em quando, não tem? Só sei que disse que se chama Tonho e que foi posto fora de casa pelos pais.
Até que um dia, estávamos todos bêbedos, na malhada, adormecemos e, de manhã o Tonho tinha desaparecido, sem levar nada e sem deixar rasto. Até que hoje…
Pois não restam dúvidas sobre as suas palavras; o rapaz é filhote daqui, nunca fez mal a ninguém, mas é apoucado e tem “acidentes”, de vez em quando. De facto, aqui há meses esteve desaparecido uns tempos e nunca conseguimos saber onde esteve, ou por onde andou.
Não se importa que mandemos chamar a família, pois vão querer falar consigo, apenas para ficarem a saber o que tem a dizer-lhes?
Por mim estou às ordens e tenho todo o tempo do mundo para ajudar, se puder ser útil para esclarecer qualquer coisa sobre o rapaz. Tenho muito boa ideia dele.
Veio o Ti’Adriano e acabaram por estar de prosa um bom par de horas. Depois acabou por convidar o pedinte para a ceia e para um encontro com o Tonho, mas teria que primeiro ir preparar as coisas, para o rapaz não desaparecer.
Que ficasse ali, na taberna, que depois mandaria chamá-lo, quando tudo estivesse preparado.
Lá em casa, o Tonho, cabisbaixo e muito tímido, andava por ali, cheio de medo e, quando viu o pai chegar, percebeu que ele lhe queria falar e foi ter com ele. Cabeça no chão, chegou-se ao pai, como que a pedir protecção e ali ficou muito quieto.
Quando o pai lhe levantou a cabeça e a olhar bem fixo para ele lhe disse que já sabia por onde ele tinha andado, com quem tinha acompanhado e ficou muito contente quando soube que sempre se tinha portado bem, não tinha roubado nada e que quando quis voltar para casa, voltou e pronto.
Mas os amigos dele ficaram tristes e preocupados quando viram desaparecer o colega e fartaram-se de procurá-lo sem conseguirem encontrá-lo. Dizem que sempre te trataram bem; É verdade?
E, quando o Tonho acenou com a cabeça que sim, o pai disse-lhe: É que aquele pobre que tu viste lá na taberna do Manel é um desses teus colegas, não é? Então porque fugiste? Não queres conversar com ele? Perguntar pelos outros amigos?
O Tonho, mais confiante e percebendo que afinal o pai, não lhe ia bater, sorriu, o que era raro nele, e abanou a cabeça em sinal de aprovação e contentamento.
O pai fez sinal ao irmão mais velho e disse-lhe que fosse à taberna e trouxesse o pedinte que lá estava, mandando adiantar a ceia pois o pobre cearia com eles e, se estivesse de acordo, dormiria no palheiro, ao pé dos rapazes.
O Tonho ouviu o recado e mais uma vez riu. Estava contente!
Chegou o homem e aproximando-se do Tonho, abraçou-o e disse-lhe: Sabes que a rapaziada tem sentido muito a tua falta, lá por cima. Eu, achei que queria conhecer outras terras e estendi-me até aqui. Não estou arrependido; há aqui gente muito boa e amiga dos pobres.
E a melhor surpresa: encontrei um amigo, não é verdade?!...
O Tonho ia olhando para ele, baixando os olhos, voltando a olhar e parecia estar até a gostar. Mas quando o pedinte lhe perguntou porque se tinha ido embora, agitou-se e abanou a cabeça em sinal de desagrado, balbuciando: senti que ia ter “acidente” e fugi.
Estive escondido numa buraca lá na serra até passarem os sinais e depois meti-me numa camioneta que estava lá e vim ali para a nossa estrada.
Ninguém me fez mal; eu gostava muito da malta, mas agora quero ficar aqui e, olhando para o pai, calou-se. Ficou cabisbaixo e deixou que os outros continuassem a falar.
Só se levantou quando viu que o colega estava a comer pouco para se chegar junto dele e fazer gestos para que comesse muito, pois não queria que ficasse com fome.
Ao outro dia o mendigo seguiu o seu caminho e o Tonho continuou no dia a dia de todos os dias, acompanhando os pais e irmãos para as hortas.
O pedinte voltou a passar mais vezes e sempre ceava lá em casa e dormia no palheiro, com os rapazes.
Com o passar dos anos, a doença do Tonho foi-se agravando, os ataques vinham mais amiúde e provocavam mais incómodos, antes e depois de acontecerem.
Quando os pressentia o Tonho ficava aflito, inquieto e com sinais de ansiedade e sofrimento, até que numa dessas vezes, desatou a fugir e foi-se esconder numa gruta do penedo da ladeira dos brejos.
Quando foram no seu encalço, eram já abundantes os sinais de sangue na entrada da caverna e, lá dentro, estava deformado e com aspecto de grande sofrimento, depois de lutar contra a morte, o cadáver do Tonho Rosa.
O pedinte dos lados lá de cima, como ficou conhecido na terra, continuou a passar e a cear na casa dos pais do Tonho, indo de seguida dormir no palheiro.
Porém, nunca saía de ao pé da mesa sem pedir um Padre-nosso, pela alma daquele inocente que, segundo as suas próprias palavras, Deus já Lá tinha….
domingo, 29 de novembro de 2009
A buraca do Tó
Depois de deixar as Pedrinhas Negras e antes da Passada, estendem-se os alqueives num e noutro lado da Cova do Pereiro.
Em anos bons, como dizia o Ti’João Abelha, crescia ali pastagem para sustentar meio cento de cabeças de gado, mas acrescentava, com alguma ironia: eu, com quase setenta anos, nunca vi um desses anos bons, lá naquele vale de cães.
Terra do demónio que nem tem água boa para beber – se temos sede temos de ir ao outro lado, à represa do Cabeço Seixo. E acrescentava:
O meu avô andou por lá a cavar e, se bem que a pedra não fosse muito dura de roer, nunca encontrou o que procurava – água.
O meu pai tentou fazer lá uma charca para guardar as águas da chuva, mas o terreno é tão roto que nem as águas consegue segurar – trabalho em vão.
Eu plantei uns bons centos de calitros – que os doutores dizem eucaliptos, ou lá o que seja – e não vingaram mais de meio cento, que acabaram por crescer raquíticos, bons para canas de foguetes – foi dinheiro e trabalho deitados à rua.
Terra de lacraus e cobras é o que aquilo é. Segundo se conta há lá “abíboras”e parece que até uma, numa ocasião, lá terá mordido um homem, que acabou por ir desta para melhor – para mim foi para pior, pois nunca ninguém cá voltou para dizer que é melhor –.
Os coelhos e as lebres são do piorio; magros que nem cães e não deixam escarapentar uma folha verde nas hortas em redor. Segundo dizem os caçadores, mesmo chumbados vão sempre morrer longe, com o diabo que os leve.
Parece que nas pedras lá do fundo – um amontoado de lajes, já com montes de terra e árvores por cima -, foram para lá levadas para fazer uma ponte; segundo os mais idosos, uma espécie de “alcaduto” que levaria as águas desde uma represa, feita nas Pedrinhas Negras, até aqueles campos que, com água, poderiam dar de comer a muita gente.
E ali, perto da Terra, seria um verdadeiro maná para tantos precisados de uma horta de mimos.
Outros dizem que aquelas pedras são os restos de um cemitério que, muitos séculos atrás, teria servido a várias aldeias em redor.
A verdade é que nunca ninguém se quis meter com aquilo e até o caminho foi mudado para a meia encosta, de modo a passar mais afastado daquele lugar. Até se diz que se escondem lá coisas esquisitas; eu não acredito nisso e acho que aquilo não passa de um cóio de bicharada de todo o tipo: gatos-bravos, raposas, texugos, ouriços e toda a espécie de cobras e lagartos. Lobos, não me parece que consigam lá entrar, se não também lá se iriam esconder.
Por baixo das lajes de cima, há várias camadas de pedras e por muita que fosse a água das chuvas, ao chegar ali era engolida e desaparecia. Nunca ninguém soube para onde, mas o ribeiro não engrossava com ela.
Eu tenho andado muito por ali e nunca vi vivo a entrar ou sair daquelas pedras; os cães do meu sobrinho têm seguido muita caça e ali, naquelas estevas, perdem-na como por encanto, para não mais a toscarem.
Contava o meu bisavô que, um belo dia, um pastor seguiu um coelho que se foi lá esconder. Viu, perfeitamente o buraco por onde ele entrou e esgueirou-se, atrás dele, para apanhá-lo.
A entrada, entre duas grandes lajes, teria, e ainda tem, é claro, pouco mais de vinte centímetros, mas torce daqui, ajeita dali, e o rapaz lá conseguiu meter a cabeça.
Pensando no que sempre ouvira dizer: que onde passa a cabeça há-de passar o resto do corpo, esgadanhou um bocado mas passou e achou-se dentro de uma espécie de salita, onde caberiam, bem, meia dúzia de homens.
Não havia muita luz, mas o chão estava pejado de caganitas e bostas de todo o tipo e o cheiro era do piorio. Aqui o bisavô metia um aparte: devia cheirar a Tabú, do espanhol, pois comparado com o bafio normal do pastor, seria verdadeiro perfume!...
O Tó Rola, assim se chamava o pastor, olhou para todos os lados, viu luz em várias pequenas frestas, esgravatou com um tanganho que ali apanhou, depois pôs-se à coca a ver se ouvia algum sinal de vida, nalguma direcção, e nada.
Havia buracos para baixo, mas a sua coragem tinha-se acabado ali e agora era pensar em sair e mais nada. Como o buraco por onde tinha entrado era o maior, dirigiu-se para lá e, com as mãos à frente, tentou meter a cabeça.
A certa altura ouviu atrás de si ruídos e pensou que algum laparoto iria a entrar ou a sair. Porém havia que concentrar-se no buraco por onde teria de sair e teve a sensação que a fresta era agora muito mais estreita.
Esgravatou no chão e doeram-lhe as mãos, pois era pedra rija a da soleira do buraco. Voltou-se de costas para melhor ajeitar a cabeça a qualquer buraquinho que existisse, mas nada, não encontrava lugar onde fosse capaz de enfiar a cabeça.
Já suava e começava a ficar, com licença dos senhores, dizia o meu bisavô, à rasca. Lá por fora também não se ouvia vivalma e o sol ia caminhando para o Pontão. Quando lá chegasse era noite.
A estas horas já o Tó Rola pensava em rezar, até que ouviu barulho lá em cima, no caminho e gritou com quanta força tinha: Acudam!... Acudam-me, que morro aqui! Acabou por calar-se, pois não apareceu ninguém.
A horas de recolher o gado, não apareceu o Tó e aí o Ti’Jaime Mendes, onde ele era criado, passou palavra que o pastor não tinha vindo com o gado e que já devia ter chegado, pois andaria por perto, ali na da Cova do Pereiro.
Assobiaram lá nas Pedrinhas Negras e apareceu o “vadio”, cão que sempre acompanhava o Tó e que andava inquieto, agitando o rabo e batendo com a pata no chão – sinal de que estava a chamar, para que o seguissem.
Quando chegaram às vistas da Cova do Pereiro viram o gado amodorrado junto do montinho dos pinheiros e nada do Tó. Mas o vadio agitava-se cada vez mais e a um assobio do Galhibano, veio a resposta do Tó, assobiando também.
Foi só seguir o cão até à boca das pedras e já com uma lanterna começaram a incentivar o moço para que se esforçasse, pois se entrou havia de sair, mas…nada. Não havia maneiras.
Dizia-lhe, de fora, o pai: Faz força, diabo! Mas tu entraste e tens de sair, demónio! A não ser que tenhas comido aí alguma coisa que te tenha enchido a barriga.
Respondia o Tó: tenho a barriga colada às costas, desde o meio-dia que não como nada e já abaixei as calças três vezes, desde que aqui estou.
O Tó voltava a esgueirar-se, esticava as mãos e às tantas já eram dois a puxá-lo e nada.
O Galhibano que tinha sempre de arranjar uma das dele, foi-se ao ribeiro e trouxe uma vergôntea de sabugueiro, tirou-lhe toda a rama, deixando só as folhas da ponta. Deixou a vara escondida na parte de trás das pedras e veio à boca da fresta conferenciar com o Tó:
Bem, só vejo uma maneira de te fazer sair daí, tens de conseguir escorregar. Mas, o azeite da lanterna não chega!... Espera lá, tenho ali no bornal uma coisa que vai servir. E foi-se para trás das pedras. Pediu que se calassem todos e, calmamente, falou para o Tó:
Tenho aqui um verdugo que apanhei esta tarde e que está gorda como um texugo. Vou metê-la por um destes buracos aqui de trás e só a largo quando tu aí a agarrares. Depois bates-lhe com a cabeça aí numa pedra e untas a saída com a banha da cobra…Hás-de sair!...
Não, não!... Berrava o Tó; Uma cobra não!...Não morro apertado nas pedras, mas o coração não vai aguentar-se. Pelas tuas alminha, uma cobra não!...
O Tó suava em bica e quando sentiu as folhas da vara de sabugueiro a subir-lhe pelas pernas acima e a chegar-lhe quase entre as pernas, deu um impulso e, não se sabe como, apareceu fora do buraco.
Estava lá o Galhibano, muito aprumado, com a vara de sabugueiro na mão, qual lança de cavaleiro, que lhe disse, dando-lhe a vara: Guarda o verdugo, pois, com ele, podes safar outro de qualquer enrascadela.
Quando me contaram esta história ainda o local, que ninguém sabe o que esconde e só a outra História poderá desvendar, se chamava: A Buraca do Tó.
Em anos bons, como dizia o Ti’João Abelha, crescia ali pastagem para sustentar meio cento de cabeças de gado, mas acrescentava, com alguma ironia: eu, com quase setenta anos, nunca vi um desses anos bons, lá naquele vale de cães.
Terra do demónio que nem tem água boa para beber – se temos sede temos de ir ao outro lado, à represa do Cabeço Seixo. E acrescentava:
O meu avô andou por lá a cavar e, se bem que a pedra não fosse muito dura de roer, nunca encontrou o que procurava – água.
O meu pai tentou fazer lá uma charca para guardar as águas da chuva, mas o terreno é tão roto que nem as águas consegue segurar – trabalho em vão.
Eu plantei uns bons centos de calitros – que os doutores dizem eucaliptos, ou lá o que seja – e não vingaram mais de meio cento, que acabaram por crescer raquíticos, bons para canas de foguetes – foi dinheiro e trabalho deitados à rua.
Terra de lacraus e cobras é o que aquilo é. Segundo se conta há lá “abíboras”e parece que até uma, numa ocasião, lá terá mordido um homem, que acabou por ir desta para melhor – para mim foi para pior, pois nunca ninguém cá voltou para dizer que é melhor –.
Os coelhos e as lebres são do piorio; magros que nem cães e não deixam escarapentar uma folha verde nas hortas em redor. Segundo dizem os caçadores, mesmo chumbados vão sempre morrer longe, com o diabo que os leve.
Parece que nas pedras lá do fundo – um amontoado de lajes, já com montes de terra e árvores por cima -, foram para lá levadas para fazer uma ponte; segundo os mais idosos, uma espécie de “alcaduto” que levaria as águas desde uma represa, feita nas Pedrinhas Negras, até aqueles campos que, com água, poderiam dar de comer a muita gente.
E ali, perto da Terra, seria um verdadeiro maná para tantos precisados de uma horta de mimos.
Outros dizem que aquelas pedras são os restos de um cemitério que, muitos séculos atrás, teria servido a várias aldeias em redor.
A verdade é que nunca ninguém se quis meter com aquilo e até o caminho foi mudado para a meia encosta, de modo a passar mais afastado daquele lugar. Até se diz que se escondem lá coisas esquisitas; eu não acredito nisso e acho que aquilo não passa de um cóio de bicharada de todo o tipo: gatos-bravos, raposas, texugos, ouriços e toda a espécie de cobras e lagartos. Lobos, não me parece que consigam lá entrar, se não também lá se iriam esconder.
Por baixo das lajes de cima, há várias camadas de pedras e por muita que fosse a água das chuvas, ao chegar ali era engolida e desaparecia. Nunca ninguém soube para onde, mas o ribeiro não engrossava com ela.
Eu tenho andado muito por ali e nunca vi vivo a entrar ou sair daquelas pedras; os cães do meu sobrinho têm seguido muita caça e ali, naquelas estevas, perdem-na como por encanto, para não mais a toscarem.
Contava o meu bisavô que, um belo dia, um pastor seguiu um coelho que se foi lá esconder. Viu, perfeitamente o buraco por onde ele entrou e esgueirou-se, atrás dele, para apanhá-lo.
A entrada, entre duas grandes lajes, teria, e ainda tem, é claro, pouco mais de vinte centímetros, mas torce daqui, ajeita dali, e o rapaz lá conseguiu meter a cabeça.
Pensando no que sempre ouvira dizer: que onde passa a cabeça há-de passar o resto do corpo, esgadanhou um bocado mas passou e achou-se dentro de uma espécie de salita, onde caberiam, bem, meia dúzia de homens.
Não havia muita luz, mas o chão estava pejado de caganitas e bostas de todo o tipo e o cheiro era do piorio. Aqui o bisavô metia um aparte: devia cheirar a Tabú, do espanhol, pois comparado com o bafio normal do pastor, seria verdadeiro perfume!...
O Tó Rola, assim se chamava o pastor, olhou para todos os lados, viu luz em várias pequenas frestas, esgravatou com um tanganho que ali apanhou, depois pôs-se à coca a ver se ouvia algum sinal de vida, nalguma direcção, e nada.
Havia buracos para baixo, mas a sua coragem tinha-se acabado ali e agora era pensar em sair e mais nada. Como o buraco por onde tinha entrado era o maior, dirigiu-se para lá e, com as mãos à frente, tentou meter a cabeça.
A certa altura ouviu atrás de si ruídos e pensou que algum laparoto iria a entrar ou a sair. Porém havia que concentrar-se no buraco por onde teria de sair e teve a sensação que a fresta era agora muito mais estreita.
Esgravatou no chão e doeram-lhe as mãos, pois era pedra rija a da soleira do buraco. Voltou-se de costas para melhor ajeitar a cabeça a qualquer buraquinho que existisse, mas nada, não encontrava lugar onde fosse capaz de enfiar a cabeça.
Já suava e começava a ficar, com licença dos senhores, dizia o meu bisavô, à rasca. Lá por fora também não se ouvia vivalma e o sol ia caminhando para o Pontão. Quando lá chegasse era noite.
A estas horas já o Tó Rola pensava em rezar, até que ouviu barulho lá em cima, no caminho e gritou com quanta força tinha: Acudam!... Acudam-me, que morro aqui! Acabou por calar-se, pois não apareceu ninguém.
A horas de recolher o gado, não apareceu o Tó e aí o Ti’Jaime Mendes, onde ele era criado, passou palavra que o pastor não tinha vindo com o gado e que já devia ter chegado, pois andaria por perto, ali na da Cova do Pereiro.
Assobiaram lá nas Pedrinhas Negras e apareceu o “vadio”, cão que sempre acompanhava o Tó e que andava inquieto, agitando o rabo e batendo com a pata no chão – sinal de que estava a chamar, para que o seguissem.
Quando chegaram às vistas da Cova do Pereiro viram o gado amodorrado junto do montinho dos pinheiros e nada do Tó. Mas o vadio agitava-se cada vez mais e a um assobio do Galhibano, veio a resposta do Tó, assobiando também.
Foi só seguir o cão até à boca das pedras e já com uma lanterna começaram a incentivar o moço para que se esforçasse, pois se entrou havia de sair, mas…nada. Não havia maneiras.
Dizia-lhe, de fora, o pai: Faz força, diabo! Mas tu entraste e tens de sair, demónio! A não ser que tenhas comido aí alguma coisa que te tenha enchido a barriga.
Respondia o Tó: tenho a barriga colada às costas, desde o meio-dia que não como nada e já abaixei as calças três vezes, desde que aqui estou.
O Tó voltava a esgueirar-se, esticava as mãos e às tantas já eram dois a puxá-lo e nada.
O Galhibano que tinha sempre de arranjar uma das dele, foi-se ao ribeiro e trouxe uma vergôntea de sabugueiro, tirou-lhe toda a rama, deixando só as folhas da ponta. Deixou a vara escondida na parte de trás das pedras e veio à boca da fresta conferenciar com o Tó:
Bem, só vejo uma maneira de te fazer sair daí, tens de conseguir escorregar. Mas, o azeite da lanterna não chega!... Espera lá, tenho ali no bornal uma coisa que vai servir. E foi-se para trás das pedras. Pediu que se calassem todos e, calmamente, falou para o Tó:
Tenho aqui um verdugo que apanhei esta tarde e que está gorda como um texugo. Vou metê-la por um destes buracos aqui de trás e só a largo quando tu aí a agarrares. Depois bates-lhe com a cabeça aí numa pedra e untas a saída com a banha da cobra…Hás-de sair!...
Não, não!... Berrava o Tó; Uma cobra não!...Não morro apertado nas pedras, mas o coração não vai aguentar-se. Pelas tuas alminha, uma cobra não!...
O Tó suava em bica e quando sentiu as folhas da vara de sabugueiro a subir-lhe pelas pernas acima e a chegar-lhe quase entre as pernas, deu um impulso e, não se sabe como, apareceu fora do buraco.
Estava lá o Galhibano, muito aprumado, com a vara de sabugueiro na mão, qual lança de cavaleiro, que lhe disse, dando-lhe a vara: Guarda o verdugo, pois, com ele, podes safar outro de qualquer enrascadela.
Quando me contaram esta história ainda o local, que ninguém sabe o que esconde e só a outra História poderá desvendar, se chamava: A Buraca do Tó.
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
“Séc’ló Notícias”
Completaram-se os nove anos entre as tiragens de cortiça na Herdade do Meio e na da Carvalheira de Cima.
Cento e cinquenta hectares de sobro do melhor, que acabavam de produzir quase dez mil arrobas de cortiça que, vendida a um industrial do Montijo, valeu a bonita soma de quase vinte mil contos – uma grande fortuna, na época, que foi entregue ao senhor Lavrador Lopes Guerreiro, em notas do Banco de Portugal e um cheque visado, no dia em que as camionetas começaram a carregar para o Montijo e para duas fábricas do Norte.
