quarta-feira, 16 de setembro de 2009

A azenha do Ti Lindo

Danado de ano em que tudo correu mal, cá em casa.

Com estas palavras de desalento despedia-se o compadre Lindo do Tio André que viera assistir e ajudar na matança e estava de partida, com a patroa, os dois filhos e a nora – a filha mais velha do ti Lindo que casara, havia dois anos, com o filho mais moço do moleiro André, nado e criado no Pisão Fundeiro e muito bem afreguesado ali na Serra –.

Queixava-se o Ti Lindo:

O ano começou com aquele tombo do carro dos bois em que o cabano acabou por me partir um corno e ainda andar uns meses com um aleijão na perna esquerda, de trás, de jeito que o outro tinha praticamente de puxar sozinho.

Pouco trabalhámos na primeira metade do ano.

Depois a cabrita mais nova não tomou barriga e sempre foram menos dois chibitos, que a malvada nunca deu menos.

A praga deu nas macieiras do vale de Incenso e foi uma guerra para conseguir avisar os fregueses habituais que as árvores não tinham dado nada e não podia levar as encomendas.

O maldito do pulgão não deixou escapar uma couvinha que fosse, lá no canteirito que sempre me rendia uns centos de mil réis nas praças de Mação e do Sardoal.

As videiras nem deram para bebermos na ceifa e na matança; a safra da azeitona está feita, como se pode ver: nem vai chegar para a apanha.

O porquito, a que veio ajudar, é o que resta dos três que todos os anos costumamos matar.

Mas, compadre, que tudo seja em desconto dos nossos pecados e, se Deus quiser, para o ano será melhor. Nunca podemos desanimar e temos de aceitar o que o destino nos dá, pois que se há-de fazer?!...

O moleiro, tomando habilmente a palavra, rematou:

É verdade, senhor compadre, que é uma dor de alma carregar para aqui tantos taleigos de farinha para os três porquitos – com sua licença – e as malvadas das febres levarem quase tudo.

Deixe lá, graças a Deus estamos todos bem de saúde e aquele negócio de que falámos ontem, há-de correr bem e virá dar uma boa ajuda ao arranjo da sua casa que, com todos esses contratempos, ainda dá e vende aos olhos de quem a inveja.

E agora, com vossa licença, vamos andando que já não chegamos a casa antes de sol-posto e há animais a tratar, águas a tapar, engenhos a ajeitar, que amanhã é outro dia, se Deus quiser. Dê cá um abraço e muito bem hajam os compadres que tão bem nos souberam e quiseram receber.

Fiquem com Deus, compadres.

Aquelas últimas palavras do moleiro acabaram por dar um alento novo ao Ti Lindo.

Foi dali pensar os animais, avisar o Manuel do Vale e o Courela que no dia seguinte continuava a surriba nos Brejos, passou pela taberna para saber as últimas e sentou-se à mesa, junto da lareira, para cear com a mulher – Ti Maria das Dores –.

Comeram os restos da couvada do jantar e no fim uma morcela de assar, bem puxada de cominhos e apontada de sal e quando o Ti Lindo se sentou à lareira, depois da reza habitual, chegaram as duas comadres que vinham ajudar no tratamento das carnes para os enchidos.

As três mulheres acenderam uma candeia de azeite e dirigiram-se, pela porta dos fundos, à despensa anexa, onde se tratavam os assuntos referentes a carnes e enchidos da matança.

O Ti Lindo, com a cabeça a pender, continuou a pensar no segredo que partilhara com o compadre moleiro de quem conseguira obter todos os pormenores que lhe seriam muito úteis na concretização da tarefa que havia muito tempo preparava.

Soube dos passos a dar junto da Senhora Câmara, dos serviços da hidráulica, dos favores a conseguir junto do guarda-rios e tomou até orientações da construção e dos apetrechos necessários à montagem da azenha, no cimo da horta da Renda.

Pelas suas contas, com uns vinte contos de réis preparava tudo e em cada ano, só para os animais, haveria de moer para cima de trezentos alqueires de milho e centeio.

Com maquia de um em dez que fosse, a azenha ganhava trinta ou mais alqueires de pão em cada ano. E se aparecesse alguém que tivesse pão para ocupar os tempos mortos, podia arranjar-se mais cinco ou dez alqueires de maquias.

Onde diabo iria arranjar-se uma courela, por vinte contos, que, sem trabalho, desse trinta ou quarenta alqueires de pão?!..

Quando a mulher o abanou, despertou, levantou-se e disse-lhe:

Acabamos de adquirir uma courela que dá trinta ou quarenta alqueires de pão por ano… sem trabalho nenhum.

Vamos dormir…