Completaram-se os nove anos entre as tiragens de cortiça na Herdade do Meio e na da Carvalheira de Cima.
Cento e cinquenta hectares de sobro do melhor, que acabavam de produzir quase dez mil arrobas de cortiça que, vendida a um industrial do Montijo, valeu a bonita soma de quase vinte mil contos – uma grande fortuna, na época, que foi entregue ao senhor Lavrador Lopes Guerreiro, em notas do Banco de Portugal e um cheque visado, no dia em que as camionetas começaram a carregar para o Montijo e para duas fábricas do Norte.
O senhor Lavrador meteu as notas e o cheque numa bolsa de pano que guardou na casa forte.
Uma construção de cimento armado, à prova de fogo, de tamanho descomunal e encastrada sobre uma sapata construída num poço aberto no chão, com frestas, cujas ranhuras inclinadas em várias direcções mediam menos de dois centímetros e eram protegidas, por dentro, por uma rede de malha fina.
A cavidade útil, um cubo de dois metros de lado, era acedida por uma porta encomendada a uma casa especializada de Paris, por um tio do Senhor Lavrador.
Classificada de alta segurança, era resistente ao fogo, tinha uma estrutura de amortecimento de explosões e dada a situação do celeiro não havia possibilidade de se inundar.
Abria para dentro e tinha um dispositivo comandado do interior, que com um simples toque escancarava a porta.
Pelo exterior, dois dispositivos de segredo e uma tranca camuflada e secreta, completavam o fecho do bunker.
Nesta casa forte estavam valores em dinheiro, sempre em quantidade avultada, pois o senhor Lavrador não queria estar descalço, como dizia a miúdo, jóias da família, documentos importantes, armas, correspondência pessoal e de importância familiar, etc.
Havia sempre fósforos, velas de sebo, um garrafão de água e uma manta dobrada, ao lado de uma pequena mesa e uma cadeira onde o se sentava o senhor Lavrador, quando tratava o que precisava.
Os segredos, das fechaduras e das trancas, eram conhecidos por sete pessoas, divididos em três grupos.
Essas pessoas agiam individualmente e do conjunto das acções dos três, resultava a abertura da casa forte.:
O Senhor Lavrador conhecia o segredo das trancas e os códigos das duas fechaduras, isto é, podia abrir e fechar, sozinho, a casa forte.
O filho mais velho, doutor Manuel, veterinário no concelho de Beja, conhecia o segredo da fechadura de cima; o feitor, André Cotovia, sabia abrir a de baixo e o maioral do gado sabia desactivar as trancas, mas nunca podiam estar os três junto da casa forte, a não ser quando o último dos três activava o seu segredo e chamava os outros dois, para que o mais velho rodasse o volante de ferro que abria a porta.
Outro grupo, idêntico a este, era formado pelo doutor Pedro, filho mais novo do Senhor Lavrador, que administrava as cinco herdades da casa e vivia lá no Monte da Herdade dos Bons Ares, que conhecia o segredo da fechadura de cima, pelo contabilista que sabia o da fechadura de baixo e pelo capataz, Agostinho Gancho, que sabia destravar as trancas.
No Notário havia um envelope lacrado com cada um dos três segredos.
Quando morria o titular, ou deixava de trabalhar na casa, o respectivo segredo era confiado ao novo confrade, sob juramento, pelo notário, na presença do senhor Lavrador.
Assim, a casa forte só poderia ser aberta pelo senhor Lavrador, por cada um dos grupos de três elementos, ou pelo notário que guardava as cartas lacradas, que só poderiam ser abertas e usadas, em caso de qualquer emergência.
No Natal de cada ano, os titulares das cartas com o segredo da casa forte e o notário recebiam, num envelope, uma recompensa do Senhor Lavrador.
Não conheciam as broas uns dos outros, mas todos se dirigiam ao Banco, nos primeiros dias do ano, para depositarem o prémio que tinham recebido do patrão.