O senhor Lavrador meteu as notas e o cheque numa bolsa de pano que guardou na casa forte.
Uma construção de cimento armado, à prova de fogo, de tamanho descomunal e encastrada sobre uma sapata construída num poço aberto no chão, com frestas, cujas ranhuras inclinadas em várias direcções mediam menos de dois centímetros e eram protegidas, por dentro, por uma rede de malha fina.
A cavidade útil, um cubo de dois metros de lado, era acedida por uma porta encomendada a uma casa especializada de Paris, por um tio do Senhor Lavrador.
Classificada de alta segurança, era resistente ao fogo, tinha uma estrutura de amortecimento de explosões e dada a situação do celeiro não havia possibilidade de se inundar.
Abria para dentro e tinha um dispositivo comandado do interior, que com um simples toque escancarava a porta.
Pelo exterior, dois dispositivos de segredo e uma tranca camuflada e secreta, completavam o fecho do bunker.
Nesta casa forte estavam valores em dinheiro, sempre em quantidade avultada, pois o senhor Lavrador não queria estar descalço, como dizia a miúdo, jóias da família, documentos importantes, armas, correspondência pessoal e de importância familiar, etc.
Havia sempre fósforos, velas de sebo, um garrafão de água e uma manta dobrada, ao lado de uma pequena mesa e uma cadeira onde o se sentava o senhor Lavrador, quando tratava o que precisava.
Os segredos, das fechaduras e das trancas, eram conhecidos por sete pessoas, divididos em três grupos.
Essas pessoas agiam individualmente e do conjunto das acções dos três, resultava a abertura da casa forte.:
O Senhor Lavrador conhecia o segredo das trancas e os códigos das duas fechaduras, isto é, podia abrir e fechar, sozinho, a casa forte.
O filho mais velho, doutor Manuel, veterinário no concelho de Beja, conhecia o segredo da fechadura de cima; o feitor, André Cotovia, sabia abrir a de baixo e o maioral do gado sabia desactivar as trancas, mas nunca podiam estar os três junto da casa forte, a não ser quando o último dos três activava o seu segredo e chamava os outros dois, para que o mais velho rodasse o volante de ferro que abria a porta.
Outro grupo, idêntico a este, era formado pelo doutor Pedro, filho mais novo do Senhor Lavrador, que administrava as cinco herdades da casa e vivia lá no Monte da Herdade dos Bons Ares, que conhecia o segredo da fechadura de cima, pelo contabilista que sabia o da fechadura de baixo e pelo capataz, Agostinho Gancho, que sabia destravar as trancas.
No Notário havia um envelope lacrado com cada um dos três segredos.
Quando morria o titular, ou deixava de trabalhar na casa, o respectivo segredo era confiado ao novo confrade, sob juramento, pelo notário, na presença do senhor Lavrador.
Assim, a casa forte só poderia ser aberta pelo senhor Lavrador, por cada um dos grupos de três elementos, ou pelo notário que guardava as cartas lacradas, que só poderiam ser abertas e usadas, em caso de qualquer emergência.
No Natal de cada ano, os titulares das cartas com o segredo da casa forte e o notário recebiam, num envelope, uma recompensa do Senhor Lavrador.
Não conheciam as broas uns dos outros, mas todos se dirigiam ao Banco, nos primeiros dias do ano, para depositarem o prémio que tinham recebido do patrão.
Alguns dias depois do recebimento dos valores da cortiça, o Senhor Lavrador chamou o André Cotovia e o Agostinho Gancho, feitor e capataz da Herdade dos Bons Ares e homens da sua inteira confiança, para que apanhassem o comboio, em Beja, e fossem a Lisboa, ao Banco Ultramarino, levar o dinheiro da cortiça.
Deviam ir com os olhos bem abertos, sempre um em frente do outro, guardando a retaguarda do parceiro.
Depois de deixarem o comboio, no Barreiro, era só atravessar no barco e, no outro lado, em Lisboa, atravessavam aquele grande largo que tem um homem em riba dum cavalo, metiam na rua que tem um arco e logo viam uma grande casa com as letras Banco Ultramarino.
Há-de dirigir-se a vocês um porteiro fardado que vos dirá bons dias!
O André responderá: bons dias!... Vamos falar ao Senhor Mendes; trazemos esta encomenda para ele! E nesta altura mostras-lhe a bolsa.
No cimo dumas escadas estará um senhor de óculos que vos cumprimentará: olá senhor André!...Como está o meu amigo, o Senhor Lavrador Lopes Guerreiro? Mandou uma lembrança para mim? Vamos ali ao meu gabinete.
E lá dentro, dás o cheque e o dinheiro da bolsa ao senhor e esperas até que ele te dê um papel que guardas na algibeira.
Agradeces e despedes-te e já podem ir a uma taberna qualquer, comer bem e beber melhor.
Depois, apanham o comboio da tarde e, em Beja, há-de estar alguém para vos trazer para cima.
No banco o director, senhor Mendes, tinha avisado a portaria para mandar subir os dois homens com uma bolsa de trapos na mão. Quando tudo estivesse concluído o banqueiro telefonaria ao Lavrador e os homens seguiriam o seu destino.
Por volta do meio-dia toca o telefone no Monte e o senhor Lavrador ouve do outro lado o feitor André a dizer que tinha havido um contratempo e, como medida de segurança, não foram ao Banco.
Tinham a bolsa do dinheiro bem guardada e voltavam no comboio das duas, para que já tinham bilhete.
Agradecia que mandasse buscá-los, a Beja, lá pelas cinco horas. Depois esclareceria tudo; agora era melhor não adiantar mais nada, pois não sabia se estavam a segui-los.
O Lavrador comunicou ao banqueiro, seu amigo, que tinha havido um percalço com os emissários, mas os valores estavam em segurança e quando conhecesse todo o enredo da história lhe daria notícias.
Quando os dois homens chegaram à herdade foram entregar ao patrão a bolsa que nem tinham chegado a abrir e que o feitor ainda levava espalmada entre a camisola interior e a camisa, donde não chegou a sair.
O capataz deu um passo em frente e, calmamente, disse:
É a primeira vez que volto sem as ordens do Senhor Lavrador cumpridas; acho que aqui o Agostinho se pode gabar do mesmo.
Mas, mal pusemos pés em terra, à saída do barco, ouvimos aquela chusma de gajos – com sua licença – a gritar, correndo de um lado para o outro, como que a procurar alguém e entregando uns papéis que tiravam de debaixo do braço, dum bornal que traziam a tiracolo, resolvemos não nos meter em embrulhadas e, discretamente fomos comprar bilhete e viemos no barco de volta.
Sossegámos um pouco, pois parece que nos terão perdido de vista e, no barco não demos por ninguém a seguir-nos e, também na estação parece que não estava ninguém à nossa espera.
Metemo-nos na carruagem, sentámo-nos na frente um do outro e trouxemos para casa a sua encomendinha.
Que nos perdoe o patrão, mas sempre se disse que o seguro morreu de velho.
Aí, algo intrigado ainda, o Lavrador perguntou:
E que dizia essa gente lá na estação dos barcos e nos passeios à volta?
Adiantou-se o Agostinho, respondendo: “Cerquem os da cortiça!... Cerquem os da cortiça!..”
E logo, do lado, outros repetiam: “Cerquem os da cortiça!... Cerquem os da cortiça!”
Cento e cinquenta hectares de sobro do melhor, que acabavam de produzir quase dez mil arrobas de cortiça que, vendida a um industrial do Montijo, valeu a bonita soma de quase vinte mil contos – uma grande fortuna, na época, que foi entregue ao senhor Lavrador Lopes Guerreiro, em notas do Banco de Portugal e um cheque visado, no dia em que as camionetas começaram a carregar para o Montijo e para duas fábricas do Norte.
O senhor Lavrador meteu as notas e o cheque numa bolsa de pano que guardou na casa forte.
Uma construção de cimento armado, à prova de fogo, de tamanho descomunal e encastrada sobre uma sapata construída num poço aberto no chão, com frestas, cujas ranhuras inclinadas em várias direcções mediam menos de dois centímetros e eram protegidas, por dentro, por uma rede de malha fina.
A cavidade útil, um cubo de dois metros de lado, era acedida por uma porta encomendada a uma casa especializada de Paris, por um tio do Senhor Lavrador.
Classificada de alta segurança, era resistente ao fogo, tinha uma estrutura de amortecimento de explosões e dada a situação do celeiro não havia possibilidade de se inundar.
Abria para dentro e tinha um dispositivo comandado do interior, que com um simples toque escancarava a porta.
Pelo exterior, dois dispositivos de segredo e uma tranca camuflada e secreta, completavam o fecho do bunker.
Nesta casa forte estavam valores em dinheiro, sempre em quantidade avultada, pois o senhor Lavrador não queria estar descalço, como dizia a miúdo, jóias da família, documentos importantes, armas, correspondência pessoal e de importância familiar, etc.
Havia sempre fósforos, velas de sebo, um garrafão de água e uma manta dobrada, ao lado de uma pequena mesa e uma cadeira onde o se sentava o senhor Lavrador, quando tratava o que precisava.
Os segredos, das fechaduras e das trancas, eram conhecidos por sete pessoas, divididos em três grupos.
Essas pessoas agiam individualmente e do conjunto das acções dos três, resultava a abertura da casa forte.:
O Senhor Lavrador conhecia o segredo das trancas e os códigos das duas fechaduras, isto é, podia abrir e fechar, sozinho, a casa forte.
O filho mais velho, doutor Manuel, veterinário no concelho de Beja, conhecia o segredo da fechadura de cima; o feitor, André Cotovia, sabia abrir a de baixo e o maioral do gado sabia desactivar as trancas, mas nunca podiam estar os três junto da casa forte, a não ser quando o último dos três activava o seu segredo e chamava os outros dois, para que o mais velho rodasse o volante de ferro que abria a porta.
Outro grupo, idêntico a este, era formado pelo doutor Pedro, filho mais novo do Senhor Lavrador, que administrava as cinco herdades da casa e vivia lá no Monte da Herdade dos Bons Ares, que conhecia o segredo da fechadura de cima, pelo contabilista que sabia o da fechadura de baixo e pelo capataz, Agostinho Gancho, que sabia destravar as trancas.
No Notário havia um envelope lacrado com cada um dos três segredos.
Quando morria o titular, ou deixava de trabalhar na casa, o respectivo segredo era confiado ao novo confrade, sob juramento, pelo notário, na presença do senhor Lavrador.
Assim, a casa forte só poderia ser aberta pelo senhor Lavrador, por cada um dos grupos de três elementos, ou pelo notário que guardava as cartas lacradas, que só poderiam ser abertas e usadas, em caso de qualquer emergência.
No Natal de cada ano, os titulares das cartas com o segredo da casa forte e o notário recebiam, num envelope, uma recompensa do Senhor Lavrador.
Não conheciam as broas uns dos outros, mas todos se dirigiam ao Banco, nos primeiros dias do ano, para depositarem o prémio que tinham recebido do patrão.
Alguns dias depois do recebimento dos valores da cortiça, o Senhor Lavrador chamou o André Cotovia e o Agostinho Gancho, feitor e capataz da Herdade dos Bons Ares e homens da sua inteira confiança, para que apanhassem o comboio, em Beja, e fossem a Lisboa, ao Banco Ultramarino, levar o dinheiro da cortiça.
Deviam ir com os olhos bem abertos, sempre um em frente do outro, guardando a retaguarda do parceiro.
Depois de deixarem o comboio, no Barreiro, era só atravessar no barco e, no outro lado, em Lisboa, atravessavam aquele grande largo que tem um homem em riba dum cavalo, metiam na rua que tem um arco e logo viam uma grande casa com as letras Banco Ultramarino.
Há-de dirigir-se a vocês um porteiro fardado que vos dirá bons dias!
O André responderá: bons dias!... Vamos falar ao Senhor Mendes; trazemos esta encomenda para ele! E nesta altura mostras-lhe a bolsa.
No cimo dumas escadas estará um senhor de óculos que vos cumprimentará: olá senhor André!...Como está o meu amigo, o Senhor Lavrador Lopes Guerreiro? Mandou uma lembrança para mim? Vamos ali ao meu gabinete.
E lá dentro, dás o cheque e o dinheiro da bolsa ao senhor e esperas até que ele te dê um papel que guardas na algibeira.
Agradeces e despedes-te e já podem ir a uma taberna qualquer, comer bem e beber melhor.
Depois, apanham o comboio da tarde e, em Beja, há-de estar alguém para vos trazer para cima.
No banco o director, senhor Mendes, tinha avisado a portaria para mandar subir os dois homens com uma bolsa de trapos na mão. Quando tudo estivesse concluído o banqueiro telefonaria ao Lavrador e os homens seguiriam o seu destino.
Por volta do meio-dia toca o telefone no Monte e o senhor Lavrador ouve do outro lado o feitor André a dizer que tinha havido um contratempo e, como medida de segurança, não foram ao Banco.
Tinham a bolsa do dinheiro bem guardada e voltavam no comboio das duas, para que já tinham bilhete.
Agradecia que mandasse buscá-los, a Beja, lá pelas cinco horas. Depois esclareceria tudo; agora era melhor não adiantar mais nada, pois não sabia se estavam a segui-los.
O Lavrador comunicou ao banqueiro, seu amigo, que tinha havido um percalço com os emissários, mas os valores estavam em segurança e quando conhecesse todo o enredo da história lhe daria notícias.
Quando os dois homens chegaram à herdade foram entregar ao patrão a bolsa que nem tinham chegado a abrir e que o feitor ainda levava espalmada entre a camisola interior e a camisa, donde não chegou a sair.
O capataz deu um passo em frente e, calmamente, disse:
É a primeira vez que volto sem as ordens do Senhor Lavrador cumpridas; acho que aqui o Agostinho se pode gabar do mesmo.
Mas, mal pusemos pés em terra, à saída do barco, ouvimos aquela chusma de gajos – com sua licença – a gritar, correndo de um lado para o outro, como que a procurar alguém e entregando uns papéis que tiravam de debaixo do braço, dum bornal que traziam a tiracolo, resolvemos não nos meter em embrulhadas e, discretamente fomos comprar bilhete e viemos no barco de volta.
Sossegámos um pouco, pois parece que nos terão perdido de vista e, no barco não demos por ninguém a seguir-nos e, também na estação parece que não estava ninguém à nossa espera.
Metemo-nos na carruagem, sentámo-nos na frente um do outro e trouxemos para casa a sua encomendinha.
Que nos perdoe o patrão, mas sempre se disse que o seguro morreu de velho.
Aí, algo intrigado ainda, o Lavrador perguntou:
E que dizia essa gente lá na estação dos barcos e nos passeios à volta?
Adiantou-se o Agostinho, respondendo: “Cerquem os da cortiça!... Cerquem os da cortiça!..”
E logo, do lado, outros repetiam: “Cerquem os da cortiça!... Cerquem os da cortiça!”
sexta-feira, 30 de outubro de 2009
O machacaz
Desde que me conheço que ajudo mulheres a parir, gritava a ti’Maria Rita lá do quarto dos fundos, mas esta está a dar-me água pela barba.
Tragam-me mais uma panela de água quente e umas toalhas para ver se a criança dá a volta completa e se se põe a jeito de vir cá para fora.
Enquanto berrava para as ajudantes que, atarantadas e tolhidas de medo, viam a velhota dar palmadas nas “nalgas” da Dionísia que se debatia com o nascimento do seu primeiro filho, a comadre ia aconchegando o ventre da parturiente, atenta a todos os movimentos da criança que parecia estar a orientar-se para a chegada a este mundo.
Abram o raio dessa janela que nos falta o ar aqui dentro.
E tu mulher, enche-te de coragem e morde, com quanta força puderes, essa toalha que tens na boca.
Vai custar mais um bocado, mas nunca nenhum me ficou lá dentro e vais ver a prenda que já começou a mostrar-me a cabeça.
São mais uns dez minutos; vais ver que mais ou menos ao meio-dia vai berrar aí que nem um desalmado; já que pela configuração e tamanho do que já posso ver me arrisco a dizer que é macho.
E assim foi: ainda o relógio não acabara de bater as doze badaladas e já um rapagão berrava com todas as forças, nas mãos da velhota que começava a limpá-lo e se preparava para tratar-lhe do cordão e colocá-lo, na cama, ao lado da mãe.
Parabéns rapariga, tens aqui um belo rapaz.
Mas olha que o machacaz deu-nos bem que fazer: a ti e a mim, que desde que me recordo foi dos mais difíceis. Estava lá bem, o finório. Não lhe faltava nada e sair de lá não parecia agradar-lhe, mas já acabou.
Chico cresceu, avantajado de corpo, meio desajeitado e, aos sete anos, quando entrou na escola, as carteiras da frente, destinadas aos da primeira classe, eram-lhe pequenas.
A Professora mandou sentá-lo na terceira fila e, mesmo assim, ainda era escasso o espaço para as pernas do rapaz.
Com os ombros largos, os braços passando-lhe um pouco abaixo dos joelhos, umas mãos grandes e a cabeça, meio disforme, mas grande e bem coberta de cabelos pretos, o Chico conseguiu fazer o exame da terceira classe, a custo.
Depois começou a guardar as cabras e ovelhas e a ajudar os pais nas lides do campo.
As tentativas de aprender as artes de carpinteiro e pedreiro, não resultaram.
Homem de poucas falas e olhar esquivo, tinha aversão às botas e raramente apertava todos os botões de calças e camisas.
Apurado de instintos, cuidava do que era seu e com a fisga nas mãos, armando costelas e boízes, no tempo delas, ou mesmo à unha, nunca se lhe acabava, em casa, caça, peixes e outros petiscos.
Saía sozinho, a todas as horas do dia e da noite, nunca mostrara medo, fosse do que fosse, e era encontrado onde menos se esperava.
Tinha um tratamento muito familiar com toda a bicharada e se pressentia alguém, no seu caminho, desviava-se para evitar encontros e conversas de que era pouco amigo.
Alguém reparou na expressão da comadre Maria Rita, ao dizer para a Dionísia que o “machacaz” lhes deu bem que fazer e, como nada cai em saco roto, foi-se generalizando a alcunha e quando o rapaz foi às sortes era, para todos, o “Machacaz”.
Ficou livre do serviço.
Um corpanzil daqueles, podia e devia alombar a servir a pátria. Mas, assim não acharam os entendidos e o Chico nada se incomodou, como se não incomodaria se o mandassem ir para algum lado.
Até aí catrapiscava a garota do ti’Cambado, do mesmo ano que ele, magricela, de poucas cores e olhitos azulados, herdados da mãe, que não resistiu ao parto e deixou órfã e viúvo lá na casa da ladeira, onde sempre viveram, só os dois.
A dispensa da tropa veio apressar as coisas e notaram, os mais observadores, que o Machacaz, à medida que se aproximava o casamento, ia mais pela taberna, chegava-se mais às conversas e tomava muita atenção a tudo o que dissesse respeito a relações entre homens e mulheres.
Começou a frequentar mais a missa dos domingos, tratou de tudo e ajudou na construção da casa nova, ao lado dos cómodos da ladeira.
A boda foi discreta e muito farta e, apesar do espírito reservado do Machacaz, todos ficaram admirados com a maneira como tratou todos os convidados e a forma como parecia outro homem.
Vieram três filhos, nos três primeiros anos e, depois, voltou a ser o mesmo Machacaz de sempre; sorumbático, esquivo e isolado.
Algum tempo depois começou a frequentar assiduamente a taberna, a beber até cair e a falar consigo próprio.
Os mais chegados metiam-se com ele. Porém, além de reagir mal, começou a mostrar sinais de agressividade e falta de tolerância, nas brincadeiras.
Um dia, ao ouvir as prosas do Longueiras, saiu abruptamente da taberna, dirigindo-se a casa, com passada aberta e rápida e, entrando no quarto, sorrateiramente, viu, nos fundos da cama, por baixo da coberta, os vultos de quatro pés.
Saiu, caminhou rapidamente até à taberna, onde bebeu, de enfiada, dois ou três copos de vinho.
De repente e inopinadamente, enfrentou os presentes e exclamou:
Estão lá quatro pés, sim senhor, mas dois são do Machacaz!...
Tragam-me mais uma panela de água quente e umas toalhas para ver se a criança dá a volta completa e se se põe a jeito de vir cá para fora.
Enquanto berrava para as ajudantes que, atarantadas e tolhidas de medo, viam a velhota dar palmadas nas “nalgas” da Dionísia que se debatia com o nascimento do seu primeiro filho, a comadre ia aconchegando o ventre da parturiente, atenta a todos os movimentos da criança que parecia estar a orientar-se para a chegada a este mundo.
Abram o raio dessa janela que nos falta o ar aqui dentro.
E tu mulher, enche-te de coragem e morde, com quanta força puderes, essa toalha que tens na boca.
Vai custar mais um bocado, mas nunca nenhum me ficou lá dentro e vais ver a prenda que já começou a mostrar-me a cabeça.
São mais uns dez minutos; vais ver que mais ou menos ao meio-dia vai berrar aí que nem um desalmado; já que pela configuração e tamanho do que já posso ver me arrisco a dizer que é macho.
E assim foi: ainda o relógio não acabara de bater as doze badaladas e já um rapagão berrava com todas as forças, nas mãos da velhota que começava a limpá-lo e se preparava para tratar-lhe do cordão e colocá-lo, na cama, ao lado da mãe.
Parabéns rapariga, tens aqui um belo rapaz.
Mas olha que o machacaz deu-nos bem que fazer: a ti e a mim, que desde que me recordo foi dos mais difíceis. Estava lá bem, o finório. Não lhe faltava nada e sair de lá não parecia agradar-lhe, mas já acabou.
Chico cresceu, avantajado de corpo, meio desajeitado e, aos sete anos, quando entrou na escola, as carteiras da frente, destinadas aos da primeira classe, eram-lhe pequenas.
A Professora mandou sentá-lo na terceira fila e, mesmo assim, ainda era escasso o espaço para as pernas do rapaz.
Com os ombros largos, os braços passando-lhe um pouco abaixo dos joelhos, umas mãos grandes e a cabeça, meio disforme, mas grande e bem coberta de cabelos pretos, o Chico conseguiu fazer o exame da terceira classe, a custo.
