sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

O burro dos ciganos

O Jaime nasceu no olival da Barca do Pego e, na companhia do clã, passava, na nossa aldeia, várias vezes por ano, ficando, quando calhava, algumas semanas.

Trazia a carroça com a garotada e a mulher e acomodava-se, no cabanal da rua da carreira, junto da atafona.

Estava no centro do povo, aproveitava o espaço para ir tosquiando as bestas que apareciam, dava dois dedos de conversa a quem passava e tinha a taberna à mão de semear.

Conhecia e era conhecido de toda a gente. Em pequeno ainda chegou a frequentar a escola local. Era como se fosse filho da terra e, dum modo geral, muito querido e estimado. Porém, nunca aceitou trabalhos no campo, fora das suas artes de tosquiador, ferrador, latoeiro e caldeireiro. Trazia, habitualmente, uns burritos e uma ou outra besta, presos atrás da carroça, para venda e troca.

A mulher e os filhos angariavam, de porta em porta, o sustento da família e, segundo palavras do Jaime, a Serra era terra onde se recebia mais do que o que se comia. Outras havia em que até a água era dada de má vontade, a crer nas afirmações do cigano.

Mas nessas nem apetecia poisar; fazia-se o serviço que havia, o mais rápido possível e … “ala moço, que se faz tarde”!...

Uma ocasião, teve de entrar numa demanda. Foi acusado, no tribunal de Mação, pelo Ti’ Chico Manco, de o ter enganado, vendendo-lhe uma besta velha e cansada, que nem dava para ir à horta, e, de cavalaria, nem com a albarda podia. Foram estas as queixas contra o sr. Jaime cigano, mais conhecido por Jaime Tarita, que a GNR teve dificuldade em notificar.

Foram ouvidas várias testemunhas de defesa. Eis um dos depoimentos:

É claro que a costela de cigano está lá – disse o Ti’ Abílio, ao tempo Cabo de Ordens –. É finório nos negócios, mas aldrabão nunca foi, mais que qualquer um de nós.

Posso afiançar, ao Senhor Doutor Juiz, que o Jaime não enganou o Chico Manco – Francisco Alves Mendes, melhor dizendo –, pois, eu próprio presenciei o negócio, assim como muitos outros, lá na taberna da Serra. Vendeu-lhe uma besta por duas notas. Acha o Senhor Doutor Juiz que, por esse dinheiro, lhe podia dar um cavalo de corrida!?... Será que o aldrabão é o Jaime!?...

Interrogado, o Jaime apenas disse que a besta do negócio sempre esteve à vista de toda a gente e se tivesse que meter gato por lebre não seria na Serra.

Acabei por ir em paz e com a caderneta limpinha como, orgulhosamente, se gabava o Jaime Tarita, quando lhe falavam no tribunal.

Numa das passagens pela terra, o Jaime cruzou-se com uma trupe de ciganos, desconhecidos por ali, mas que o Jaime conhecia, de ginjeira.

Passavam a vida a vender gado barato, não eram de confiança, parecia que tinham cola nos dedos e, pior ainda, eram como os espanhóis: tinham os olhos na ponta dos dedos. Estes foram os avisos feitos na taberna, destinados a precaver quem com eles quisesse fazer algum negócio, ou permitisse que se aproximassem.

À saída da missa, no largo das tabernas, juntou-se gente.

Os ciganos tinham um burro, muito bem apresentado, com pouca idade, bom de cavalaria e manso como as pedras da calçada. Não havia dúvida que valia tanto como o do Jaime e estavam a pedir vinte e quatro notas, enquanto o outro não desamarrava das quarenta.

O Jaime não conseguiu aproximar-se da pechincha, mas, mesmo à distância, pôde ver
que o animal não via do olho esquerdo – os ciganos tinham-no à rédea curta e estavam sempre nesse lado do animal –.

O Jaime viu ainda, embora a albarda nunca fosse tirada, que havia sinais de cicatrizes por cima dos quartos traseiros e numa das patas estavam sobrepostas duas ferraduras.

O comprador mais entusiasmado era o Ti’Jorge Moleiro que não gostava do Jaime nem usava os seus serviços.

Gabava-se de saber tosquiar melhor que o Jaime e que ainda o Jaime não era nado já ela mexia em bestas. Daí a razão do Jaime se afastar do novelo de gente que presenciava o negócio, como convinha aos ciganos, e se refugiar na taberna a beber um copo e, de conversa com clientes seus de longa data, foi enumerando as razões por que o burro dos ciganos era tão barato.

Feito o trato e passadas as notas, os ciganos desapareceram como que por encanto e, todo vaidoso da sua aquisição, entrava na tasca o Ti Jorge, para comemorar o bom negócio que acabava de fazer.

Atirou, assim como que em ar de desafio:

Ó Jaime, não queres dar quarenta notas pelo belo animal que acabo de comprar?!... Com albarda e tudo, ainda te tiro cinco notas. Eu ganho bom dinheiro e tu ficas com uma estampa de burro.

Olhe Ti Jorge, caro ou barato, vendo o que é meu, sirvo os meus clientes e, pode estar certo que não vendo gado cego, descomposto de quartos traseiros, com costelas partidas, ou coisa pior, e com duas ferraduras na mesma pata. Deus lhe dê mais saúde que a do animal que acaba de comprar.

É que quando eu nasci já o Ti’Jorge mexia em bestas, mas estes dois olhos que a terra me há-de comer, vêem melhor os defeitos dos burros e as manhas dos ciganos que o Ti’Jorge alguma vez há-de enxergar.

E, voltando-se para a assistência que entretanto se ia juntando, disse, com calma e serenidade: quando alguém quiser uma besta mais ou menos brava, mas sem maleita e defeito físico grave, pode pedir o meu conselho, ou comprar os meus animais – não levo nada por isso, desde que esses amigos não saibam mais do que eu e peçam, por isso, a minha ajuda...

Nesta altura já muitos iam dizendo, em surdina, mas perfeitamente audível na assistência: mas que diabo quer o Jaime dizer quando se refere a animais sem maleita e defeito físico grave?...

Até o Ti’Jorge, começava a cair em si e a interrogar-se sobre o que quereria o cigano dizer. Mas não daria, ainda, parte de fraco e, para rematar, pediu mais uns copos para os circunstantes. Porém, logo que os ânimos serenaram, saiu, sorrateiramente, e dirigiu-se ao palheiro onde tinha guardado o animal.

Qual não foi o seu espanto quando viu o burrito deitado, mostrando uma enorme cicatriz na região lombar, levantando-se com dificuldade, com uma perna a claudicar e mostrando, de facto, cegueira num olho.

Vociferou e saiu do palheiro proferindo as maiores barbaridades e impropérios contra os ciganos que, tinham dado “às de vila Diogo” e desaparecido, como que por encanto.

Recolheu-se a casa e menos de oito dias passados, já com o burro enterrado e mais umas três notas gastas com o veterinário, atreveu-se a entrar na taberna, avisando que não lhe falassem mais de burros, nem de ciganos.

Todavia, fazia a justiça de dizer que, quanto a ciganos, só o Jaime merecia ser bem recebido; era o terceiro negócio que fechava com ciganos e sempre fora enganado.

De futuro, só comprarei bestas ao Jaime, ou com o seu conselho. Logo que por cá apareça, há-de ter um bom jantarinho de carne, como pedido das minhas desculpas.