Alguns dias depois do recebimento dos valores da cortiça, o Senhor Lavrador chamou o André Cotovia e o Agostinho Gancho, feitor e capataz da Herdade dos Bons Ares e homens da sua inteira confiança, para que apanhassem o comboio, em Beja, e fossem a Lisboa, ao Banco Ultramarino, levar o dinheiro da cortiça.
Deviam ir com os olhos bem abertos, sempre um em frente do outro, guardando a retaguarda do parceiro.
Depois de deixarem o comboio, no Barreiro, era só atravessar no barco e, no outro lado, em Lisboa, atravessavam aquele grande largo que tem um homem em riba dum cavalo, metiam na rua que tem um arco e logo viam uma grande casa com as letras Banco Ultramarino.
Há-de dirigir-se a vocês um porteiro fardado que vos dirá bons dias!
O André responderá: bons dias!... Vamos falar ao Senhor Mendes; trazemos esta encomenda para ele! E nesta altura mostras-lhe a bolsa.
No cimo dumas escadas estará um senhor de óculos que vos cumprimentará: olá senhor André!...Como está o meu amigo, o Senhor Lavrador Lopes Guerreiro? Mandou uma lembrança para mim? Vamos ali ao meu gabinete.
E lá dentro, dás o cheque e o dinheiro da bolsa ao senhor e esperas até que ele te dê um papel que guardas na algibeira.
Agradeces e despedes-te e já podem ir a uma taberna qualquer, comer bem e beber melhor.
Depois, apanham o comboio da tarde e, em Beja, há-de estar alguém para vos trazer para cima.
No banco o director, senhor Mendes, tinha avisado a portaria para mandar subir os dois homens com uma bolsa de trapos na mão. Quando tudo estivesse concluído o banqueiro telefonaria ao Lavrador e os homens seguiriam o seu destino.
Por volta do meio-dia toca o telefone no Monte e o senhor Lavrador ouve do outro lado o feitor André a dizer que tinha havido um contratempo e, como medida de segurança, não foram ao Banco.
Tinham a bolsa do dinheiro bem guardada e voltavam no comboio das duas, para que já tinham bilhete.
Agradecia que mandasse buscá-los, a Beja, lá pelas cinco horas. Depois esclareceria tudo; agora era melhor não adiantar mais nada, pois não sabia se estavam a segui-los.
O Lavrador comunicou ao banqueiro, seu amigo, que tinha havido um percalço com os emissários, mas os valores estavam em segurança e quando conhecesse todo o enredo da história lhe daria notícias.
Quando os dois homens chegaram à herdade foram entregar ao patrão a bolsa que nem tinham chegado a abrir e que o feitor ainda levava espalmada entre a camisola interior e a camisa, donde não chegou a sair.
O capataz deu um passo em frente e, calmamente, disse:
É a primeira vez que volto sem as ordens do Senhor Lavrador cumpridas; acho que aqui o Agostinho se pode gabar do mesmo.
Mas, mal pusemos pés em terra, à saída do barco, ouvimos aquela chusma de gajos – com sua licença – a gritar, correndo de um lado para o outro, como que a procurar alguém e entregando uns papéis que tiravam de debaixo do braço, dum bornal que traziam a tiracolo, resolvemos não nos meter em embrulhadas e, discretamente fomos comprar bilhete e viemos no barco de volta.
Sossegámos um pouco, pois parece que nos terão perdido de vista e, no barco não demos por ninguém a seguir-nos e, também na estação parece que não estava ninguém à nossa espera.
Metemo-nos na carruagem, sentámo-nos na frente um do outro e trouxemos para casa a sua encomendinha.
Que nos perdoe o patrão, mas sempre se disse que o seguro morreu de velho.
Aí, algo intrigado ainda, o Lavrador perguntou:
E que dizia essa gente lá na estação dos barcos e nos passeios à volta?
Adiantou-se o Agostinho, respondendo: “Cerquem os da cortiça!... Cerquem os da cortiça!..”
E logo, do lado, outros repetiam: “Cerquem os da cortiça!... Cerquem os da cortiça!”