Depois começou a guardar as cabras e ovelhas e a ajudar os pais nas lides do campo.
As tentativas de aprender as artes de carpinteiro e pedreiro, não resultaram.
Homem de poucas falas e olhar esquivo, tinha aversão às botas e raramente apertava todos os botões de calças e camisas.
Apurado de instintos, cuidava do que era seu e com a fisga nas mãos, armando costelas e boízes, no tempo delas, ou mesmo à unha, nunca se lhe acabava, em casa, caça, peixes e outros petiscos.
Saía sozinho, a todas as horas do dia e da noite, nunca mostrara medo, fosse do que fosse, e era encontrado onde menos se esperava.
Tinha um tratamento muito familiar com toda a bicharada e se pressentia alguém, no seu caminho, desviava-se para evitar encontros e conversas de que era pouco amigo.
Alguém reparou na expressão da comadre Maria Rita, ao dizer para a Dionísia que o “machacaz” lhes deu bem que fazer e, como nada cai em saco roto, foi-se generalizando a alcunha e quando o rapaz foi às sortes era, para todos, o “Machacaz”.
Ficou livre do serviço.
Um corpanzil daqueles, podia e devia alombar a servir a pátria. Mas, assim não acharam os entendidos e o Chico nada se incomodou, como se não incomodaria se o mandassem ir para algum lado.
Até aí catrapiscava a garota do ti’Cambado, do mesmo ano que ele, magricela, de poucas cores e olhitos azulados, herdados da mãe, que não resistiu ao parto e deixou órfã e viúvo lá na casa da ladeira, onde sempre viveram, só os dois.
A dispensa da tropa veio apressar as coisas e notaram, os mais observadores, que o Machacaz, à medida que se aproximava o casamento, ia mais pela taberna, chegava-se mais às conversas e tomava muita atenção a tudo o que dissesse respeito a relações entre homens e mulheres.
Começou a frequentar mais a missa dos domingos, tratou de tudo e ajudou na construção da casa nova, ao lado dos cómodos da ladeira.
A boda foi discreta e muito farta e, apesar do espírito reservado do Machacaz, todos ficaram admirados com a maneira como tratou todos os convidados e a forma como parecia outro homem.
Vieram três filhos, nos três primeiros anos e, depois, voltou a ser o mesmo Machacaz de sempre; sorumbático, esquivo e isolado.
Algum tempo depois começou a frequentar assiduamente a taberna, a beber até cair e a falar consigo próprio.
Os mais chegados metiam-se com ele. Porém, além de reagir mal, começou a mostrar sinais de agressividade e falta de tolerância, nas brincadeiras.
Um dia, ao ouvir as prosas do Longueiras, saiu abruptamente da taberna, dirigindo-se a casa, com passada aberta e rápida e, entrando no quarto, sorrateiramente, viu, nos fundos da cama, por baixo da coberta, os vultos de quatro pés.
Saiu, caminhou rapidamente até à taberna, onde bebeu, de enfiada, dois ou três copos de vinho.
De repente e inopinadamente, enfrentou os presentes e exclamou:
Estão lá quatro pés, sim senhor, mas dois são do Machacaz!...
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
O “Jerolminho”
A calma e quietude do Monte dos Ciprestes foram agitadas por um burburinho e estranho corrupio das três, ou quatro, mulheres que, nessa meia tarde, por ali estavam.
Quando viram o ganhão, que cuidava dos porcos, sair do celeiro, com qualquer coisa embrulhada numa saca, chamando pelo Ti’Chico, em altos gritos, e entrando na casa do capataz Manel Canhoto, gerou-se uma autêntica roda-viva.
As mulheres não pararam mais e, cada uma por seu lado, haviam de dar fé de tudo o que se passasse.
E foi assim que todos presenciaram o estranho achado do porqueiro.
A chorar, a bons pulmões, estava ali, nuzinho como nascera pouco tempo antes, um menino, abrindo a boquita e movendo a cabeça, procurando teta para mamar.
Olharam uns para os outros e foi a Zefa que saíu em passo apertado, na direcção da casa do maioral, chamando pela Amélia que tinha uma criança de leite e podia, por isso, valer ao anjinho que dava sinais de fome e frio.
Veio também a Ti’Rita Ramalheta, comadre de serviço nos partos lá do Monte.
Tratou da criança, lavando-a, verificando o aperto do baraço que apertava o cordão do umbigo e vestindo-lhe o casaquito que a Amélia acabava de trazer. Embrulhou o anjinho no xaile, que trazia nos ombros e deu-o à Amélia para que lhe desse o peito.
Veio, finalmente, o sossego; logo interrompido pelas perguntas do Ti’Manel Canhoto que, olhando em redor, encarou o ganhão dos porcos e quis saber as circunstâncias de tão estranho achado.
Muito simples, Ti’Manel; ouvi chorar lá para os fundos do celeiro e quando cheguei ao pé do monte das sacas de fava, vi esta encomendinha e trouxe-a.
Ainda olhei à volta, espreitei para todos os lados, escutei, perguntei se estava alguém e, nada.
E, algum dos presentes conhece o dono, ou dona, destes trapos que embrulham a criança? Perguntou, ainda, o Ti’Manel.
Porém, ninguém se acusou e, já na presença da mulher, Ti’Florinda, foram todos mandados para o que estavam a fazer, ficando a criança aos cuidados do capataz e da Amélia, que lhe daria mama.
Pelo fim da tarde, veio o senhor feitor, que se deslocara à vila, tratar de negócios.
Ao ser posto ao corrente do sucedido, chamou a sua casa o capataz e o ganhão e perguntou se sabiam quem poderia ser o pai, ou mãe da criança, ou se faziam alguma ideia por onde haviam de tentar descobrir.
Os dois disseram não saber de nada.
O feitor mandou-os em paz e recomendou ao ganhão que dissesse à sua Florinda que tratasse bem do achado. Quanto à criança, depois de consultar as autoridades, havia de se lhe dar um destino. Queria tudo bem legal e havia, primeiro, que descobrir quem abandonava assim um inocentezinho.
O Feitor deu voltas à cabeça e não chegou a qualquer conclusão.
Fez perguntas a todos e, inclusivamente, ofereceu e mandou oferecer, uma choruda recompensa a quem fosse capaz de indicar pai, ou mãe, que tivessem abandonado o infeliz.
Deu garantias de perdão a quem se acusasse e confessasse o seu acto, mas, nada.
Por sua conta, o feitor seguiu várias pistas: Os ciganos que por ali acamparam, uns pares de semanas, desapareceram naquela manhã. Porém nenhuma cigana foi vista de barriga e as feições do menino não apontavam nesse sentido.
A notícia da recompensa prometida pelo feitor, foi espalhada pelos ciganos e nunca ninguém foi reclamar nada.
Uma mulher, desconhecida nas redondezas, com uma barriga suspeita, mas não aparentando gravidez, foi vista perto do Monte e desapareceu, dois dias antes.
Veio notícia de outro Monte próximo que essa mulher, procurou trabalho e foi aceite lá.
Uma pastora, de meia-idade, que andou metida com o Chico das cabras, parecia mais gorda nos últimos tempos que por ali andou. Despediu-se e desapareceu.
Havia uns quinze dias que ninguém dera fé dela e o próprio Chico, apertado pelo feitor, não se desmanchou e jurou que ela tinha ido com um ambulante da feira.
E, que soubesse, não estava prenha, nem nunca estivera, depois que a conhecera.
Das mulheres do Monte, nenhuma apresentava barriga que justificasse parir, ou estar de esperanças, pelo que o Feitor, senhor Jerónimo, olhando a mulher, Emília do Ó, bem nos olhos, disse-lhe, ao serão:
Parece-me que não se vai desfazer o mistério; ninguém sabe nada, ou se sabe não quere dizer, porque se alguém soubesse e quisesse, já teria vindo reclamar os quinze contos de réis que prometi a quem desfaça a meada.
Mas o infeliz, não há-de crescer sem pai e mãe e temos aqui ocasião de aceitar do Destino o que a Natureza nunca nos quis dar. Se estiveres de acordo…
Oh! Homem, mas eu não penso noutra coisa desde que foi encontrada a criança. Até já fiz promessas se não se descobrir quem abandonou o menino. É claro que será “Jerolme”, como o pai e terá a mãe Emília do Ó.
Fala às autoridades e mete o dr. Angelino a mexer já os papéis para que tudo seja legal.
Terá de ser baptizado quanto antes, não vá o diabo tecê-las.
A conselho do dr. Angelino, foi feito o registo do menino a quem foi dado o nome de Jerónimo do Ó Ventinhas Pé-Curto.
Quanto ao local e data do nascimento, bem como filiação, o feitor deixou tudo aos cuidados do Advogado e Conservador, para que o menino passasse a ser, oficialmente, seu filho e da sua mulher Emília.
E assim foi feito, em meados de Maio de trinta e dois, no Registo de Portel.
O “Jerolme” do Ó, cresceu, fez-se uma criança forte e saudável, distinguiu-se na escola como um dos melhores alunos do prof. Américo, aprendeu a andar a cavalo ainda menino e, querido de todos no Monde dos Ciprestes, já rapazote e depois estudante de Veterinária, em Lisboa, nunca deixou de passar férias no Monte.
Conhecia todos os trabalhadores e nunca deixava de salvar, quando era saudado.
Acabou por casar com a herdeira do Monte dos Ciprestes e sempre ali teve casa, mesmo depois de ter de mandar os cinco filhos, com a mãe, para Lisboa, onde podiam continuar os estudos.
Durante toda a vida, o Chico das cabras nunca deixou faltar em casa do senhor feitor, os bons cabritos, os melhores queijos e o melhor leite das redondezas, como ele não se cansava de dizer.
Várias vezes acompanhou o sr. dr. Veterinário nas vacinações do gado e seguiu, sempre, com orgulho e comoção as cavalgadas e torneios em que participava o menino Jerolminho, depois sr. doutor.
Até que um dia…chegou a notícia de que nos fundos do figueiral, nos confins da herdade de baixo, o Chico das cabras se pendurara numa corda.
O senhor feitor, sentiu um baque no coração e, já de avançada idade, pediu que o levassem ao local, pois queria ver e analisar o ocorrido, antes de avisar o dr. Jerónimo, já médico veterinário, pai dos seus netos e dono das herdades do Monte dos Ciprestes.
Mandou parar a charrete e apeou-se, junto do enforcado.
Abriu-lhe uma das mãos e retirou um papel pardo, enrolado, que meteu no bolso do colete.
Reparou que a outra mão do morto apontava para o chão, onde pôde observar os contornos de uma campa.
Baixou a cabeça, respeitosamente, e mandou que depois de seguidos os preceitos legais, uma vez que o Chico não podia ser enterrado em terra benzida, do cemitério, por ter posto fim à vida, devia ser enterrado ali, debaixo daquela figueira.
Depois, já em casa, leu o papel que alguém escreveu ao Chico das cabras:
Agradeço ao senhor “Jerolme” e sua defunta mulher, tudo o que fizeram pelo nosso menino; meu, porque o fiz e vosso porque o criaram, estimaram como filho e fizeram homem.
Peço perdão pelas juras falsas que lhe fiz quando me perguntou se sabia alguma coisa sobre a pastora dos patos – a mãe do nosso menino - que morreu ao parir e está enterrada aqui debaixo desta figueira.
O último favor é que me mande enterrar aqui junto da pastora e nunca revele ao nosso menino quem foram os pais que o geraram.
Ele, um dia há-de encontrar-nos para nos perdoar.
Quando viram o ganhão, que cuidava dos porcos, sair do celeiro, com qualquer coisa embrulhada numa saca, chamando pelo Ti’Chico, em altos gritos, e entrando na casa do capataz Manel Canhoto, gerou-se uma autêntica roda-viva.
As mulheres não pararam mais e, cada uma por seu lado, haviam de dar fé de tudo o que se passasse.
E foi assim que todos presenciaram o estranho achado do porqueiro.
A chorar, a bons pulmões, estava ali, nuzinho como nascera pouco tempo antes, um menino, abrindo a boquita e movendo a cabeça, procurando teta para mamar.
Olharam uns para os outros e foi a Zefa que saíu em passo apertado, na direcção da casa do maioral, chamando pela Amélia que tinha uma criança de leite e podia, por isso, valer ao anjinho que dava sinais de fome e frio.
Veio também a Ti’Rita Ramalheta, comadre de serviço nos partos lá do Monte.
Tratou da criança, lavando-a, verificando o aperto do baraço que apertava o cordão do umbigo e vestindo-lhe o casaquito que a Amélia acabava de trazer. Embrulhou o anjinho no xaile, que trazia nos ombros e deu-o à Amélia para que lhe desse o peito.
Veio, finalmente, o sossego; logo interrompido pelas perguntas do Ti’Manel Canhoto que, olhando em redor, encarou o ganhão dos porcos e quis saber as circunstâncias de tão estranho achado.
Muito simples, Ti’Manel; ouvi chorar lá para os fundos do celeiro e quando cheguei ao pé do monte das sacas de fava, vi esta encomendinha e trouxe-a.
Ainda olhei à volta, espreitei para todos os lados, escutei, perguntei se estava alguém e, nada.
E, algum dos presentes conhece o dono, ou dona, destes trapos que embrulham a criança? Perguntou, ainda, o Ti’Manel.
Porém, ninguém se acusou e, já na presença da mulher, Ti’Florinda, foram todos mandados para o que estavam a fazer, ficando a criança aos cuidados do capataz e da Amélia, que lhe daria mama.
Pelo fim da tarde, veio o senhor feitor, que se deslocara à vila, tratar de negócios.
Ao ser posto ao corrente do sucedido, chamou a sua casa o capataz e o ganhão e perguntou se sabiam quem poderia ser o pai, ou mãe da criança, ou se faziam alguma ideia por onde haviam de tentar descobrir.
Os dois disseram não saber de nada.
O feitor mandou-os em paz e recomendou ao ganhão que dissesse à sua Florinda que tratasse bem do achado. Quanto à criança, depois de consultar as autoridades, havia de se lhe dar um destino. Queria tudo bem legal e havia, primeiro, que descobrir quem abandonava assim um inocentezinho.
O Feitor deu voltas à cabeça e não chegou a qualquer conclusão.
Fez perguntas a todos e, inclusivamente, ofereceu e mandou oferecer, uma choruda recompensa a quem fosse capaz de indicar pai, ou mãe, que tivessem abandonado o infeliz.
Deu garantias de perdão a quem se acusasse e confessasse o seu acto, mas, nada.
Por sua conta, o feitor seguiu várias pistas: Os ciganos que por ali acamparam, uns pares de semanas, desapareceram naquela manhã. Porém nenhuma cigana foi vista de barriga e as feições do menino não apontavam nesse sentido.
A notícia da recompensa prometida pelo feitor, foi espalhada pelos ciganos e nunca ninguém foi reclamar nada.
Uma mulher, desconhecida nas redondezas, com uma barriga suspeita, mas não aparentando gravidez, foi vista perto do Monte e desapareceu, dois dias antes.
Veio notícia de outro Monte próximo que essa mulher, procurou trabalho e foi aceite lá.
Uma pastora, de meia-idade, que andou metida com o Chico das cabras, parecia mais gorda nos últimos tempos que por ali andou. Despediu-se e desapareceu.
Havia uns quinze dias que ninguém dera fé dela e o próprio Chico, apertado pelo feitor, não se desmanchou e jurou que ela tinha ido com um ambulante da feira.
E, que soubesse, não estava prenha, nem nunca estivera, depois que a conhecera.
Das mulheres do Monte, nenhuma apresentava barriga que justificasse parir, ou estar de esperanças, pelo que o Feitor, senhor Jerónimo, olhando a mulher, Emília do Ó, bem nos olhos, disse-lhe, ao serão:
Parece-me que não se vai desfazer o mistério; ninguém sabe nada, ou se sabe não quere dizer, porque se alguém soubesse e quisesse, já teria vindo reclamar os quinze contos de réis que prometi a quem desfaça a meada.
Mas o infeliz, não há-de crescer sem pai e mãe e temos aqui ocasião de aceitar do Destino o que a Natureza nunca nos quis dar. Se estiveres de acordo…
Oh! Homem, mas eu não penso noutra coisa desde que foi encontrada a criança. Até já fiz promessas se não se descobrir quem abandonou o menino. É claro que será “Jerolme”, como o pai e terá a mãe Emília do Ó.
Fala às autoridades e mete o dr. Angelino a mexer já os papéis para que tudo seja legal.
Terá de ser baptizado quanto antes, não vá o diabo tecê-las.
A conselho do dr. Angelino, foi feito o registo do menino a quem foi dado o nome de Jerónimo do Ó Ventinhas Pé-Curto.
Quanto ao local e data do nascimento, bem como filiação, o feitor deixou tudo aos cuidados do Advogado e Conservador, para que o menino passasse a ser, oficialmente, seu filho e da sua mulher Emília.
E assim foi feito, em meados de Maio de trinta e dois, no Registo de Portel.
O “Jerolme” do Ó, cresceu, fez-se uma criança forte e saudável, distinguiu-se na escola como um dos melhores alunos do prof. Américo, aprendeu a andar a cavalo ainda menino e, querido de todos no Monde dos Ciprestes, já rapazote e depois estudante de Veterinária, em Lisboa, nunca deixou de passar férias no Monte.
Conhecia todos os trabalhadores e nunca deixava de salvar, quando era saudado.
Acabou por casar com a herdeira do Monte dos Ciprestes e sempre ali teve casa, mesmo depois de ter de mandar os cinco filhos, com a mãe, para Lisboa, onde podiam continuar os estudos.
Durante toda a vida, o Chico das cabras nunca deixou faltar em casa do senhor feitor, os bons cabritos, os melhores queijos e o melhor leite das redondezas, como ele não se cansava de dizer.
Várias vezes acompanhou o sr. dr. Veterinário nas vacinações do gado e seguiu, sempre, com orgulho e comoção as cavalgadas e torneios em que participava o menino Jerolminho, depois sr. doutor.
Até que um dia…chegou a notícia de que nos fundos do figueiral, nos confins da herdade de baixo, o Chico das cabras se pendurara numa corda.
O senhor feitor, sentiu um baque no coração e, já de avançada idade, pediu que o levassem ao local, pois queria ver e analisar o ocorrido, antes de avisar o dr. Jerónimo, já médico veterinário, pai dos seus netos e dono das herdades do Monte dos Ciprestes.
Mandou parar a charrete e apeou-se, junto do enforcado.
Abriu-lhe uma das mãos e retirou um papel pardo, enrolado, que meteu no bolso do colete.
Reparou que a outra mão do morto apontava para o chão, onde pôde observar os contornos de uma campa.
Baixou a cabeça, respeitosamente, e mandou que depois de seguidos os preceitos legais, uma vez que o Chico não podia ser enterrado em terra benzida, do cemitério, por ter posto fim à vida, devia ser enterrado ali, debaixo daquela figueira.
Depois, já em casa, leu o papel que alguém escreveu ao Chico das cabras:
Agradeço ao senhor “Jerolme” e sua defunta mulher, tudo o que fizeram pelo nosso menino; meu, porque o fiz e vosso porque o criaram, estimaram como filho e fizeram homem.
Peço perdão pelas juras falsas que lhe fiz quando me perguntou se sabia alguma coisa sobre a pastora dos patos – a mãe do nosso menino - que morreu ao parir e está enterrada aqui debaixo desta figueira.
O último favor é que me mande enterrar aqui junto da pastora e nunca revele ao nosso menino quem foram os pais que o geraram.
Ele, um dia há-de encontrar-nos para nos perdoar.
terça-feira, 29 de setembro de 2009
Os pinheiros do Vale da Cal
Mal acabava de transpor a porta da igreja, no fim da missa do primeiro domingo da Quaresma, quando ouviu a voz do Abílio do Vale Perto a chamar padrinho.
Voltou-se, de imediato, o Ti’ João Pisco e, ao pedido da bênção, pelo afilhado, respondeu, como de costume: Deus te abençoe.
E dali seguiram, lado a lado, até à taberna de baixo, onde se acomodaram, na mesa do desvão da escada, a fim de terem uma prosa, como adiantou o Abílio.
O padrinho sabe que andam a cortar na minha do Vale da Cal; é o primeiro corte depois da morte do meu falecido pai e penso que os pinheiritos não foram mal vendidos.
São uns senhores do Vale de Mação que, além de sérios e cumpridores, têm cuidado com os estragos que fazem nas courela e, além do mais, nenhum outro se chegou ao que eles me deram.
Gostei dos homens e fechámos o negócio.
Ora o que lhe quero falar diz respeito aos três queimados que temos lá, na nossa estrema. O padrinho dirá, de sua justiça: ou se cortam e recebe a sua parte, ou se deixam ficar e continuam queimados.
Com certeza que fizeste as coisas pelo melhor, respondeu o Ti’João. Já agora, pode saber-se quanto recebeste por cada pinheiro?
Claro! Considero o meu padrinho como parte interessada no negócio: duas notas por cada pinheiro sangrado, salvo os três queimados, que ainda não foram entregues.
Queriam dar-me os cento e oitenta, mas a boa localização, praticamente dentro da estrada, e a certeza de que não os deixaria ir por menos um centavo, levou os homens a chegar-se à conta certa.
O Ti’João coçou a cabeça, por baixo da boina, revolveu o pauzito que apertava entre os dentes, fixou-se no afilhado e perguntou: então e a rama?
É claro que a pergunta não esperava resposta. Mas teve-a:
A rama de um pinheiro será para mim, a de outro, que cairá para dentro da sua, lá ficará. A do terceiro, que será derrubado sobre a estrema, será para os dois.
Gosto de ouvir-te, afilhado. És mesmo filho do teu pai, que Deus haja: sempre cuidadoso e cauteloso, prevendo tudo, preparando todas as coisas com cuidado!...Ah, como me lembro do compadre, embora nem sempre nos déssemos como Deus e os anjos; mas, verdade seja dita, mal, nunca nos demos.
Mas, além dos queimados, o padrinho pode querer vender todos os sangrados da sua courela. Isto é modo de falar, que nem ninguém me encomendou o sermão, nem eu o preguei.
E os homens lá do Mação estarão dispostos a dar-me as duas notas por cada um?
A isso não posso responder-lhe, padrinho. Eles, amanhã, estarão a cortar na minha; é questão do padrinho ir lá falar com eles. Pelo menos vai a saber com o que conta.
E tu, não queres estar presente? É que não me parece nada má essa tua ideia, além de que, até hoje, os meus pinheiros não ouviram mais de cento e oitenta e cinco mil réis, cada um.
Parabéns, afilhado, o meu compadre, e teu pai que Deus haja, há-de estar vaidoso de ti, pois estás a mostrar-te um verdadeiro filho de quem és.
Bondade sua, padrinho. Faz-se o que se pode; e se um homem não zelar pelo que é seu, levam-lhe coiro e cabelo e ainda ficam a rir-se nas suas costas.
Amanhã, ao sol-nado, encontramo-nos lá no Vale da Cal. Está bem, padrinho?
É melhor passares lá por minha casa; fica-te em caminho e, depois de matarmos o bicho, dividimos o caminho a meias, como costuma dizer-se; de prosa, até custa menos a chegar lá. Isto se não te importares e a companhia te agradar.
Ora essa, padrinho. Lá estarei e até amanhã. Recomendações à madrinha.
Igualmente para a tua mulher e vossos filhos, que estão a acabar a escola, não é?...
O Abílio deu voltas, na cama, para descobrir o que movia o padrinho na sua direcção; sempre fora arredio e sobranceiro e agora descia do pedestal?... Mas por que cargas de água?... E aquela dos miúdos a acabar a escola?...
O Ti’João andava, havia tempos, para se dirigir ao afilhado. Sabia que ele já fora ao Mação saber quanto custava o ensino no colégio que acabava de abrir, que já estivera na Queixoperra, em casa de um parente que trazia lá um filho havia um ano, e que até já apalavrara uma casa, na vila, para hospedar os filhos.
Aquela viagem caía como sopa no mel, para saber coisas e substituir-se ao genro, que não preparara nada: estava decidido que os seus netos também haviam de vir a ser muito mais do que ele e o dinheiro dos pinheiros do Vale da Cal iria ser reservado para esse fim.
Na viagem de ida e regresso o Ti’João confessou todo o seu interesse em saber coisas sobre o colégio e as possibilidades de mandar estudar os seus netos.
Agradeceu muito ao afilhado e pediu-lhe que fosse reservado sobre aquela prosa, pois queria saber até onde chegaria o seu genro. E, na altura própria, os netos do Ti’João foram para o colégio e, ainda em vida do avô, foram os dois primeiros a alcançarem uma formatura.
Desejamos que os muitos que se revêem nesta breve história, nunca tenham esquecido, ou renegado, os “Abílios” das nossas terras.
Voltou-se, de imediato, o Ti’ João Pisco e, ao pedido da bênção, pelo afilhado, respondeu, como de costume: Deus te abençoe.
E dali seguiram, lado a lado, até à taberna de baixo, onde se acomodaram, na mesa do desvão da escada, a fim de terem uma prosa, como adiantou o Abílio.
O padrinho sabe que andam a cortar na minha do Vale da Cal; é o primeiro corte depois da morte do meu falecido pai e penso que os pinheiritos não foram mal vendidos.
São uns senhores do Vale de Mação que, além de sérios e cumpridores, têm cuidado com os estragos que fazem nas courela e, além do mais, nenhum outro se chegou ao que eles me deram.
Gostei dos homens e fechámos o negócio.
Ora o que lhe quero falar diz respeito aos três queimados que temos lá, na nossa estrema. O padrinho dirá, de sua justiça: ou se cortam e recebe a sua parte, ou se deixam ficar e continuam queimados.
Com certeza que fizeste as coisas pelo melhor, respondeu o Ti’João. Já agora, pode saber-se quanto recebeste por cada pinheiro?
Claro! Considero o meu padrinho como parte interessada no negócio: duas notas por cada pinheiro sangrado, salvo os três queimados, que ainda não foram entregues.
Queriam dar-me os cento e oitenta, mas a boa localização, praticamente dentro da estrada, e a certeza de que não os deixaria ir por menos um centavo, levou os homens a chegar-se à conta certa.
O Ti’João coçou a cabeça, por baixo da boina, revolveu o pauzito que apertava entre os dentes, fixou-se no afilhado e perguntou: então e a rama?
É claro que a pergunta não esperava resposta. Mas teve-a:
A rama de um pinheiro será para mim, a de outro, que cairá para dentro da sua, lá ficará. A do terceiro, que será derrubado sobre a estrema, será para os dois.
Gosto de ouvir-te, afilhado. És mesmo filho do teu pai, que Deus haja: sempre cuidadoso e cauteloso, prevendo tudo, preparando todas as coisas com cuidado!...Ah, como me lembro do compadre, embora nem sempre nos déssemos como Deus e os anjos; mas, verdade seja dita, mal, nunca nos demos.
Mas, além dos queimados, o padrinho pode querer vender todos os sangrados da sua courela. Isto é modo de falar, que nem ninguém me encomendou o sermão, nem eu o preguei.
E os homens lá do Mação estarão dispostos a dar-me as duas notas por cada um?
A isso não posso responder-lhe, padrinho. Eles, amanhã, estarão a cortar na minha; é questão do padrinho ir lá falar com eles. Pelo menos vai a saber com o que conta.
E tu, não queres estar presente? É que não me parece nada má essa tua ideia, além de que, até hoje, os meus pinheiros não ouviram mais de cento e oitenta e cinco mil réis, cada um.
Parabéns, afilhado, o meu compadre, e teu pai que Deus haja, há-de estar vaidoso de ti, pois estás a mostrar-te um verdadeiro filho de quem és.
Bondade sua, padrinho. Faz-se o que se pode; e se um homem não zelar pelo que é seu, levam-lhe coiro e cabelo e ainda ficam a rir-se nas suas costas.
Amanhã, ao sol-nado, encontramo-nos lá no Vale da Cal. Está bem, padrinho?
É melhor passares lá por minha casa; fica-te em caminho e, depois de matarmos o bicho, dividimos o caminho a meias, como costuma dizer-se; de prosa, até custa menos a chegar lá. Isto se não te importares e a companhia te agradar.
Ora essa, padrinho. Lá estarei e até amanhã. Recomendações à madrinha.
Igualmente para a tua mulher e vossos filhos, que estão a acabar a escola, não é?...
O Abílio deu voltas, na cama, para descobrir o que movia o padrinho na sua direcção; sempre fora arredio e sobranceiro e agora descia do pedestal?... Mas por que cargas de água?... E aquela dos miúdos a acabar a escola?...
O Ti’João andava, havia tempos, para se dirigir ao afilhado. Sabia que ele já fora ao Mação saber quanto custava o ensino no colégio que acabava de abrir, que já estivera na Queixoperra, em casa de um parente que trazia lá um filho havia um ano, e que até já apalavrara uma casa, na vila, para hospedar os filhos.
Aquela viagem caía como sopa no mel, para saber coisas e substituir-se ao genro, que não preparara nada: estava decidido que os seus netos também haviam de vir a ser muito mais do que ele e o dinheiro dos pinheiros do Vale da Cal iria ser reservado para esse fim.
Na viagem de ida e regresso o Ti’João confessou todo o seu interesse em saber coisas sobre o colégio e as possibilidades de mandar estudar os seus netos.
Agradeceu muito ao afilhado e pediu-lhe que fosse reservado sobre aquela prosa, pois queria saber até onde chegaria o seu genro. E, na altura própria, os netos do Ti’João foram para o colégio e, ainda em vida do avô, foram os dois primeiros a alcançarem uma formatura.
Desejamos que os muitos que se revêem nesta breve história, nunca tenham esquecido, ou renegado, os “Abílios” das nossas terras.
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
A azenha do Ti Lindo
Danado de ano em que tudo correu mal, cá em casa.
Com estas palavras de desalento despedia-se o compadre Lindo do Tio André que viera assistir e ajudar na matança e estava de partida, com a patroa, os dois filhos e a nora – a filha mais velha do ti Lindo que casara, havia dois anos, com o filho mais moço do moleiro André, nado e criado no Pisão Fundeiro e muito bem afreguesado ali na Serra –.
Queixava-se o Ti Lindo:
O ano começou com aquele tombo do carro dos bois em que o cabano acabou por me partir um corno e ainda andar uns meses com um aleijão na perna esquerda, de trás, de jeito que o outro tinha praticamente de puxar sozinho.
Pouco trabalhámos na primeira metade do ano.
Depois a cabrita mais nova não tomou barriga e sempre foram menos dois chibitos, que a malvada nunca deu menos.
A praga deu nas macieiras do vale de Incenso e foi uma guerra para conseguir avisar os fregueses habituais que as árvores não tinham dado nada e não podia levar as encomendas.
O maldito do pulgão não deixou escapar uma couvinha que fosse, lá no canteirito que sempre me rendia uns centos de mil réis nas praças de Mação e do Sardoal.
As videiras nem deram para bebermos na ceifa e na matança; a safra da azeitona está feita, como se pode ver: nem vai chegar para a apanha.
O porquito, a que veio ajudar, é o que resta dos três que todos os anos costumamos matar.
Mas, compadre, que tudo seja em desconto dos nossos pecados e, se Deus quiser, para o ano será melhor. Nunca podemos desanimar e temos de aceitar o que o destino nos dá, pois que se há-de fazer?!...
O moleiro, tomando habilmente a palavra, rematou:
É verdade, senhor compadre, que é uma dor de alma carregar para aqui tantos taleigos de farinha para os três porquitos – com sua licença – e as malvadas das febres levarem quase tudo.
Deixe lá, graças a Deus estamos todos bem de saúde e aquele negócio de que falámos ontem, há-de correr bem e virá dar uma boa ajuda ao arranjo da sua casa que, com todos esses contratempos, ainda dá e vende aos olhos de quem a inveja.
E agora, com vossa licença, vamos andando que já não chegamos a casa antes de sol-posto e há animais a tratar, águas a tapar, engenhos a ajeitar, que amanhã é outro dia, se Deus quiser. Dê cá um abraço e muito bem hajam os compadres que tão bem nos souberam e quiseram receber.
Fiquem com Deus, compadres.
Aquelas últimas palavras do moleiro acabaram por dar um alento novo ao Ti Lindo.
Foi dali pensar os animais, avisar o Manuel do Vale e o Courela que no dia seguinte continuava a surriba nos Brejos, passou pela taberna para saber as últimas e sentou-se à mesa, junto da lareira, para cear com a mulher – Ti Maria das Dores –.
Comeram os restos da couvada do jantar e no fim uma morcela de assar, bem puxada de cominhos e apontada de sal e quando o Ti Lindo se sentou à lareira, depois da reza habitual, chegaram as duas comadres que vinham ajudar no tratamento das carnes para os enchidos.
As três mulheres acenderam uma candeia de azeite e dirigiram-se, pela porta dos fundos, à despensa anexa, onde se tratavam os assuntos referentes a carnes e enchidos da matança.
O Ti Lindo, com a cabeça a pender, continuou a pensar no segredo que partilhara com o compadre moleiro de quem conseguira obter todos os pormenores que lhe seriam muito úteis na concretização da tarefa que havia muito tempo preparava.
Soube dos passos a dar junto da Senhora Câmara, dos serviços da hidráulica, dos favores a conseguir junto do guarda-rios e tomou até orientações da construção e dos apetrechos necessários à montagem da azenha, no cimo da horta da Renda.
Pelas suas contas, com uns vinte contos de réis preparava tudo e em cada ano, só para os animais, haveria de moer para cima de trezentos alqueires de milho e centeio.
Com maquia de um em dez que fosse, a azenha ganhava trinta ou mais alqueires de pão em cada ano. E se aparecesse alguém que tivesse pão para ocupar os tempos mortos, podia arranjar-se mais cinco ou dez alqueires de maquias.
Onde diabo iria arranjar-se uma courela, por vinte contos, que, sem trabalho, desse trinta ou quarenta alqueires de pão?!..
Quando a mulher o abanou, despertou, levantou-se e disse-lhe:
Acabamos de adquirir uma courela que dá trinta ou quarenta alqueires de pão por ano… sem trabalho nenhum.
Vamos dormir…
Com estas palavras de desalento despedia-se o compadre Lindo do Tio André que viera assistir e ajudar na matança e estava de partida, com a patroa, os dois filhos e a nora – a filha mais velha do ti Lindo que casara, havia dois anos, com o filho mais moço do moleiro André, nado e criado no Pisão Fundeiro e muito bem afreguesado ali na Serra –.
Queixava-se o Ti Lindo:
O ano começou com aquele tombo do carro dos bois em que o cabano acabou por me partir um corno e ainda andar uns meses com um aleijão na perna esquerda, de trás, de jeito que o outro tinha praticamente de puxar sozinho.
Pouco trabalhámos na primeira metade do ano.
Depois a cabrita mais nova não tomou barriga e sempre foram menos dois chibitos, que a malvada nunca deu menos.
A praga deu nas macieiras do vale de Incenso e foi uma guerra para conseguir avisar os fregueses habituais que as árvores não tinham dado nada e não podia levar as encomendas.
O maldito do pulgão não deixou escapar uma couvinha que fosse, lá no canteirito que sempre me rendia uns centos de mil réis nas praças de Mação e do Sardoal.
As videiras nem deram para bebermos na ceifa e na matança; a safra da azeitona está feita, como se pode ver: nem vai chegar para a apanha.
O porquito, a que veio ajudar, é o que resta dos três que todos os anos costumamos matar.
Mas, compadre, que tudo seja em desconto dos nossos pecados e, se Deus quiser, para o ano será melhor. Nunca podemos desanimar e temos de aceitar o que o destino nos dá, pois que se há-de fazer?!...
O moleiro, tomando habilmente a palavra, rematou:
É verdade, senhor compadre, que é uma dor de alma carregar para aqui tantos taleigos de farinha para os três porquitos – com sua licença – e as malvadas das febres levarem quase tudo.
Deixe lá, graças a Deus estamos todos bem de saúde e aquele negócio de que falámos ontem, há-de correr bem e virá dar uma boa ajuda ao arranjo da sua casa que, com todos esses contratempos, ainda dá e vende aos olhos de quem a inveja.
E agora, com vossa licença, vamos andando que já não chegamos a casa antes de sol-posto e há animais a tratar, águas a tapar, engenhos a ajeitar, que amanhã é outro dia, se Deus quiser. Dê cá um abraço e muito bem hajam os compadres que tão bem nos souberam e quiseram receber.
Fiquem com Deus, compadres.
Aquelas últimas palavras do moleiro acabaram por dar um alento novo ao Ti Lindo.
Foi dali pensar os animais, avisar o Manuel do Vale e o Courela que no dia seguinte continuava a surriba nos Brejos, passou pela taberna para saber as últimas e sentou-se à mesa, junto da lareira, para cear com a mulher – Ti Maria das Dores –.
Comeram os restos da couvada do jantar e no fim uma morcela de assar, bem puxada de cominhos e apontada de sal e quando o Ti Lindo se sentou à lareira, depois da reza habitual, chegaram as duas comadres que vinham ajudar no tratamento das carnes para os enchidos.
As três mulheres acenderam uma candeia de azeite e dirigiram-se, pela porta dos fundos, à despensa anexa, onde se tratavam os assuntos referentes a carnes e enchidos da matança.
O Ti Lindo, com a cabeça a pender, continuou a pensar no segredo que partilhara com o compadre moleiro de quem conseguira obter todos os pormenores que lhe seriam muito úteis na concretização da tarefa que havia muito tempo preparava.
Soube dos passos a dar junto da Senhora Câmara, dos serviços da hidráulica, dos favores a conseguir junto do guarda-rios e tomou até orientações da construção e dos apetrechos necessários à montagem da azenha, no cimo da horta da Renda.
Pelas suas contas, com uns vinte contos de réis preparava tudo e em cada ano, só para os animais, haveria de moer para cima de trezentos alqueires de milho e centeio.
Com maquia de um em dez que fosse, a azenha ganhava trinta ou mais alqueires de pão em cada ano. E se aparecesse alguém que tivesse pão para ocupar os tempos mortos, podia arranjar-se mais cinco ou dez alqueires de maquias.
Onde diabo iria arranjar-se uma courela, por vinte contos, que, sem trabalho, desse trinta ou quarenta alqueires de pão?!..
Quando a mulher o abanou, despertou, levantou-se e disse-lhe:
Acabamos de adquirir uma courela que dá trinta ou quarenta alqueires de pão por ano… sem trabalho nenhum.
Vamos dormir…
sexta-feira, 4 de setembro de 2009
O velho Faustino
Ninguém conhecera, não se lembrava ou, simplesmente não queria falar do Ti´Fastino, como se dizia no povo, enquanto rapaz.
Durante uns tempos, após o seu desaparecimento, falou-se dele como voluntário na guerra da França, embarcado na marinha mercante, zelador de um cemitério de mortos na guerra, algures na Bélgica, cativo dos indígenas de um país africano, deportado nas galés e rufia nas ruas da capital. Esqueceram-no, por fim.
Afastado da terra, e sem com ela comunicar, durante perto de setenta anos, regressou, num dia de cerrada maresia, dirigiu-se a casa dos parentes mais próximos, se bem que afastados, cumprimentou-os e manifestou a vontade de se fixar na Terra.
Queria uma casa, que estava disposto a comprar, e precisava de quem lhe tratasse da roupa e preparasse a comida.
Adiantou-se a Tia Ana Tomásia, prima ainda chegada, que ofereceu uma casa ao Ti´Fastino e se prontificou a tratar de roupas e limpezas da casa – sabe, primo, gostaria de lhe dar melhor, mas cá na terra é o que se pode arranjar; não levará a mal –.
O recém-chegado agradeceu e aceitou a oferta, dizendo que tinha toda a roupa que precisava e que arranjasse alguém para ajudá-la, sem olhar às despesas.
Passados poucos dias, dominava, perfeitamente, a aldeia, embora se mantivesse à margem e nunca adiantasse conversa quando era interpelado.
Agradecia tudo o que lhe faziam e era bastante generoso nas recompensas que dava.
Era homem de poucas falas, com dificuldades auditivas e usava óculos muito graduados. De aspecto limpo e cuidado, muito bem vestido, trouxera, consigo, apenas duas malas, no automóvel em que chegou ao Casal.
Na primeira volta pela aldeia deu a salvação aos que com ele se cruzaram, sendo desconhecido da maioria.
Alguns, porém, nem acreditaram no que estavam a ver.
Esperavam tudo, menos o velho “Fastino”, dado como morto, havia muito tempo.
Os dias passaram e no correio passou a chegar, todos os dias, “O Século” e, várias cartas, com carimbo de Lisboa, mas sem remetente.
Levantava-se cedo, demorava uma boa meia hora a fazer a higiene pessoal, recebia o barbeiro – curioso que aprendera a arte na tropa – para lhe fazer a barba e dava voltas pelos campos dos arredores, que parecia reconhecer.
Passava horas, sentado no meio dos pinheiros, com a cabeça entre as mãos, como que dormitando.
Todos os dias, depois da primeira volta pelo campo, mandava alguém ao Casal procurar o correio e almoçava. Dormia a sesta e, pela tardinha, saía para a segunda volta, de que regressava ao pôr-do-sol, passando pelas tabernas, onde convidava todos os presentes a beber um copo. Regressava a casa, comia um caldo, acompanhado de carne ou peixe e fruta da terra.
Uns dois meses depois do regresso do velho Faustino, chegou à aldeia um homem bem-posto, num carro de praça de Alferrarede, com uma pasta na mão, perguntando pelo senhor António Marques Faustino.
Dizia-se advogado e ter assuntos muito importantes e do interesse do senhor, a tratar com ele. Queria que o levassem a sua casa, pois sabia que morava na aldeia.
Enquanto entretiveram o homem, no largo das tabernas, alguém saiu, sub-repticiamente, dirigiu-se a casa do velho Faustino e, não o encontrando, foi procurá-lo no caminho da serra, no meio do pinhal. Ofegante, disse-lhe:
Deus o salve, Ti´Fastino!... Está lá em baixo, à porta da taberna, um senhor que chegou num carro de praça e que disse ter de falar com vomeçê, em pessoa, para seu interesse. Diz que é de leis. O que quer que se lhe diga? Ainda ninguém lhe disse nada, penso eu!...
Vai lá e traz o senhor a minha casa, mas sozinho, ouviste?!...
Numa correria desenfreada, partiu o Zé Miguel a caminho das tabernas e, poucos minutos depois já conduzia o homem para junto da casa do Ti´Fastino, ficando de atalaia, ao fundo da canada para que, como disse o velho, o homem fosse só e mais ninguém presenciasse, ou incomodasse, o que tivessem a resolver os dois.
Ficou, pois, para o que desse e viesse, discretamente vigilante, como que de guarda, ainda que ninguém lhe tivesse encomendado o sermão.
Uma boa hora depois saíram os dois, a conversar, a caminho das tabernas, tendo entrado numa delas para beber um copo, no que foram acompanhados pelos presentes, a convite do velho Fastino.
Foi o advogado a quebrar o silêncio, anunciando que não podia adiantar muito, pois teria que respeitar a vontade do seu cliente, ali presente, mas sempre disse que voltaria mais vezes à aldeia que, a partir daquele dia, poderia receber muitos e bons melhoramentos.
Queria ir a Penhascoso, falar com o senhor padre da freguesia, mas antes precisava dar uma palavrinha ao Cabo de Ordens da terra.
Veio o António do Vale e teve uma conversa com o advogado que, ao que mais tarde se soube, o encarregou de preparar uma comissão de melhoramentos e organizar as coisas para que quando o advogado voltasse, estivesse tudo pronto a avançar.
Tomou nota do nome do padre, despediu-se, do senhor Faustino, curvando-se, entrou no carro e deu ordens ao motorista para seguir até Penhascoso, onde devia dirigir-se a casa do senhor prior e aguardar.
A conversa, com o padre António, resumiu-se às explicações que o advogado entendeu dever dar sobre as intenções do seu cliente, a residir na Serra, sua aldeia natal.
Apresentou-se como advogado e administrador de fortunas e estava ali para pedir a colaboração do padre da freguesia para algumas acções que tinham a ver com a capela.
Pedia, ainda, que fosse respeitada a vontade do seu cliente e o senhor padre ajudasse a manter o povo informado e sem comentários, pois o senhor comendador António Marques Faustino não gostava que se falasse na vida dele.
Nos próximos dias chegariam novidades e a comissão que pediu que criassem na Serra, deveria incluir o senhor padre.
Disse, por fim, que seria informado sobre tudo o que acontecesse e despediu-se, agradecendo toda a colaboração que lhe fosse dispensada, quando solicitada. Entrou no carro e partiu, com um muito obrigado.
Na Serra, como seria de esperar, não se falou de outra coisa: o senhor Fastino, que, se não era, passou a ser, parente de toda a gente da terra, era homem de peso, diziam uns; tratava-se de um benemérito que fizera bem a muita gente e agora se lembrara da sua terra, adiantavam outros.
Houve, porém, os que se calaram e esperaram para ver, porque desconfiaram de tantos segredos e tanta fartura.
Quinze dias depois da visita do advogado, chegou a primeira carta, de Lisboa, com remetente igual às que chegavam para o senhor Faustino, como passou a ser tratado o velho.
Dirigida ao Cabo de Ordens, que depois de mandar lê-la, marcou uma reunião da comissão de melhoramentos, entretanto eleita.
Foi passada palavra e informado, pessoalmente, o senhor Faustino, que fora escolhido para presidente e declarou aceitar o cargo mas apenas como honorário, o que, como explicou, queria dizer que poderia ir às reuniões, participar e ajudar, mas não era obrigado a nada.
O presidente da comissão, Cabo de Ordens, e os restantes quatro membros, além do senhor Faustino e do senhor padre, tomaram lugar na mesa e foi começada a primeira reunião. Estavam presentes muitos populares que enchiam, a capela.
O senhor padre justificou a realização da reunião na capela como absolutamente normal e por ser a casa de todos e ser do interesse do povo o que se iria discutir.
Com a ajuda do padre procedeu-se à escolha dos membros, primeiro e segundo secretários e do tesoureiro e tesoureiro substituto. Foram explicados os procedimentos e a maneira de fazer as actas, que na primeira fase ficaram a cargo do padre.
O presidente honorário pediu a palavra para cumprimentar todos os presentes e pediu ao senhor padre para ler a carta que chegou de Lisboa, enviada pelo seu advogado, com que estava de acordo, pois já lera a cópia.
Resumidamente a carta explicava a situação do advogado e definia os princípios da vontade do senhor Comendador:
Desejava pagar os melhoramentos definidos e aprovados pela comissão.
Mandar instalar um telefone na aldeia.
Fazer todas as coisas necessárias para trazer luz eléctrica para a aldeia.
Reparar caminhos, fontes e capela.
Fazer casa da escola.
Fazer casa para a associação de melhoramentos.
Vinda de médico à aldeia, entre várias outras sugestões.
Para fundo de maneio recomendava a abertura de uma conta, na Caixa Geral de Depósitos, no valor de cem contos de réis, doado pelo senhor Comendador António Marques Faustino.
Durante a leitura, o senhor Faustino manteve-se impávido e sereno e todos os presentes ficaram tão espantados que apenas abriram a boca de admiração à medida que o senhor padre foi lendo.
No final, o senhor Faustino pediu licença para se retirar e recomendou ao senhor padre que explicasse tudo o que a carta dizia e o verdadeiro alcance dela.
Levantou-se e com um ‘Deus vos salve a todos’, saiu.
Durante o resto da manhã ninguém arredou pé, ouvindo as explicações do padre e perguntando o que não entendia.
No final, como resumo, o senhor padre disse:
Caros amigos o que se está a passar é uma verdadeira dádiva do Senhor. O nosso conterrâneo está disposto, e pode, gastar muito dinheiro em benefício desta nossa terra. Os bens dele suportam tudo o que aqui foi anunciado e muito mais, segundo sei. Mas oiçam bem e tenham sempre presente que o senhor Comendador não suporta várias coisas, de que destaco duas:
Não gosta que se metam na vida dele.
Não tolera que o enganem.
De tudo o que se fizer ficará relato nas actas e será dado conhecimento ao senhor doutor advogado.
Todas as acções e despesas serão discutidas e aprovadas pela comissão, antes de apresentadas ao doutor advogado que receberá as cópias das actas das sessões.
O livro de actas ficará à guarda do nosso secretário e poderá ser consultado por qualquer pessoa que o peça, apenas tendo que consultá-lo na presença e no local da comissão.
As ideias, sugestões, pedidos, etc., serão sempre apresentados por escrito e entregues a qualquer membro da comissão que o agendará na reunião seguinte.
O senhor Comendador, tal como o seu representante, não deve ser incomodado, pelo que será informado através das actas das sessões e, proponho que não tenha que se deslocar para as ler, mas receba uma cópia de todas as actas, em sua casa.
Nas décadas seguintes a aldeia progrediu mais que no milénio antecedente e, se não aproveitou melhor a benemerência do velho Fastino, foi por falta de ousadia das comissões e nunca por insuficiência de meios.
Durante uns tempos, após o seu desaparecimento, falou-se dele como voluntário na guerra da França, embarcado na marinha mercante, zelador de um cemitério de mortos na guerra, algures na Bélgica, cativo dos indígenas de um país africano, deportado nas galés e rufia nas ruas da capital. Esqueceram-no, por fim.
Afastado da terra, e sem com ela comunicar, durante perto de setenta anos, regressou, num dia de cerrada maresia, dirigiu-se a casa dos parentes mais próximos, se bem que afastados, cumprimentou-os e manifestou a vontade de se fixar na Terra.
Queria uma casa, que estava disposto a comprar, e precisava de quem lhe tratasse da roupa e preparasse a comida.
Adiantou-se a Tia Ana Tomásia, prima ainda chegada, que ofereceu uma casa ao Ti´Fastino e se prontificou a tratar de roupas e limpezas da casa – sabe, primo, gostaria de lhe dar melhor, mas cá na terra é o que se pode arranjar; não levará a mal –.
O recém-chegado agradeceu e aceitou a oferta, dizendo que tinha toda a roupa que precisava e que arranjasse alguém para ajudá-la, sem olhar às despesas.
Passados poucos dias, dominava, perfeitamente, a aldeia, embora se mantivesse à margem e nunca adiantasse conversa quando era interpelado.
Agradecia tudo o que lhe faziam e era bastante generoso nas recompensas que dava.
Era homem de poucas falas, com dificuldades auditivas e usava óculos muito graduados. De aspecto limpo e cuidado, muito bem vestido, trouxera, consigo, apenas duas malas, no automóvel em que chegou ao Casal.
Na primeira volta pela aldeia deu a salvação aos que com ele se cruzaram, sendo desconhecido da maioria.
Alguns, porém, nem acreditaram no que estavam a ver.
Esperavam tudo, menos o velho “Fastino”, dado como morto, havia muito tempo.
Os dias passaram e no correio passou a chegar, todos os dias, “O Século” e, várias cartas, com carimbo de Lisboa, mas sem remetente.
Levantava-se cedo, demorava uma boa meia hora a fazer a higiene pessoal, recebia o barbeiro – curioso que aprendera a arte na tropa – para lhe fazer a barba e dava voltas pelos campos dos arredores, que parecia reconhecer.
Passava horas, sentado no meio dos pinheiros, com a cabeça entre as mãos, como que dormitando.
Todos os dias, depois da primeira volta pelo campo, mandava alguém ao Casal procurar o correio e almoçava. Dormia a sesta e, pela tardinha, saía para a segunda volta, de que regressava ao pôr-do-sol, passando pelas tabernas, onde convidava todos os presentes a beber um copo. Regressava a casa, comia um caldo, acompanhado de carne ou peixe e fruta da terra.
Uns dois meses depois do regresso do velho Faustino, chegou à aldeia um homem bem-posto, num carro de praça de Alferrarede, com uma pasta na mão, perguntando pelo senhor António Marques Faustino.
Dizia-se advogado e ter assuntos muito importantes e do interesse do senhor, a tratar com ele. Queria que o levassem a sua casa, pois sabia que morava na aldeia.
Enquanto entretiveram o homem, no largo das tabernas, alguém saiu, sub-repticiamente, dirigiu-se a casa do velho Faustino e, não o encontrando, foi procurá-lo no caminho da serra, no meio do pinhal. Ofegante, disse-lhe:
Deus o salve, Ti´Fastino!... Está lá em baixo, à porta da taberna, um senhor que chegou num carro de praça e que disse ter de falar com vomeçê, em pessoa, para seu interesse. Diz que é de leis. O que quer que se lhe diga? Ainda ninguém lhe disse nada, penso eu!...
Vai lá e traz o senhor a minha casa, mas sozinho, ouviste?!...
Numa correria desenfreada, partiu o Zé Miguel a caminho das tabernas e, poucos minutos depois já conduzia o homem para junto da casa do Ti´Fastino, ficando de atalaia, ao fundo da canada para que, como disse o velho, o homem fosse só e mais ninguém presenciasse, ou incomodasse, o que tivessem a resolver os dois.
Ficou, pois, para o que desse e viesse, discretamente vigilante, como que de guarda, ainda que ninguém lhe tivesse encomendado o sermão.
Uma boa hora depois saíram os dois, a conversar, a caminho das tabernas, tendo entrado numa delas para beber um copo, no que foram acompanhados pelos presentes, a convite do velho Fastino.
Foi o advogado a quebrar o silêncio, anunciando que não podia adiantar muito, pois teria que respeitar a vontade do seu cliente, ali presente, mas sempre disse que voltaria mais vezes à aldeia que, a partir daquele dia, poderia receber muitos e bons melhoramentos.
Queria ir a Penhascoso, falar com o senhor padre da freguesia, mas antes precisava dar uma palavrinha ao Cabo de Ordens da terra.
Veio o António do Vale e teve uma conversa com o advogado que, ao que mais tarde se soube, o encarregou de preparar uma comissão de melhoramentos e organizar as coisas para que quando o advogado voltasse, estivesse tudo pronto a avançar.
Tomou nota do nome do padre, despediu-se, do senhor Faustino, curvando-se, entrou no carro e deu ordens ao motorista para seguir até Penhascoso, onde devia dirigir-se a casa do senhor prior e aguardar.
A conversa, com o padre António, resumiu-se às explicações que o advogado entendeu dever dar sobre as intenções do seu cliente, a residir na Serra, sua aldeia natal.
Apresentou-se como advogado e administrador de fortunas e estava ali para pedir a colaboração do padre da freguesia para algumas acções que tinham a ver com a capela.
Pedia, ainda, que fosse respeitada a vontade do seu cliente e o senhor padre ajudasse a manter o povo informado e sem comentários, pois o senhor comendador António Marques Faustino não gostava que se falasse na vida dele.
Nos próximos dias chegariam novidades e a comissão que pediu que criassem na Serra, deveria incluir o senhor padre.
Disse, por fim, que seria informado sobre tudo o que acontecesse e despediu-se, agradecendo toda a colaboração que lhe fosse dispensada, quando solicitada. Entrou no carro e partiu, com um muito obrigado.
Na Serra, como seria de esperar, não se falou de outra coisa: o senhor Fastino, que, se não era, passou a ser, parente de toda a gente da terra, era homem de peso, diziam uns; tratava-se de um benemérito que fizera bem a muita gente e agora se lembrara da sua terra, adiantavam outros.
Houve, porém, os que se calaram e esperaram para ver, porque desconfiaram de tantos segredos e tanta fartura.
Quinze dias depois da visita do advogado, chegou a primeira carta, de Lisboa, com remetente igual às que chegavam para o senhor Faustino, como passou a ser tratado o velho.
Dirigida ao Cabo de Ordens, que depois de mandar lê-la, marcou uma reunião da comissão de melhoramentos, entretanto eleita.
Foi passada palavra e informado, pessoalmente, o senhor Faustino, que fora escolhido para presidente e declarou aceitar o cargo mas apenas como honorário, o que, como explicou, queria dizer que poderia ir às reuniões, participar e ajudar, mas não era obrigado a nada.
O presidente da comissão, Cabo de Ordens, e os restantes quatro membros, além do senhor Faustino e do senhor padre, tomaram lugar na mesa e foi começada a primeira reunião. Estavam presentes muitos populares que enchiam, a capela.
O senhor padre justificou a realização da reunião na capela como absolutamente normal e por ser a casa de todos e ser do interesse do povo o que se iria discutir.
Com a ajuda do padre procedeu-se à escolha dos membros, primeiro e segundo secretários e do tesoureiro e tesoureiro substituto. Foram explicados os procedimentos e a maneira de fazer as actas, que na primeira fase ficaram a cargo do padre.
O presidente honorário pediu a palavra para cumprimentar todos os presentes e pediu ao senhor padre para ler a carta que chegou de Lisboa, enviada pelo seu advogado, com que estava de acordo, pois já lera a cópia.
Resumidamente a carta explicava a situação do advogado e definia os princípios da vontade do senhor Comendador:
Desejava pagar os melhoramentos definidos e aprovados pela comissão.
Mandar instalar um telefone na aldeia.
Fazer todas as coisas necessárias para trazer luz eléctrica para a aldeia.
Reparar caminhos, fontes e capela.
Fazer casa da escola.
Fazer casa para a associação de melhoramentos.
Vinda de médico à aldeia, entre várias outras sugestões.
Para fundo de maneio recomendava a abertura de uma conta, na Caixa Geral de Depósitos, no valor de cem contos de réis, doado pelo senhor Comendador António Marques Faustino.
Durante a leitura, o senhor Faustino manteve-se impávido e sereno e todos os presentes ficaram tão espantados que apenas abriram a boca de admiração à medida que o senhor padre foi lendo.
No final, o senhor Faustino pediu licença para se retirar e recomendou ao senhor padre que explicasse tudo o que a carta dizia e o verdadeiro alcance dela.
Levantou-se e com um ‘Deus vos salve a todos’, saiu.
Durante o resto da manhã ninguém arredou pé, ouvindo as explicações do padre e perguntando o que não entendia.
No final, como resumo, o senhor padre disse:
Caros amigos o que se está a passar é uma verdadeira dádiva do Senhor. O nosso conterrâneo está disposto, e pode, gastar muito dinheiro em benefício desta nossa terra. Os bens dele suportam tudo o que aqui foi anunciado e muito mais, segundo sei. Mas oiçam bem e tenham sempre presente que o senhor Comendador não suporta várias coisas, de que destaco duas:
Não gosta que se metam na vida dele.
Não tolera que o enganem.
De tudo o que se fizer ficará relato nas actas e será dado conhecimento ao senhor doutor advogado.
Todas as acções e despesas serão discutidas e aprovadas pela comissão, antes de apresentadas ao doutor advogado que receberá as cópias das actas das sessões.
O livro de actas ficará à guarda do nosso secretário e poderá ser consultado por qualquer pessoa que o peça, apenas tendo que consultá-lo na presença e no local da comissão.
As ideias, sugestões, pedidos, etc., serão sempre apresentados por escrito e entregues a qualquer membro da comissão que o agendará na reunião seguinte.
O senhor Comendador, tal como o seu representante, não deve ser incomodado, pelo que será informado através das actas das sessões e, proponho que não tenha que se deslocar para as ler, mas receba uma cópia de todas as actas, em sua casa.
Nas décadas seguintes a aldeia progrediu mais que no milénio antecedente e, se não aproveitou melhor a benemerência do velho Fastino, foi por falta de ousadia das comissões e nunca por insuficiência de meios.
quinta-feira, 27 de agosto de 2009
Pena de Talião
Pelos anos cinquenta não era fácil a vida no centro do País; no campo era difícil – havia pouco dinheiro para pagar as jornas, a propriedade muito dividida era amanhada pelos proprietários e filhos e os trabalhos especiais (ceifas, mondas, malhas, azeitona, podas ou vindimas) eram sazonais e, por vezes, comunitárias.
Para se conseguir um lugarzito como factor da CP, guarda freios ou condutor na Carris, servente ou pedreiro, nas obras de Lisboa, e guarda na GNR ou PSP, era preciso bons empenhos, de alguém bem colocado, a troco de um bom cabrito ou de uns garrafões do bom azeite da região.
Numa dessas voltas da vida, o ti Manel Bento dirigiu-se a casa do doutor Martins – onde era jornaleiro, tal como fora seu pai –, para lhe pedir que arranjasse qualquer coisa para o filho Mário, que daí a dias seria licenciado da tropa e não tinha muita compleição física para cavar com ele no campo ou nos poços e minas.
Muito bem recebido pela Senhora, que chamou logo uma criada para guardar o recheio da cestinha do ti Manel Bento, constituído por um frasco de mel, um galo capão, ainda vivo, e duas garrafas de azeite. E, enquanto a criada não voltava com a cestita já vazia, lá foi assegurando ao jornaleiro, conhecido da casa havia muitos anos, que o seu compadre de Lisboa alguma coisa haveria de arranjar – recomendaria o rapaz para a GNR.
Foi assim que, daí a seis meses, depois de feita a preparação, o Mário Bento foi colocado, como guarda, no posto da GNR, da vila.
Na primeira patrulha que fez, passou pela sua aldeia, onde levantou vários autos – coisas comezinhas, como entulho deitado nos caminhos, caiação de casa sem licença, poço sem vedação e carroça mal arrumada, foram objecto da atenção do guarda Mário, que, passeando a sua farda nova, tomou a iniciativa de autuar o próprio pai, por uma transgressão de somenos importância.
O ti’Manel Bento, foi ao posto da GNR e ignorando a presença do filho quando por ele passou, dirigiu-se ao graduado de serviço – o sr. Cabo –, a quem apresentou a autuação e se prontificou a pagar a multa. Ao mesmo tempo tirou da algibeira das calças uma bolsita de trapos, onde guardava o dinheiro e, pegando nos vinte escudos, correspondentes à coima, entregou-os. Aceitou o recibo e saiu.
A coisa serenou: não havia que censurar o filho por cumprir o seu dever. Todavia, na cabeça do ti’ Manel continuava a interrogação sobre o que quereria o filho mostrar, com aquela atitude. Não encontrava resposta e custava-lhe mais conter-se, quando ouvia os comentários de vizinhos e amigos sobre o zelo do filho.
A mágoa no coração custou mais a passar; indo para lá do casamento do filho e baptizado dos netos, onde o ti’ Manel fingiu que não mais se lembrava da mágoa que sentiu, quando se viu autuado pelo seu próprio filho, no primeiro trabalho que fez na guarda.
Muitos anos depois, pelo Natal, o ti’ Manel chamou os seis filhos e, à volta do alguidar das filhós, de uma pratada de tremoços, uma bacia de azeitonas retalhadas, pão e queijo, regados com vinho da casa, todos comeram e beberam, à vontade.
Antes de partirem para suas casas, o velho pai puxou da mesma bolsita de pano que usara no posto da GNR, trinta e três anos antes, e tirando cinco notas de quinhentos escudos – quantia que nesse tempo correspondia a mais de dois meses de jornas –, deu uma a cada filho, menos ao Mário, ainda guarda da GNR.
Disse que queria deixar as coisas equilibradas; que aquelas notas não eram mais, nem menos, que os vinte mil réis que tinha pago de multa, trinta e três anos atrás, valorizados a um juro normal de dez por cento ao ano. Não havia mais nada a dizer e só queria acrescentar que já podia morrer descansado.
Cada um desapareceu para seu lado, rapidamente, só o Mário, junto do pai, o abraçou, sentidamente e em silêncio total. Não se sentiu injustiçado – recordou-se de qualquer coisa que lera, sobre a “pena de Talião”.
Para se conseguir um lugarzito como factor da CP, guarda freios ou condutor na Carris, servente ou pedreiro, nas obras de Lisboa, e guarda na GNR ou PSP, era preciso bons empenhos, de alguém bem colocado, a troco de um bom cabrito ou de uns garrafões do bom azeite da região.
Numa dessas voltas da vida, o ti Manel Bento dirigiu-se a casa do doutor Martins – onde era jornaleiro, tal como fora seu pai –, para lhe pedir que arranjasse qualquer coisa para o filho Mário, que daí a dias seria licenciado da tropa e não tinha muita compleição física para cavar com ele no campo ou nos poços e minas.
Muito bem recebido pela Senhora, que chamou logo uma criada para guardar o recheio da cestinha do ti Manel Bento, constituído por um frasco de mel, um galo capão, ainda vivo, e duas garrafas de azeite. E, enquanto a criada não voltava com a cestita já vazia, lá foi assegurando ao jornaleiro, conhecido da casa havia muitos anos, que o seu compadre de Lisboa alguma coisa haveria de arranjar – recomendaria o rapaz para a GNR.
Foi assim que, daí a seis meses, depois de feita a preparação, o Mário Bento foi colocado, como guarda, no posto da GNR, da vila.
Na primeira patrulha que fez, passou pela sua aldeia, onde levantou vários autos – coisas comezinhas, como entulho deitado nos caminhos, caiação de casa sem licença, poço sem vedação e carroça mal arrumada, foram objecto da atenção do guarda Mário, que, passeando a sua farda nova, tomou a iniciativa de autuar o próprio pai, por uma transgressão de somenos importância.
O ti’Manel Bento, foi ao posto da GNR e ignorando a presença do filho quando por ele passou, dirigiu-se ao graduado de serviço – o sr. Cabo –, a quem apresentou a autuação e se prontificou a pagar a multa. Ao mesmo tempo tirou da algibeira das calças uma bolsita de trapos, onde guardava o dinheiro e, pegando nos vinte escudos, correspondentes à coima, entregou-os. Aceitou o recibo e saiu.
A coisa serenou: não havia que censurar o filho por cumprir o seu dever. Todavia, na cabeça do ti’ Manel continuava a interrogação sobre o que quereria o filho mostrar, com aquela atitude. Não encontrava resposta e custava-lhe mais conter-se, quando ouvia os comentários de vizinhos e amigos sobre o zelo do filho.
A mágoa no coração custou mais a passar; indo para lá do casamento do filho e baptizado dos netos, onde o ti’ Manel fingiu que não mais se lembrava da mágoa que sentiu, quando se viu autuado pelo seu próprio filho, no primeiro trabalho que fez na guarda.
Muitos anos depois, pelo Natal, o ti’ Manel chamou os seis filhos e, à volta do alguidar das filhós, de uma pratada de tremoços, uma bacia de azeitonas retalhadas, pão e queijo, regados com vinho da casa, todos comeram e beberam, à vontade.
Antes de partirem para suas casas, o velho pai puxou da mesma bolsita de pano que usara no posto da GNR, trinta e três anos antes, e tirando cinco notas de quinhentos escudos – quantia que nesse tempo correspondia a mais de dois meses de jornas –, deu uma a cada filho, menos ao Mário, ainda guarda da GNR.
Disse que queria deixar as coisas equilibradas; que aquelas notas não eram mais, nem menos, que os vinte mil réis que tinha pago de multa, trinta e três anos atrás, valorizados a um juro normal de dez por cento ao ano. Não havia mais nada a dizer e só queria acrescentar que já podia morrer descansado.
Cada um desapareceu para seu lado, rapidamente, só o Mário, junto do pai, o abraçou, sentidamente e em silêncio total. Não se sentiu injustiçado – recordou-se de qualquer coisa que lera, sobre a “pena de Talião”.
sexta-feira, 7 de agosto de 2009
Don Pepe & Doña Maria
A festa de Alcaravela, que, em cada ano, tinha lugar num fim-de-semana de Agosto, era um dos pontos altos na vida da aldeia, sobretudo entre as gentes mais jovens.
De cariz, genuinamente, popular, tinha início no sábado, com os encontros entre familiares e amigos. Continuava, com uma forte "alvorada", de foguetes e morteiros, ao pôr-do-sol e, depois, à chegada do conjunto musical que, se revezava com o acordeonista, começava o baile.
No domingo, durante a manhã, percorriam-se as ruas, ao som da banda de Sardoal, fazendo o peditório, para a igreja. Seguia-se a missa, na igreja matriz de Santa Clara, apinhada de gente.
Terminada a procissão, que se seguia à missa, fazia-se o leilão das fogaças e comiam-se as merendas, para o que cada grupo de romeiros escolhia uma sombra.
Da Serra ia sempre uma grande comitiva: uns com destino à missa e procissão, outros para encontrar familiares e amigos, beberem uns copos e falarem de negócios. Os mais jovens esperavam, com impaciência, a animação e o baile, que durariam toda a noite.
Os rapazes compravam os bilhetes para as séries de três danças, tomavam lugar junto ao estrado e logo que se iniciava a música convidavam, por sinais, ou de viva voz, as raparigas que mais lhes interessavam.
Quando se notava insistência na escolha de um par, os outros afastavam-se, discretamente.
Nas mesas, à volta do "dancing", as mães, tias, mirones e raparigas não convidadas, nessa dança, seguiam, atentamente, tudo o que se passava e iam coscuvilhando.
Os homens bebiam cervejas e copos de vinho, enquanto conversavam com os amigos.
Alta madrugada, organizavam-se os grupos, de regresso às aldeias: os "moços soltos", os "casalinhos apalavrados" e os que aproveitavam a calada da noite para "pedidos de namoro".
Num dos regressos das festas de Alcaravela, um par de namorados – a Maria do Cimo da Eira e o Zé, da Tojeira –, afastaram-se do grupo, para irem à vontade.
No Vale das Onegas, os rapazes deram pela falta do “casalinho”, mas não ligaram ao assunto; a terra havia de dá-los. Porém, à chegada à Serra, não apareceram.
De manhã, espalhou-se a notícia na aldeia: a Maria do Cimo da Eira não voltara para casa.
Vieram, mais tarde, notícias da Tojeira que confirmavam a falta do Zé.
Ao fim de uma semana, o padrasto da rapariga comunicou na GNR o desaparecimento da enteada, que tinha sido vista, pela última vez, no regresso das festas de Alcaravela, na companhia do namorado, um rapaz da Tojeira, que também estava desaparecido.
Passaram anos sem sinais dos desaparecidos. Acabaram por cair no esquecimento.
Vinte e cinco anos depois, apareceu, na festa de Alcaravela, um casal de meia-idade, num imponente automóvel de matrícula estrangeira e sinais ostensivos de luxo: anéis, pulseiras, relógios, cordões, brincos e correntes de ouro.
Todos olhavam, deslumbrados e interrogavam-se: Quem serão? De onde virão? O que os traz até aqui?
Por entre a agitação e falatório, um irmão da Maria do Cimo da Eira olhou a estrangeira de frente e exclamou: Por onde tens andado, Maria?!... Afinal, és tu e estás viva!... Dá cá um abraço, mulher!...
Espalhou-se a notícia, juntou-se o povo e todos afirmavam ter já desconfiado que se tratava do Zé da Tojeira e da Maria do Cimo da Eira; os desaparecidos de há vinte e cinco anos.
Os forasteiros, entre beijos e abraços, explicaram que acabavam de chegar, da Argentina, onde estavam há mais de vinte e três anos. Lá, no outro lado do Mundo, Don Pepe & Doña Maria – como eram conhecidos –, tinham mais terra que toda a freguesia de Alcaravela, mais de três mil cabeças de gado e uma "finca" nos arredores de Córdoba, no centro do país.
Nunca tiveram filhos e resolveram vir agora a Portugal, agradecer a Santa Clara, de Alcaravela, e ao Senhor dos Aflitos, da Serra, que muito lhes valeram, nas horas mais difíceis.
Nos dois meses de férias, que repartiram entre as aldeias da sua naturalidade e diversos passeios pelo país, fizeram bem a muita gente.
Regressaram à Argentina sem falar no seu desaparecimento. Levaram dois sobrinhos que iriam preparar para lhes suceder na administração da firma de Import & Export, Pepe & Maria , S.A., nos arredores de Córdoba, na Argentina.
Antes de partir, deram meios e instruções ao irmão da Maria do Cimo da Eira para que mandasse construir uma imponente vivenda, na Serra, onde pensavam voltar para passar o resto dos seus dias.
Muitos anos mais tarde, foi encontrado, nas ruínas da casa, um caderno de duas linhas, com uma série impressionante de nomes de localidades, de diversos países, contas de transportes e até uma caixa, de lata, com um rolo de notas de dólares e pesos argentinos, que havia ali ficado por esquecimento.
Os apontamentos acabaram por desaparecer e as notas extraviaram-se, pois, um pedreiro, que trabalhava em Lisboa, levou-as para tentar cambiá-las no Banco de Portugal e não deu mais conta delas.
Exibiu um recibo, dizendo que se tratava de notas sem curso legal e já sem qualquer valor.
Ninguém mais se interessou pelo caso, não passando, hoje, de uma história que todos vão esquecendo.
De cariz, genuinamente, popular, tinha início no sábado, com os encontros entre familiares e amigos. Continuava, com uma forte "alvorada", de foguetes e morteiros, ao pôr-do-sol e, depois, à chegada do conjunto musical que, se revezava com o acordeonista, começava o baile.
No domingo, durante a manhã, percorriam-se as ruas, ao som da banda de Sardoal, fazendo o peditório, para a igreja. Seguia-se a missa, na igreja matriz de Santa Clara, apinhada de gente.
Terminada a procissão, que se seguia à missa, fazia-se o leilão das fogaças e comiam-se as merendas, para o que cada grupo de romeiros escolhia uma sombra.
Da Serra ia sempre uma grande comitiva: uns com destino à missa e procissão, outros para encontrar familiares e amigos, beberem uns copos e falarem de negócios. Os mais jovens esperavam, com impaciência, a animação e o baile, que durariam toda a noite.
Os rapazes compravam os bilhetes para as séries de três danças, tomavam lugar junto ao estrado e logo que se iniciava a música convidavam, por sinais, ou de viva voz, as raparigas que mais lhes interessavam.
Quando se notava insistência na escolha de um par, os outros afastavam-se, discretamente.
Nas mesas, à volta do "dancing", as mães, tias, mirones e raparigas não convidadas, nessa dança, seguiam, atentamente, tudo o que se passava e iam coscuvilhando.
Os homens bebiam cervejas e copos de vinho, enquanto conversavam com os amigos.
Alta madrugada, organizavam-se os grupos, de regresso às aldeias: os "moços soltos", os "casalinhos apalavrados" e os que aproveitavam a calada da noite para "pedidos de namoro".
Num dos regressos das festas de Alcaravela, um par de namorados – a Maria do Cimo da Eira e o Zé, da Tojeira –, afastaram-se do grupo, para irem à vontade.
No Vale das Onegas, os rapazes deram pela falta do “casalinho”, mas não ligaram ao assunto; a terra havia de dá-los. Porém, à chegada à Serra, não apareceram.
De manhã, espalhou-se a notícia na aldeia: a Maria do Cimo da Eira não voltara para casa.
Vieram, mais tarde, notícias da Tojeira que confirmavam a falta do Zé.
Ao fim de uma semana, o padrasto da rapariga comunicou na GNR o desaparecimento da enteada, que tinha sido vista, pela última vez, no regresso das festas de Alcaravela, na companhia do namorado, um rapaz da Tojeira, que também estava desaparecido.
Passaram anos sem sinais dos desaparecidos. Acabaram por cair no esquecimento.
Vinte e cinco anos depois, apareceu, na festa de Alcaravela, um casal de meia-idade, num imponente automóvel de matrícula estrangeira e sinais ostensivos de luxo: anéis, pulseiras, relógios, cordões, brincos e correntes de ouro.
Todos olhavam, deslumbrados e interrogavam-se: Quem serão? De onde virão? O que os traz até aqui?
Por entre a agitação e falatório, um irmão da Maria do Cimo da Eira olhou a estrangeira de frente e exclamou: Por onde tens andado, Maria?!... Afinal, és tu e estás viva!... Dá cá um abraço, mulher!...
Espalhou-se a notícia, juntou-se o povo e todos afirmavam ter já desconfiado que se tratava do Zé da Tojeira e da Maria do Cimo da Eira; os desaparecidos de há vinte e cinco anos.
Os forasteiros, entre beijos e abraços, explicaram que acabavam de chegar, da Argentina, onde estavam há mais de vinte e três anos. Lá, no outro lado do Mundo, Don Pepe & Doña Maria – como eram conhecidos –, tinham mais terra que toda a freguesia de Alcaravela, mais de três mil cabeças de gado e uma "finca" nos arredores de Córdoba, no centro do país.
Nunca tiveram filhos e resolveram vir agora a Portugal, agradecer a Santa Clara, de Alcaravela, e ao Senhor dos Aflitos, da Serra, que muito lhes valeram, nas horas mais difíceis.
Nos dois meses de férias, que repartiram entre as aldeias da sua naturalidade e diversos passeios pelo país, fizeram bem a muita gente.
Regressaram à Argentina sem falar no seu desaparecimento. Levaram dois sobrinhos que iriam preparar para lhes suceder na administração da firma de Import & Export, Pepe & Maria , S.A., nos arredores de Córdoba, na Argentina.
Antes de partir, deram meios e instruções ao irmão da Maria do Cimo da Eira para que mandasse construir uma imponente vivenda, na Serra, onde pensavam voltar para passar o resto dos seus dias.
Muitos anos mais tarde, foi encontrado, nas ruínas da casa, um caderno de duas linhas, com uma série impressionante de nomes de localidades, de diversos países, contas de transportes e até uma caixa, de lata, com um rolo de notas de dólares e pesos argentinos, que havia ali ficado por esquecimento.
Os apontamentos acabaram por desaparecer e as notas extraviaram-se, pois, um pedreiro, que trabalhava em Lisboa, levou-as para tentar cambiá-las no Banco de Portugal e não deu mais conta delas.
Exibiu um recibo, dizendo que se tratava de notas sem curso legal e já sem qualquer valor.
Ninguém mais se interessou pelo caso, não passando, hoje, de uma história que todos vão esquecendo.
terça-feira, 21 de julho de 2009
O mestre-escola
Nos meados do século passado, a figura de Professor Primário, como a de Padre e as autoridades da terra e do concelho, estavam acima dos outros mortais.
Havia respeito total, absoluto e incondicional e quando os pais iam levar os filhos, pela primeira vez, à escola, recomendavam e pediam: Senhor Professor ou, o mais vulgar, Senhora Professora, chegue-lhe, se precisar! Nunca lhe doam as mãos, pois só se perdem as que caem no chão! Faça dele um homem – ou uma mulher – que nós saberemos agradecer-lhe!
Em casa da Professora não faltava nada; era um corrupio a levar os mimos e as primícias das colheitas, passando pelos queijos, ovos e consumos do dia a dia, até ao pão, acabado de cozer.
Uma vez por mês, ia à vila, receber os seiscentos mil réis de ordenado de Regente do Posto Escolar, ou o conto e duzentos, de Professor e aproveitava para dar um jeito no cabelo, visitar uma ou outra loja de roupas e sapatos e nunca regressava à aldeia sem passar pela farmácia, onde deixava uma parte dos seus parcos proventos, em troca dos comprimidos para as dores de cabeça, flatulência, vesícula, dores reumáticas.
Para uso próprio e para dispensar aos aflitos, na aldeia.
Visitava, normalmente, o Senhor Delegado Escolar e o Senhor Vigário, com quem combinava a participação nas cerimónias religiosas e de quem recebia orientação e documentação para promover as vocações, organizar os peditórios para a Paróquia, os Seminários e as Missões. Organizava-se, também, a Cruzada e a Catequese.
Nas aldeias, a Professora passava o dia na escola; ia a casa, para tomar as refeições, ensinar a coser e bordar as raparigas casadoiras e ler uns livritos da Biblioteca.
As aulas, na Escola, ou Posto Escolar, com duas ou três dezenas de alunos, das quatro classes – iam das nove às dezoito horas – decorriam na mais rígida ordem e disciplina e, por vezes, os mais adiantados ensinavam os mais novos a fazer contas, estudar a tabuada, ou ler no livro de leituras.
No fim de cada ano, os alunos dos Postos Escolares, iam prestar provas de passagem de classe à escola mais próxima, ou fazer exame da quarta classe à sede do concelho, onde, não raras vezes, eram aprovados com distinção.
É da mais elementar justiça reconhecer o trabalho destas senhoras – havia muito poucos Regentes Escolares do sexo masculino – que ensinaram até onde tinham aprendido e desenvolveram em muitas crianças, por essas aldeias fora, hábitos de trabalho e estudo, a par de uma formação moral baseada em sólidos princípios de cidadania e amor pelo próximo, que serviram de orientação a muito boa gente.
É de lamentar que a reorganização social, que tantos benefícios trouxe, tenha enjeitado muitas dessas bases, sem acautelar o culto do civismo, do amor e respeito pelo semelhante, do valor da pessoa, no seu todo, e das instituições que a servem.
Por mim, não quero esquecer as primeiras Regentes Escolares, que tive por professoras; elas ensinaram-me muitas coisas que me tenho recusado a abandonar e continuo a seguir, como capítulos do mais belo tratado que um homem pode escrever – a vida –.
Foram elas, que me motivaram a ser Professor.
Embora tenha, mais tarde, abandonado a profissão, sempre me orgulhei de dar um carácter didáctico ao meu trabalho e nunca me esquivei a ensinar aos outros, até onde pude e soube!...
Tenho sempre presentes os meus alunos, os muitos amigos... e todos quantos se iniciaram comigo, nas artes das Vendas e das Técnicas de Marketing, em que tenho desenvolvido a minha actividade profissional.
Havia respeito total, absoluto e incondicional e quando os pais iam levar os filhos, pela primeira vez, à escola, recomendavam e pediam: Senhor Professor ou, o mais vulgar, Senhora Professora, chegue-lhe, se precisar! Nunca lhe doam as mãos, pois só se perdem as que caem no chão! Faça dele um homem – ou uma mulher – que nós saberemos agradecer-lhe!
Em casa da Professora não faltava nada; era um corrupio a levar os mimos e as primícias das colheitas, passando pelos queijos, ovos e consumos do dia a dia, até ao pão, acabado de cozer.
Uma vez por mês, ia à vila, receber os seiscentos mil réis de ordenado de Regente do Posto Escolar, ou o conto e duzentos, de Professor e aproveitava para dar um jeito no cabelo, visitar uma ou outra loja de roupas e sapatos e nunca regressava à aldeia sem passar pela farmácia, onde deixava uma parte dos seus parcos proventos, em troca dos comprimidos para as dores de cabeça, flatulência, vesícula, dores reumáticas.
Para uso próprio e para dispensar aos aflitos, na aldeia.
Visitava, normalmente, o Senhor Delegado Escolar e o Senhor Vigário, com quem combinava a participação nas cerimónias religiosas e de quem recebia orientação e documentação para promover as vocações, organizar os peditórios para a Paróquia, os Seminários e as Missões. Organizava-se, também, a Cruzada e a Catequese.
Nas aldeias, a Professora passava o dia na escola; ia a casa, para tomar as refeições, ensinar a coser e bordar as raparigas casadoiras e ler uns livritos da Biblioteca.
As aulas, na Escola, ou Posto Escolar, com duas ou três dezenas de alunos, das quatro classes – iam das nove às dezoito horas – decorriam na mais rígida ordem e disciplina e, por vezes, os mais adiantados ensinavam os mais novos a fazer contas, estudar a tabuada, ou ler no livro de leituras.
No fim de cada ano, os alunos dos Postos Escolares, iam prestar provas de passagem de classe à escola mais próxima, ou fazer exame da quarta classe à sede do concelho, onde, não raras vezes, eram aprovados com distinção.
É da mais elementar justiça reconhecer o trabalho destas senhoras – havia muito poucos Regentes Escolares do sexo masculino – que ensinaram até onde tinham aprendido e desenvolveram em muitas crianças, por essas aldeias fora, hábitos de trabalho e estudo, a par de uma formação moral baseada em sólidos princípios de cidadania e amor pelo próximo, que serviram de orientação a muito boa gente.
É de lamentar que a reorganização social, que tantos benefícios trouxe, tenha enjeitado muitas dessas bases, sem acautelar o culto do civismo, do amor e respeito pelo semelhante, do valor da pessoa, no seu todo, e das instituições que a servem.
Por mim, não quero esquecer as primeiras Regentes Escolares, que tive por professoras; elas ensinaram-me muitas coisas que me tenho recusado a abandonar e continuo a seguir, como capítulos do mais belo tratado que um homem pode escrever – a vida –.
Foram elas, que me motivaram a ser Professor.
Embora tenha, mais tarde, abandonado a profissão, sempre me orgulhei de dar um carácter didáctico ao meu trabalho e nunca me esquivei a ensinar aos outros, até onde pude e soube!...
Tenho sempre presentes os meus alunos, os muitos amigos... e todos quantos se iniciaram comigo, nas artes das Vendas e das Técnicas de Marketing, em que tenho desenvolvido a minha actividade profissional.
segunda-feira, 6 de julho de 2009
A Senhora Professora
O “Manuel do Vale” tinha uma força de mãos verdadeiramente anormal; coisa a que lançasse a fateixa, não largava mais.
Era o único homem da aldeia com tez encarniçada, tipo “viking”, com olhos claros – muito claros mesmo – e mais sardas que o habitual nos sardentos.
Na escola nunca foi brilhante; era o bombo da festa, onde a Dª Benilde descarregava as iras – e tantas elas eram: por ser solteirona e sempre mal amada, por ser feia e juntar a isso alguma falta de cuidado na aparência e na própria higiene pessoal, por viver isolada do Mundo e da Sociedade e pelos achaques que a aproximação dos quarenta anos lhe causavam.
Depois do exame o Manel cresceu e fez-se homem, mas nunca esqueceu os puxões de orelhas, as varadas quando estava no quadro preto a fazer as contas, as reguadas com que era mimado quando não acertava os problemas, ou tinha mais de três erros no ditado e as orelhadas quando não sabia as capitais dos países, ou o cognome dos nossos reis.
Um parente do Manel, que embarcara para as Africas, havia mais de vinte anos, antes, portanto, de a Dª Benilde ir para a aldeia, viria de férias e, segundo fez constar, para procurar noiva e casar-se.
O cenário, de aparência muito simples, pôs em alvoroço a cabeça do Manel, que, de si para si, ia pensando: o meu primo quer casar-se e uma das primeiras hipóteses vai ser a Professora. Eu queria muito que ele me levasse com ele, no regresso ao Congo. Será que irei conseguir esquecer tudo o que aquela bruxa me fez passar durante os cinco anos em que foi minha professora? E como será ela como minha prima e mulher do meu futuro patrão? Que tipo de sentimentos terá ela, agora, por mim?
Nos últimos dez anos – o Manel estava então com vinte e quatro –, apenas uma, ou duas vezes, falara com a Dª Benilde e continuavam bem presentes as “simpatias” com que o “mimara”, em cinco anos de escola. Mas o que lá vai, lá vai, e se não fosse ela, se calhar, nunca teria sido o homem que era! Havia de ser o que Deus quisesse, pensava o Manel!...
A notícia sobre a vinda próxima do Artur foi-se espalhando na aldeia e havia muita gente interessada no bom partido que se aproximava.
A Professora não era excepção; embora se mostrasse alheia e desinteressada, foi-se inteirando de tudo: quem era o Artur? Que idade tinha? Que namoradas tinha tido na terra, ou nas redondezas? Que pessoas podiam ter mais influência sobre ele?
Ao chegar aqui, às influências, as informações iam todas para a mãe do Manel do Vale, que fora seu aluno e pouco lhe falava. Ouviu dizer que o rapaz, já homem, pensava ir com o primo, para as Africas.
A ti Maria Albertina não tinha a mesma impressão que o filho Manel, acerca da Professora; eras um grande calaceiro e foi ela que te obrigou a estudar e te deu as bases que fizeram de ti o homem que hoje és. Se não fossem os cuidados da Sra. Professora, nem o exame tinhas feito; se te deu, nesse corpo, fez o que eu lhe pedi, não te partiu nada e só se perderam as que caíram no chão. E repetia, vezes sem conta, esta ladainha, que o Manel já sabia de cor.
Quanto ao sobrinho Artur, a melhor solução seria mesmo a Professora, pensava, secretamente a tia Maria Albertina.
Começou por espalhar, devagarinho, a ideia de que o homem, na casa dos quarenta e cinco anos quererá uma senhora educada, sem namorados conhecidos e respeitadora. E, sempre que lhe parecia que a ideia poderia chegar até ao sobrinho, ia falando na Senhora Professora.
Uma senhora, perto dos cinquenta, talvez já não dê filhos. O Artur deverá ser levado a aceitar isso, como uma vantagem. Essa ideia batia forte na cabeça da tia Maria Albertina e tinha o seu fundamento: se o seu Manel fosse com o primo e a Professora e o casal já não tivesse filhos, podia ser que…, quem sabe se viria a herdar a fortuna do primo, ou a substituí-lo nos negócios, para que ele pudesse gozar melhor a vida.
A primeira coisa a fazer era aproximar o filho da Professora, para que pudesse facilitar a vida do primo, quando ele chegasse.
Mandou o filho falar, oficialmente, sobre a vinda do primo e matava, assim, dois coelhos com uma só cajadada: aproximava o filho de uma pessoa que poderia ser decisiva na escolha que o sobrinho Artur fizesse, quanto ao rapaz a levar com ele, para África, e dava a entender à Professora que contasse com ela para facilitar as coisas, quanto às tendências do sobrinho e à sua decisão, na escolha de noiva.
Foi, assim, que o Manel subiu um dia até ao cimo do casal, à casa das oliveiras da vinha, onde habitava a senhora Professora.
Era fim de tarde e a chegada dos dois, foi quase coincidente. A Senhora acabava de descer da escola, situada uns cinquenta metros acima.
Depois de um breve cumprimento, expresso num simples olá Manuel!... Então como estás e que fazes na vida, homem?!... Não há quem te veja?!... Mas, vamos entrando...; lá dentro estamos melhor e mais à vontade!...
Obrigado, senhora Professora; estou bem e faço pela vida, que graças ao que a senhora me ensinou e me fez aprender, me vai correndo menos-mal. E seguiu atrás da senhora, que via agora com olhos diferentes dos de há dez anos.
Reparou na figura da bela mulher, que certamente agradaria ao primo Artur.
Dirigiram-se à sala de costura, onde muitos fins de tarde o Manel tinha estado, de castigo, a recitar os rios e as cidades, a conjugar os verbos e a escrever as palavras que errara no ditado, cem vezes cada uma.
Mas, isso ia longe… e, ambos estavam agora absortos por outros pensamentos:
A Professora tinha diante de si o homem que imaginara, dez anos atrás – másculo, cerrado de barba, olho muito claro, avantajado de estatura e envergonhado, como noutros tempos. Mantinha o ar exótico, mais delicioso e misterioso que bonito, mas um homem … e que homem!...
O Manel olhava a mulher, madura, de formas perfeitas, cabelos apanhados, com uma saia um pouco acima do joelho… a Senhora que sempre vira como Professora, era agora olhada como mulher.
Foi o Manel que quebrou o silêncio, dizendo: Tenho um primo, chamado Artur, que foi para o Congo, há muitos anos. Mandou dizer que virá a Portugal, rever a família, procurar noiva, casar, e escolher um parente para levar, como ajudante, nos negócios.
Nos três ou quatro meses que estará, por cá, de férias, quer resolver tudo isso. Achámos, que a Senhora gostaria de saber, pois é alguém à altura de falar com o meu primo e que poderá ajudá-lo naquilo que ele necessitar; esperamos que ele fique hospedado em nossa casa.
Pois bem, Manel, agradece a tua mãe as atenções e cuidados e diz-lhe que podem contar comigo para tudo o que eu possa fazer, para ajudar a tornar o mais agradável possível a estadia do teu primo, cá na terra e na vossa casa, como é vosso desejo.
Quanto a ti, homem, gostei muito de te ver. Não quero que te vás embora sem me prometeres que me vais dando notícias e que me vens ver, mais vezes. Dá cumprimentos a tua mãe e agradece-lhe.
O Manel saiu e foi descendo, sem pressas, o caminho que bordejava as oliveiras. A Professora, espreitando por uma frincha da janela, despia, com os olhos, o homem que se afastava, enquanto, com a imaginação, se extasiava, vendo o homem másculo, de ombros largos, cabelos um tudo-nada ruivos, olhos muito claros, barba cerrada, boca sensual, mãos fortes, mas anormalmente delicadas, para uma pessoa do campo, e....
Sem dar pelo desaparecimento do Manel, na curva do caminho, ao pé da fonte, deixou-se cair no canapé, onde passava grande parte do seu tempo e até dormitava, por vezes, antes de ir para a cama.
Foi tacteando o seu próprio corpo que se sentiu ruborizada, quando uma onda de calor, avassaladora, vinda do mais íntimo de si e parecendo que o sangue lhe fervia nas veias, a invadiu, completamente.
Nunca sentira nada assim. Porém, num ápice, todo o corpo, do mais ínfimo e íntimo, ao mais volumoso e saliente, ficava duro, alvoroçava-se, contorcia-se e, como que vindo de um vulcão, cujo epicentro ela localizava, perfeitamente, sentiu um jorro de lava, incandescente, queimar-lhe as entranhas, para, logo em seguida, lhe provocar uma calma e serenidade, certamente raras, no comum dos mortais.
Inundada por uma maravilhosa paz interior, adormeceu, profundamente. Durante os sonhos, voltou a ser menina, viu-se a entrar na igreja e a realizar sonhos que andavam já arredados dos seus projectos mais vulgares.
Quatro meses depois, na altura das vindimas, a Senhora Professora, Dª Benilde, embarcava com o marido Artur Marques Lopes, “o Brasileiro”, com destino ao Congo Belga.
Levavam muita bagagem e acompanhava-os o primo Manuel Marques Mendes, o Manel do Vale.
Havemos de encontrá-los, uns anos mais tarde, no Congo... mas isso é outra história.
Era o único homem da aldeia com tez encarniçada, tipo “viking”, com olhos claros – muito claros mesmo – e mais sardas que o habitual nos sardentos.
Na escola nunca foi brilhante; era o bombo da festa, onde a Dª Benilde descarregava as iras – e tantas elas eram: por ser solteirona e sempre mal amada, por ser feia e juntar a isso alguma falta de cuidado na aparência e na própria higiene pessoal, por viver isolada do Mundo e da Sociedade e pelos achaques que a aproximação dos quarenta anos lhe causavam.
Depois do exame o Manel cresceu e fez-se homem, mas nunca esqueceu os puxões de orelhas, as varadas quando estava no quadro preto a fazer as contas, as reguadas com que era mimado quando não acertava os problemas, ou tinha mais de três erros no ditado e as orelhadas quando não sabia as capitais dos países, ou o cognome dos nossos reis.
Um parente do Manel, que embarcara para as Africas, havia mais de vinte anos, antes, portanto, de a Dª Benilde ir para a aldeia, viria de férias e, segundo fez constar, para procurar noiva e casar-se.
O cenário, de aparência muito simples, pôs em alvoroço a cabeça do Manel, que, de si para si, ia pensando: o meu primo quer casar-se e uma das primeiras hipóteses vai ser a Professora. Eu queria muito que ele me levasse com ele, no regresso ao Congo. Será que irei conseguir esquecer tudo o que aquela bruxa me fez passar durante os cinco anos em que foi minha professora? E como será ela como minha prima e mulher do meu futuro patrão? Que tipo de sentimentos terá ela, agora, por mim?
Nos últimos dez anos – o Manel estava então com vinte e quatro –, apenas uma, ou duas vezes, falara com a Dª Benilde e continuavam bem presentes as “simpatias” com que o “mimara”, em cinco anos de escola. Mas o que lá vai, lá vai, e se não fosse ela, se calhar, nunca teria sido o homem que era! Havia de ser o que Deus quisesse, pensava o Manel!...
A notícia sobre a vinda próxima do Artur foi-se espalhando na aldeia e havia muita gente interessada no bom partido que se aproximava.
A Professora não era excepção; embora se mostrasse alheia e desinteressada, foi-se inteirando de tudo: quem era o Artur? Que idade tinha? Que namoradas tinha tido na terra, ou nas redondezas? Que pessoas podiam ter mais influência sobre ele?
Ao chegar aqui, às influências, as informações iam todas para a mãe do Manel do Vale, que fora seu aluno e pouco lhe falava. Ouviu dizer que o rapaz, já homem, pensava ir com o primo, para as Africas.
A ti Maria Albertina não tinha a mesma impressão que o filho Manel, acerca da Professora; eras um grande calaceiro e foi ela que te obrigou a estudar e te deu as bases que fizeram de ti o homem que hoje és. Se não fossem os cuidados da Sra. Professora, nem o exame tinhas feito; se te deu, nesse corpo, fez o que eu lhe pedi, não te partiu nada e só se perderam as que caíram no chão. E repetia, vezes sem conta, esta ladainha, que o Manel já sabia de cor.
Quanto ao sobrinho Artur, a melhor solução seria mesmo a Professora, pensava, secretamente a tia Maria Albertina.
Começou por espalhar, devagarinho, a ideia de que o homem, na casa dos quarenta e cinco anos quererá uma senhora educada, sem namorados conhecidos e respeitadora. E, sempre que lhe parecia que a ideia poderia chegar até ao sobrinho, ia falando na Senhora Professora.
Uma senhora, perto dos cinquenta, talvez já não dê filhos. O Artur deverá ser levado a aceitar isso, como uma vantagem. Essa ideia batia forte na cabeça da tia Maria Albertina e tinha o seu fundamento: se o seu Manel fosse com o primo e a Professora e o casal já não tivesse filhos, podia ser que…, quem sabe se viria a herdar a fortuna do primo, ou a substituí-lo nos negócios, para que ele pudesse gozar melhor a vida.
A primeira coisa a fazer era aproximar o filho da Professora, para que pudesse facilitar a vida do primo, quando ele chegasse.
Mandou o filho falar, oficialmente, sobre a vinda do primo e matava, assim, dois coelhos com uma só cajadada: aproximava o filho de uma pessoa que poderia ser decisiva na escolha que o sobrinho Artur fizesse, quanto ao rapaz a levar com ele, para África, e dava a entender à Professora que contasse com ela para facilitar as coisas, quanto às tendências do sobrinho e à sua decisão, na escolha de noiva.
Foi, assim, que o Manel subiu um dia até ao cimo do casal, à casa das oliveiras da vinha, onde habitava a senhora Professora.
Era fim de tarde e a chegada dos dois, foi quase coincidente. A Senhora acabava de descer da escola, situada uns cinquenta metros acima.
Depois de um breve cumprimento, expresso num simples olá Manuel!... Então como estás e que fazes na vida, homem?!... Não há quem te veja?!... Mas, vamos entrando...; lá dentro estamos melhor e mais à vontade!...
Obrigado, senhora Professora; estou bem e faço pela vida, que graças ao que a senhora me ensinou e me fez aprender, me vai correndo menos-mal. E seguiu atrás da senhora, que via agora com olhos diferentes dos de há dez anos.
Reparou na figura da bela mulher, que certamente agradaria ao primo Artur.
Dirigiram-se à sala de costura, onde muitos fins de tarde o Manel tinha estado, de castigo, a recitar os rios e as cidades, a conjugar os verbos e a escrever as palavras que errara no ditado, cem vezes cada uma.
Mas, isso ia longe… e, ambos estavam agora absortos por outros pensamentos:
A Professora tinha diante de si o homem que imaginara, dez anos atrás – másculo, cerrado de barba, olho muito claro, avantajado de estatura e envergonhado, como noutros tempos. Mantinha o ar exótico, mais delicioso e misterioso que bonito, mas um homem … e que homem!...
O Manel olhava a mulher, madura, de formas perfeitas, cabelos apanhados, com uma saia um pouco acima do joelho… a Senhora que sempre vira como Professora, era agora olhada como mulher.
Foi o Manel que quebrou o silêncio, dizendo: Tenho um primo, chamado Artur, que foi para o Congo, há muitos anos. Mandou dizer que virá a Portugal, rever a família, procurar noiva, casar, e escolher um parente para levar, como ajudante, nos negócios.
Nos três ou quatro meses que estará, por cá, de férias, quer resolver tudo isso. Achámos, que a Senhora gostaria de saber, pois é alguém à altura de falar com o meu primo e que poderá ajudá-lo naquilo que ele necessitar; esperamos que ele fique hospedado em nossa casa.
Pois bem, Manel, agradece a tua mãe as atenções e cuidados e diz-lhe que podem contar comigo para tudo o que eu possa fazer, para ajudar a tornar o mais agradável possível a estadia do teu primo, cá na terra e na vossa casa, como é vosso desejo.
Quanto a ti, homem, gostei muito de te ver. Não quero que te vás embora sem me prometeres que me vais dando notícias e que me vens ver, mais vezes. Dá cumprimentos a tua mãe e agradece-lhe.
O Manel saiu e foi descendo, sem pressas, o caminho que bordejava as oliveiras. A Professora, espreitando por uma frincha da janela, despia, com os olhos, o homem que se afastava, enquanto, com a imaginação, se extasiava, vendo o homem másculo, de ombros largos, cabelos um tudo-nada ruivos, olhos muito claros, barba cerrada, boca sensual, mãos fortes, mas anormalmente delicadas, para uma pessoa do campo, e....
Sem dar pelo desaparecimento do Manel, na curva do caminho, ao pé da fonte, deixou-se cair no canapé, onde passava grande parte do seu tempo e até dormitava, por vezes, antes de ir para a cama.
Foi tacteando o seu próprio corpo que se sentiu ruborizada, quando uma onda de calor, avassaladora, vinda do mais íntimo de si e parecendo que o sangue lhe fervia nas veias, a invadiu, completamente.
Nunca sentira nada assim. Porém, num ápice, todo o corpo, do mais ínfimo e íntimo, ao mais volumoso e saliente, ficava duro, alvoroçava-se, contorcia-se e, como que vindo de um vulcão, cujo epicentro ela localizava, perfeitamente, sentiu um jorro de lava, incandescente, queimar-lhe as entranhas, para, logo em seguida, lhe provocar uma calma e serenidade, certamente raras, no comum dos mortais.
Inundada por uma maravilhosa paz interior, adormeceu, profundamente. Durante os sonhos, voltou a ser menina, viu-se a entrar na igreja e a realizar sonhos que andavam já arredados dos seus projectos mais vulgares.
Quatro meses depois, na altura das vindimas, a Senhora Professora, Dª Benilde, embarcava com o marido Artur Marques Lopes, “o Brasileiro”, com destino ao Congo Belga.
Levavam muita bagagem e acompanhava-os o primo Manuel Marques Mendes, o Manel do Vale.
Havemos de encontrá-los, uns anos mais tarde, no Congo... mas isso é outra história.
sábado, 27 de junho de 2009
O pobre da cabaça
Passava todos os meses, com o alforge ao ombro, um pau na mão direita e uma cabaça atada, com um nastro muito surrado, ao cordão que lhe servia de cinto e acertava as calças à cintura, muito subida.
Não me lembro de vê-lo calçado e as calças, curtas, deixavam os pés, tornozelos e parte das canelas a descoberto.
A jaqueta, desabotoada, destapava a camisa, bastante mais asseada que a da maioria dos pedintes que transitavam pela terra.
Juntando este asseio, acima da média dos mendigos, ao cabelo curto e lavado e à barba, semanalmente cortada, estávamos na presença de alguém que destoava no seu meio.
As aldeias mais a poente do concelho de Mação, todo o norte das terras de Alcaravela e o termo de Vila de Rei, até ao Codes, eram percorridos, regularmente, pelo Ti’ Tonho, vulgarmente chamado, nos locais em que esmolava, por pobre da cabaça.
Era estimado por uns e ignorado por outros; porém o seu modo de pedir esmola não deixava ninguém indiferente.
Falava mansamente e sabia pôr sentimento no que dizia: invocava, invariavelmente, “as alminhas de quem lá tem”, “para desconto dos seus e nossos pecados”, e, para terminar, um Pai Nosso…
Com estes processos, repetidos anos a fio, era, de certeza, quem arrecadava as melhores esmolas, não se ficando pelo naco de pão, mão cheia de batatas, bocadito de toucinho, ou peça de fruta e passas de figo; recebia alguns enchidos, umas pingas de azeite, para a cabaça, e alguns cobres – desde um a cinco tostões.
Comia, todos os dias, almoço, jantar e ceia, das panelas de determinadas casas, junto das malhadas onde pernoitava.
No alforge, estraçalhado sobre o ombro direito, guardava os víveres que ia recebendo.
Como não cozinhava, quase tudo o que ia recebendo era reduzido a dinheiro, nas tabernas das terras.
Ao lado do bornal, numa pequena carteira de pele preta, muito polida, guardava um ou dois livros e uns papéis, que relia regularmente e de cuja leitura nada referia, mau grado os sinais, evidentes, de satisfação.
Corriam histórias, ditas em surdina, de boca em boca, sobre o pobre da cabaça, a sua vida afectiva, suas origens, percurso social e tudo acabava no conteúdo, desconhecido, dos papéis que guardava no bornal.
Desde professor, caído em desgraça devido à paixão por uma aluna, a juiz expulso por erro grave num julgamento, passando por foragido e refractário ao serviço militar e ex-membro da legião estrangeira, nas guerras de Espanha, tudo era ligado à personagem.
Porém, uma coisa era certa: não havia quem lhe passasse o pé no jogo do pau. Todos os que se lhe tinham oposto acabaram cobertos de bordoadas e não voltaram a desafiá-lo.
Apareceu, um dia, outro pedinte, na taberna do Casal Velho, que, ao encarar o pobre da cabaça, ficou como que fulminado.
Olharam-se os dois e, contracenando com a calma e serenidade do Ti’ Tonho, o desconhecido entrou em transe e tremia, como varas verdes, segundo a expressão de quem assistiu.
Após alguns momentos em silêncio o pobre da cabaça continuou sereno, fitando o homem que tinha na frente; em contrapartida, o outro pedinte parecia querer dizer qualquer coisa sem poder, sucediam-se-lhe, cada vez com mais frequência, os nós na garganta e as convulsões sacudiam-lhe todo o corpo.
Pouco tempo depois, caiu de joelhos e ficou prostrado no sobrado da taberna; estava morto.
Disse ainda quem viu, que o pobre da cabaça, sereno, fleumático e calmo, ajoelhou junto do cadáver, fechou-lhe os olhos convulsionados e esbugalhados, levantou os olhos ao céu e, sem dizer palavra, pareceu fazer uma oração fúnebre, findo o que se retirou para a malhada, despedindo-se dos presentes, com as seguintes palavras: a justiça e misericórdia de Deus são implacáveis e insondáveis – grande Juiz que para castigar não precisa pau, nem pedra.
Questionado por populares, autoridades e outros pedintes, o pobre da cabaça não acrescentou nada. Apenas se remeteu ao silêncio sobre aquele estranho caso.
Todas as testemunhas afirmaram que ninguém tocou no homem, ou lhe disse qualquer coisa.
O cadáver, considerado desconhecido, foi mandado enterrar pela Junta de Freguesia, no cemitério de Alcaravela.
E o mistério… virou lenda.
Não me lembro de vê-lo calçado e as calças, curtas, deixavam os pés, tornozelos e parte das canelas a descoberto.
A jaqueta, desabotoada, destapava a camisa, bastante mais asseada que a da maioria dos pedintes que transitavam pela terra.
Juntando este asseio, acima da média dos mendigos, ao cabelo curto e lavado e à barba, semanalmente cortada, estávamos na presença de alguém que destoava no seu meio.
As aldeias mais a poente do concelho de Mação, todo o norte das terras de Alcaravela e o termo de Vila de Rei, até ao Codes, eram percorridos, regularmente, pelo Ti’ Tonho, vulgarmente chamado, nos locais em que esmolava, por pobre da cabaça.
Era estimado por uns e ignorado por outros; porém o seu modo de pedir esmola não deixava ninguém indiferente.
Falava mansamente e sabia pôr sentimento no que dizia: invocava, invariavelmente, “as alminhas de quem lá tem”, “para desconto dos seus e nossos pecados”, e, para terminar, um Pai Nosso…
Com estes processos, repetidos anos a fio, era, de certeza, quem arrecadava as melhores esmolas, não se ficando pelo naco de pão, mão cheia de batatas, bocadito de toucinho, ou peça de fruta e passas de figo; recebia alguns enchidos, umas pingas de azeite, para a cabaça, e alguns cobres – desde um a cinco tostões.
Comia, todos os dias, almoço, jantar e ceia, das panelas de determinadas casas, junto das malhadas onde pernoitava.
No alforge, estraçalhado sobre o ombro direito, guardava os víveres que ia recebendo.
Como não cozinhava, quase tudo o que ia recebendo era reduzido a dinheiro, nas tabernas das terras.
Ao lado do bornal, numa pequena carteira de pele preta, muito polida, guardava um ou dois livros e uns papéis, que relia regularmente e de cuja leitura nada referia, mau grado os sinais, evidentes, de satisfação.
Corriam histórias, ditas em surdina, de boca em boca, sobre o pobre da cabaça, a sua vida afectiva, suas origens, percurso social e tudo acabava no conteúdo, desconhecido, dos papéis que guardava no bornal.
Desde professor, caído em desgraça devido à paixão por uma aluna, a juiz expulso por erro grave num julgamento, passando por foragido e refractário ao serviço militar e ex-membro da legião estrangeira, nas guerras de Espanha, tudo era ligado à personagem.
Porém, uma coisa era certa: não havia quem lhe passasse o pé no jogo do pau. Todos os que se lhe tinham oposto acabaram cobertos de bordoadas e não voltaram a desafiá-lo.
Apareceu, um dia, outro pedinte, na taberna do Casal Velho, que, ao encarar o pobre da cabaça, ficou como que fulminado.
Olharam-se os dois e, contracenando com a calma e serenidade do Ti’ Tonho, o desconhecido entrou em transe e tremia, como varas verdes, segundo a expressão de quem assistiu.
Após alguns momentos em silêncio o pobre da cabaça continuou sereno, fitando o homem que tinha na frente; em contrapartida, o outro pedinte parecia querer dizer qualquer coisa sem poder, sucediam-se-lhe, cada vez com mais frequência, os nós na garganta e as convulsões sacudiam-lhe todo o corpo.
Pouco tempo depois, caiu de joelhos e ficou prostrado no sobrado da taberna; estava morto.
Disse ainda quem viu, que o pobre da cabaça, sereno, fleumático e calmo, ajoelhou junto do cadáver, fechou-lhe os olhos convulsionados e esbugalhados, levantou os olhos ao céu e, sem dizer palavra, pareceu fazer uma oração fúnebre, findo o que se retirou para a malhada, despedindo-se dos presentes, com as seguintes palavras: a justiça e misericórdia de Deus são implacáveis e insondáveis – grande Juiz que para castigar não precisa pau, nem pedra.
Questionado por populares, autoridades e outros pedintes, o pobre da cabaça não acrescentou nada. Apenas se remeteu ao silêncio sobre aquele estranho caso.
Todas as testemunhas afirmaram que ninguém tocou no homem, ou lhe disse qualquer coisa.
O cadáver, considerado desconhecido, foi mandado enterrar pela Junta de Freguesia, no cemitério de Alcaravela.
E o mistério… virou lenda.
terça-feira, 16 de junho de 2009
O penedo das Taliscas
O penedo das Taliscas, ou penedo rachado, tinha fama de tudo e proveito de nada.
Dominava o alto da Ladeira do Brejo e era formado por um aglomerado de grandes pedras que, se um dia tivessem sido objecto de estudo aprofundado, teriam, pela certa, sido sepultura de remotos antepassados.
E, com um pouco mais de boa vontade, ter-se-iam feito escavações para descobrir os fundamentos de um castro, encimando o vale exuberante e pródigo de verduras e águas potáveis…
Mas o que era, de facto, era um covil de lobos e raposas, no tempo em que uns e outras habitaram a região. Depois, com as desarborizações, as queimas e o retirar de pedras, nem coelhos, ou lebres, por lá andariam. Coisas dos tempos!...
Uns cem metros abaixo do penedo, já perto da ribeira, passava a rodeira, diariamente seguida pelo moleiro, quando se dirigia para a azenha do Vale do Corisco e, em sentido oposto, quando, já sobre a manhã, com os taleigos cheios de farinha, em vez de grão, subia, de regresso ao povoado, até às casas dos fregueses.
Na azenha não se acabava a aguardente, na cabaça, que levava um pouco mais de litro e meio e era comprada como tal, na voz do taberneiro que deixava sempre uma boca, cada vez maior, segunda queixa do moleiro.
Depois, de golo em golo, em menos de uma semana, ia-se a aguardente da cabaça e lá voltava o Ti’Manel a trazê-la, para fazer a recarga e voltar com ela para a azenha.
Não raras vezes, o excesso de pinga, trazia ideias brilhantes ao cérebro do Ti’Manel.
Iluminações essas que depois divulgava, na taberna, quando outras fontes, à base de vinho, espevitavam a criatividade e soltavam a língua do moleiro.
A maior parte já nem ligava ao que o moleiro ia contando.
Então, contava ele, que ainda há uns dias, aquilo, lá em riba, no penedo das Taliscas, foi o diabo: havia lume por todo o lado, berros e gritarias, pedras a rolar umas sobre as outras e, certamente, o Demónio que comandava toda aquela algazarra, largava pachouvadas pela boca fora, de fazer corar o menos santo dos ouvintes.
Até o macho, ajoujado sob a carga, parou, para presenciar aquelas cenas, enquanto o dono aproveitava uma barreirita do caminho, para se aliviar, lançando fora, uma espécie de revolta que lhe ia no estômago.
De repente acalmou-se tudo e só já deu pelo carriço a comer qualquer coisa aos seus pés.
Olhem, foi encolher os ombros, dar uma cacheirada no macho e arrancar ladeira a cima.
Aí, entrou o Ti’Diogo, que havia muitos anos, passava com regularidade na Terra, esmolando e chegando mesmo a dar umas jornas a quem lhe pedisse, antes de seguir o seu caminho para a aldeia seguinte.
Atrás dum copo, atirou ao moleiro:
Mas olhe cá, oh! Ti’Manel, não teria bebido umas goladas a mais, para esvaziar a cabacita e trazê-la para encher?
Não terá sido no dia da trovoada que esteve brava ali para os lados de Alcaravela e os relâmpagos, por trás do penedo, pareciam incendiar tudo?
Não terá mandado parar o macho, para se aliviar e lançar fora?
E o carriço, com a barriga a dar horas, não terá aproveitado o que o dono deitou fora, para comer qualquer coisa?
E, até podia esconder-se, lá no penedo alguma raposa, ou gato bravo que, no contra luar lançassem brilho dos olhos e lhe dessem, a vomeçê, visões?
Eh! Diabos!... O Ti’Diogo é capaz de ter toda a razão, disse o moleiro.
Pensando bem, só vejo essas coisas nos dias em que me distraio e abuso da cabacita.
É capaz de estar certo, homem de Deus, mas olhe que nunca ninguém me tinha explicado essas coisas, com tanta clareza.
E, fazia-me espécie por que raio o macho e o cão paravam sempre ali naquele sítio. Era afinal onde eu mandava, para fazermos um pequeno descanso e retomar forças para o resto do caminho.
Oh! Manel, deita lá mais uns copos, que o raio do homem bem os merece. Foi até hoje a única pessoa capaz de me abrir os olhos e explicar-me tudo.
E, não se esqueça, Ti’Diogo, de passar lá pela azenha, quando andar por aquelas bandas.
Poderemos subir lá a riba, ao penedo e, pela certa, junto a algum covil de coelhos, encontraremos as caganitas e pouco mais.
Apareça, homem!... Lá o espero!.....
Dominava o alto da Ladeira do Brejo e era formado por um aglomerado de grandes pedras que, se um dia tivessem sido objecto de estudo aprofundado, teriam, pela certa, sido sepultura de remotos antepassados.
E, com um pouco mais de boa vontade, ter-se-iam feito escavações para descobrir os fundamentos de um castro, encimando o vale exuberante e pródigo de verduras e águas potáveis…
Mas o que era, de facto, era um covil de lobos e raposas, no tempo em que uns e outras habitaram a região. Depois, com as desarborizações, as queimas e o retirar de pedras, nem coelhos, ou lebres, por lá andariam. Coisas dos tempos!...
Uns cem metros abaixo do penedo, já perto da ribeira, passava a rodeira, diariamente seguida pelo moleiro, quando se dirigia para a azenha do Vale do Corisco e, em sentido oposto, quando, já sobre a manhã, com os taleigos cheios de farinha, em vez de grão, subia, de regresso ao povoado, até às casas dos fregueses.
Na azenha não se acabava a aguardente, na cabaça, que levava um pouco mais de litro e meio e era comprada como tal, na voz do taberneiro que deixava sempre uma boca, cada vez maior, segunda queixa do moleiro.
Depois, de golo em golo, em menos de uma semana, ia-se a aguardente da cabaça e lá voltava o Ti’Manel a trazê-la, para fazer a recarga e voltar com ela para a azenha.
Não raras vezes, o excesso de pinga, trazia ideias brilhantes ao cérebro do Ti’Manel.
Iluminações essas que depois divulgava, na taberna, quando outras fontes, à base de vinho, espevitavam a criatividade e soltavam a língua do moleiro.
A maior parte já nem ligava ao que o moleiro ia contando.
Então, contava ele, que ainda há uns dias, aquilo, lá em riba, no penedo das Taliscas, foi o diabo: havia lume por todo o lado, berros e gritarias, pedras a rolar umas sobre as outras e, certamente, o Demónio que comandava toda aquela algazarra, largava pachouvadas pela boca fora, de fazer corar o menos santo dos ouvintes.
Até o macho, ajoujado sob a carga, parou, para presenciar aquelas cenas, enquanto o dono aproveitava uma barreirita do caminho, para se aliviar, lançando fora, uma espécie de revolta que lhe ia no estômago.
De repente acalmou-se tudo e só já deu pelo carriço a comer qualquer coisa aos seus pés.
Olhem, foi encolher os ombros, dar uma cacheirada no macho e arrancar ladeira a cima.
Aí, entrou o Ti’Diogo, que havia muitos anos, passava com regularidade na Terra, esmolando e chegando mesmo a dar umas jornas a quem lhe pedisse, antes de seguir o seu caminho para a aldeia seguinte.
Atrás dum copo, atirou ao moleiro:
Mas olhe cá, oh! Ti’Manel, não teria bebido umas goladas a mais, para esvaziar a cabacita e trazê-la para encher?
Não terá sido no dia da trovoada que esteve brava ali para os lados de Alcaravela e os relâmpagos, por trás do penedo, pareciam incendiar tudo?
Não terá mandado parar o macho, para se aliviar e lançar fora?
E o carriço, com a barriga a dar horas, não terá aproveitado o que o dono deitou fora, para comer qualquer coisa?
E, até podia esconder-se, lá no penedo alguma raposa, ou gato bravo que, no contra luar lançassem brilho dos olhos e lhe dessem, a vomeçê, visões?
Eh! Diabos!... O Ti’Diogo é capaz de ter toda a razão, disse o moleiro.
Pensando bem, só vejo essas coisas nos dias em que me distraio e abuso da cabacita.
É capaz de estar certo, homem de Deus, mas olhe que nunca ninguém me tinha explicado essas coisas, com tanta clareza.
E, fazia-me espécie por que raio o macho e o cão paravam sempre ali naquele sítio. Era afinal onde eu mandava, para fazermos um pequeno descanso e retomar forças para o resto do caminho.
Oh! Manel, deita lá mais uns copos, que o raio do homem bem os merece. Foi até hoje a única pessoa capaz de me abrir os olhos e explicar-me tudo.
E, não se esqueça, Ti’Diogo, de passar lá pela azenha, quando andar por aquelas bandas.
Poderemos subir lá a riba, ao penedo e, pela certa, junto a algum covil de coelhos, encontraremos as caganitas e pouco mais.
Apareça, homem!... Lá o espero!.....
quinta-feira, 4 de junho de 2009
O Ti’Artur
Ao tempo, o ti’Artur era homem de trinta e poucos anos e vivia no Carvoeiro, onde sempre viveu, até que, prematuramente, traído pelo fígado, se foi embora.
Casou com a ti'Conceição, que namorou e conseguiu trazer dos lados de Proença, duma aldeia chamada Galisteu.
A regente escolar, deixou tudo para se dedicar ao marido e filhos, que começaram a surgir logo após o casamento.
Primeiro uma menina, a seguir o Manelito, que ainda estou a ver, muito ranhoso e choroso, atrás da mãe, que se desdobrava a tratar dele e a aviar os fregueses da loja, nos baixos da casa.
Homem de sete ofícios e amigo de toda a gente, podia amedrontar quem o não conhecesse.
Estava farto de perseguições de polícias e fiscais, que seguiam de perto o contrabando, em que se ocupava o ti’Artur.
Por trás de um imponente bigode, escondia-se um coração de enorme grandeza. No primeiro o ti’Artur tinha muito orgulho, no segundo, como aliás no resto do corpo, nem pensava.
Com o seu ar de “ciganão”, negociava em tudo. Não escondia de ninguém a sua atracção por tudo que cheirasse a risco e a aventura. Tinha enorme prazer em vender “à socapa” cortes de bombazina, garrafas de Domecq, perfumes Tabu e cartas espanholas. Também nunca faltavam caramelos de “nuestros hermanos”.
Era o taxista da terra e nunca recusava um serviço, salvo se estivesse ausente, ou tivesse abusado da bebida e já se encontrasse no seu “estado normal”. Tinha respeito pelos clientes – bêbedo, não conduzia o táxi -, mas nunca se coibia de andar de mota.
A “Triumph” era um dos seus encantos. Era uma das coisas que mais estimava. Fazia gala de percorrer a estrada, desde o Vale de Santiago até à Sanguinheira, quase todos os fins de tarde, com escape quase livre, camisa aberta e satisfação estampada no rosto.
Toda a gente abria caminho, à mota do Artur.
Nas várias férias que passei no Carvoeiro, tive o privilégio de ser mais um dos amigos do ti’Artur, como eu carinhosamente lhe chamava; ao que ele retribuía, apresentando-me como o “sobrinho Zeca”.
Demos muitos passeios, na mota, e nunca tivemos percalços, de maior. Com companhia, era cauteloso; para além de ser um excelente condutor.
A casa do velho Cavaco, onde eu ficava aboletado, era próxima da loja e um pouco ao lado da estação dos correios, onde a Zita – hóspede da casa do ti’Artur - era encarregada. O meu tempo dividia-se, entre a loja e os correios.
A respeito dos dois pólos de atracção dos meus dias, o velho Cavaco, que ganhara a vida de terra em terra, como capador, tinha as suas prosas e dava as suas recomendações:
Vais para casa do Artur namorar a filha do “Zaranza da Feteira”; é das coisas mais bonitas que por aí se encontram, mas tanto quanto sei, é dois ou três anos mais velha e sabe muito mais que tu - todo o cuidado é pouco!...
O Artur é um homem bom, muito habilidoso nos negócios, mas com a pinga, perde-se!...Isso é mau, além de que perde o respeito por si próprio e até pelos que lhe são mais chegados: mulher e filhos.
Vai com ele para onde quiseres; és bem formado e estou seguro que nada de mal te poderá acontecer. Porém, não andes com ele bêbedo em cima daquela mota e evita pegar em qualquer coisa de menos legal, que tenha em casa.
Sempre fez gala de brincar com os guardas e os fiscais, mas há-de queimar-se um dia – e nessa altura arrastará alguém -.
Na altura pareceram-me duros e até injustos, os conselhos do Ti’Cavaco; todavia, à distância dos anos e dos factos, é com o maior carinho e gratidão que relembro cada palavra, de sabedoria, dum velho amigo.
Nunca me arrependi de ser amigo do Ti’Artur e das muitas horas de prosa que tive com a Maria Luísa, dos correios – a Zita -, mas nada posso criticar nas recomendações do meu velho hospedeiro.
Nos meses de Agosto, o Carvoeiro era um autêntico entreposto das mais variadas gentes, vindas de todos os pontos do mundo: do Brasil, Venezuela, América, África do Sul, Congo Belga, colónias e países da Europa.
Com enorme gosto e imensa curiosidade, escutava as histórias de cada um – aventuras e desventuras, sucessos e azares, verdades e mentiras-.
O ti’Artur reparou no interesse e sofreguidão com que eu escutava e perguntava tudo o que dissesse respeito ao longínquo, as considerações que fazia, baseado nos estudos da Geografia e a maneira como aguentava conversas com quem eu nunca vira, sobre ambientes onde nunca estivera.
Um dia convidou-me para uma pescaria, nuns pegos da ribeira do Aziral, no termo de Envendos, no limite do concelho de Proença.
Iríamos de mota até à Venda Nova e dali em diante, seguiríamos, a corta mato, até à ribeira. Saíamos ao romper da manhã e íamos encontrar o resto do grupo, ao nascer do sol.
Conhecia apenas o ti’Artur; fiquei a conhecer umas trinta e tantas pessoas, que faziam a sua vida em doze países diferentes.
Devo ter feito milhares de perguntas, posso ter sido muito maçador, não cheguei a lançar o anzol à água, mas comi muito peixe frito, grelhado e em caldeirada.
Ao anoitecer, voltámos até junto da mota e, quando chegámos ao Carvoeiro, o ti’Artur pôs-se na minha frente, e disse-me: Zeca, vê que hoje, ao contrário do habitual, não estou bêbedo.
Queria, melhor, fazia todo o empenho em arranjar uma coisa que lhe causasse o maior prazer. Sei que gosta de convívios, como o de hoje, e fiquei encantado com a maneira como se comportou no meio de tanta gente, de tão diferentes meios e com tantas coisas difíceis de aturar.
Agora quero ir consigo, junto do velho Cavaco, dar-lhe nota da maneira como o Zeca se tornou na atracção do convívio, o que muito me honrou; para além de poder mostrar-lhe que não estou sempre bêbedo.
Depois dessas férias, abracei o ti’Artur três ou quatro vezes; normalmente fazíamo-lo em silêncio e com grande cumplicidade.
Tive um choque enorme, quando soube que foi traído pelo fígado, embora não fosse, para mim, grande surpresa.
Depois da morte do ti’Artur, nunca mais senti interesse em voltar ao Carvoeiro.
Até sempre, velho amigo.
Casou com a ti'Conceição, que namorou e conseguiu trazer dos lados de Proença, duma aldeia chamada Galisteu.
A regente escolar, deixou tudo para se dedicar ao marido e filhos, que começaram a surgir logo após o casamento.
Primeiro uma menina, a seguir o Manelito, que ainda estou a ver, muito ranhoso e choroso, atrás da mãe, que se desdobrava a tratar dele e a aviar os fregueses da loja, nos baixos da casa.
Homem de sete ofícios e amigo de toda a gente, podia amedrontar quem o não conhecesse.
Estava farto de perseguições de polícias e fiscais, que seguiam de perto o contrabando, em que se ocupava o ti’Artur.
Por trás de um imponente bigode, escondia-se um coração de enorme grandeza. No primeiro o ti’Artur tinha muito orgulho, no segundo, como aliás no resto do corpo, nem pensava.
Com o seu ar de “ciganão”, negociava em tudo. Não escondia de ninguém a sua atracção por tudo que cheirasse a risco e a aventura. Tinha enorme prazer em vender “à socapa” cortes de bombazina, garrafas de Domecq, perfumes Tabu e cartas espanholas. Também nunca faltavam caramelos de “nuestros hermanos”.
Era o taxista da terra e nunca recusava um serviço, salvo se estivesse ausente, ou tivesse abusado da bebida e já se encontrasse no seu “estado normal”. Tinha respeito pelos clientes – bêbedo, não conduzia o táxi -, mas nunca se coibia de andar de mota.
A “Triumph” era um dos seus encantos. Era uma das coisas que mais estimava. Fazia gala de percorrer a estrada, desde o Vale de Santiago até à Sanguinheira, quase todos os fins de tarde, com escape quase livre, camisa aberta e satisfação estampada no rosto.
Toda a gente abria caminho, à mota do Artur.
Nas várias férias que passei no Carvoeiro, tive o privilégio de ser mais um dos amigos do ti’Artur, como eu carinhosamente lhe chamava; ao que ele retribuía, apresentando-me como o “sobrinho Zeca”.
Demos muitos passeios, na mota, e nunca tivemos percalços, de maior. Com companhia, era cauteloso; para além de ser um excelente condutor.
A casa do velho Cavaco, onde eu ficava aboletado, era próxima da loja e um pouco ao lado da estação dos correios, onde a Zita – hóspede da casa do ti’Artur - era encarregada. O meu tempo dividia-se, entre a loja e os correios.
A respeito dos dois pólos de atracção dos meus dias, o velho Cavaco, que ganhara a vida de terra em terra, como capador, tinha as suas prosas e dava as suas recomendações:
Vais para casa do Artur namorar a filha do “Zaranza da Feteira”; é das coisas mais bonitas que por aí se encontram, mas tanto quanto sei, é dois ou três anos mais velha e sabe muito mais que tu - todo o cuidado é pouco!...
O Artur é um homem bom, muito habilidoso nos negócios, mas com a pinga, perde-se!...Isso é mau, além de que perde o respeito por si próprio e até pelos que lhe são mais chegados: mulher e filhos.
Vai com ele para onde quiseres; és bem formado e estou seguro que nada de mal te poderá acontecer. Porém, não andes com ele bêbedo em cima daquela mota e evita pegar em qualquer coisa de menos legal, que tenha em casa.
Sempre fez gala de brincar com os guardas e os fiscais, mas há-de queimar-se um dia – e nessa altura arrastará alguém -.
Na altura pareceram-me duros e até injustos, os conselhos do Ti’Cavaco; todavia, à distância dos anos e dos factos, é com o maior carinho e gratidão que relembro cada palavra, de sabedoria, dum velho amigo.
Nunca me arrependi de ser amigo do Ti’Artur e das muitas horas de prosa que tive com a Maria Luísa, dos correios – a Zita -, mas nada posso criticar nas recomendações do meu velho hospedeiro.
Nos meses de Agosto, o Carvoeiro era um autêntico entreposto das mais variadas gentes, vindas de todos os pontos do mundo: do Brasil, Venezuela, América, África do Sul, Congo Belga, colónias e países da Europa.
Com enorme gosto e imensa curiosidade, escutava as histórias de cada um – aventuras e desventuras, sucessos e azares, verdades e mentiras-.
O ti’Artur reparou no interesse e sofreguidão com que eu escutava e perguntava tudo o que dissesse respeito ao longínquo, as considerações que fazia, baseado nos estudos da Geografia e a maneira como aguentava conversas com quem eu nunca vira, sobre ambientes onde nunca estivera.
Um dia convidou-me para uma pescaria, nuns pegos da ribeira do Aziral, no termo de Envendos, no limite do concelho de Proença.
Iríamos de mota até à Venda Nova e dali em diante, seguiríamos, a corta mato, até à ribeira. Saíamos ao romper da manhã e íamos encontrar o resto do grupo, ao nascer do sol.
Conhecia apenas o ti’Artur; fiquei a conhecer umas trinta e tantas pessoas, que faziam a sua vida em doze países diferentes.
Devo ter feito milhares de perguntas, posso ter sido muito maçador, não cheguei a lançar o anzol à água, mas comi muito peixe frito, grelhado e em caldeirada.
Ao anoitecer, voltámos até junto da mota e, quando chegámos ao Carvoeiro, o ti’Artur pôs-se na minha frente, e disse-me: Zeca, vê que hoje, ao contrário do habitual, não estou bêbedo.
Queria, melhor, fazia todo o empenho em arranjar uma coisa que lhe causasse o maior prazer. Sei que gosta de convívios, como o de hoje, e fiquei encantado com a maneira como se comportou no meio de tanta gente, de tão diferentes meios e com tantas coisas difíceis de aturar.
Agora quero ir consigo, junto do velho Cavaco, dar-lhe nota da maneira como o Zeca se tornou na atracção do convívio, o que muito me honrou; para além de poder mostrar-lhe que não estou sempre bêbedo.
Depois dessas férias, abracei o ti’Artur três ou quatro vezes; normalmente fazíamo-lo em silêncio e com grande cumplicidade.
Tive um choque enorme, quando soube que foi traído pelo fígado, embora não fosse, para mim, grande surpresa.
Depois da morte do ti’Artur, nunca mais senti interesse em voltar ao Carvoeiro.
Até sempre, velho amigo.
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